A Rainha Verde: Alicent Hightower, a Ana Bolena de Westeros

A Rainha Verde: Alicent Hightower, a Ana Bolena de Westeros

No universo de Uma Canção de Gelo e Fogo, George R. R. Martin escreve personagens frequentemente influenciados pela história real – sobretudo pela história inglesa. A família Lannister, por exemplo, faz muitas referências ao clã Lancaster e à família Borgia, enquanto muitos eventos da narrativa de Martin se inspiram na Guerra das Rosas.

Em seu livro Fogo e Sangue, Martin conta a história da dinastia Targaryen, a antiga família real de Westeros. A história da “Dança dos Dragões” – uma guerra civil pela sucessão do trono, que se passa séculos antes dos eventos retratados na série de livros original – deu origem ao aclamado spin-off  House of The Dragon, da HBO.

Comparações entre Alicent Hightower e Ana Bolena

O livro, e mais tarde a série, nos apresenta uma personagem complexa, comparada por muitos com a infame Cersei Lannister (Lena Headey), mas vista por outros sob uma luz mais simpática: a rainha Alicent Hightower (Olivia Cooke e Emily Carey), segunda esposa do rei Viserys (Paddy Considine), também conhecida como “A Rainha Verde“.

Se Martin “rouba” de vários lugares para construir suas histórias e personagens, parece inegável que Alicent foi quase inteiramente tirada de Ana Bolena, a trágica e infame rainha inglesa que foi a segunda das seis esposas de Henrique VIII.

Pintura de Ana Bolena (1570)
Ana Bolena | Pintura de 1570, artista desconhecido

Aemma e Catarina de Aragão: similaridades históricas

A rainha Aemma (Sian Brooke) é muito amada por seu marido, o rei Viserys, porém é incapaz de lhe dar um herdeiro homem. Ela engravida múltiplas vezes, mas as gravidezes não vão para a frente. Ela tem com ele apenas uma filha, a princesa Rhaenyra (Emma D’Arcy e Milly Alcock), por quem o pai é encantado, mas que não serve a seus propósitos por ser uma mulher.

A situação de Aemma tem muitas similaridades com a vida de Catarina de Aragão, a primeira esposa de Henrique VIII. A princípio, eles também foram muito felizes em seu casamento, que durou mais de vinte anos, e muitos historiadores ainda defendem que Catarina foi o grande amor da vida de Henrique.

Retrato de Catarina de Aragão (1485-1536)
Retrato da Catarina de Aragão (1485-1536), primeira esposa de Henrique VIII | Artista desconhecido

Os problemas começaram a surgir, porém, quando Catarina provou-se repetidas vezes incapaz de produzir um herdeiro homem. Ela lhe deu uma única filha, Maria, a quem Henrique amava profundamente, mas que logo deixou de ser suficiente por não ser o tão desejado herdeiro homem.

O pai

Ana Bolena foi colocada diante de Henrique VIII através das maquinações de seu pai, um aristocrata ambicioso cujo objetivo era colocar uma das filhas – Ana ou sua irmã, Maria, que foi igualmente “oferecida” ao rei, foi sua amante e chegou a ter um filho com ele – na cama do rei.

Ele conseguiu para a filha um lugar na corte como dama de companhia de Catarina, e a instruiu e incentivou, buscando criar não uma simples amante real, mas uma rainha.

Alicent Hightower, filha de um dos mais importantes conselheiros de Viserys, Otto Hightower, é praticamente oferecida ao rei por seu pai, que a envia para visitar o rei em seus aposentos durante seu período de luto e a indica o que vestir, o que fazer e até mesmo a necessidade de manter esses encontros escondidos de Rhaenyra, a filha do rei, de quem Alicent é dama de companhia.

A fé: o impacto de Ana Bolena na história

O maior impacto de Ana Bolena é sua influência na criação da Igreja Anglicana. Embora sua imagem na cultura popular seja a de uma sedutora, disposta a cortar os laços de um país com a Igreja Católica unicamente para servir a suas razões pessoais, é um fato reconhecido por seus biógrafos que Ana era, na realidade, profundamente religiosa e tinha verdadeira paixão pela causa da reforma protestante.

Alicent é retratada como “a senhora da fé” – uma rainha com conexões profundas com a Fé dos Sete, e fica conhecida – e é, muitas vezes, criticada – por seu apego à religião, substituindo muitos símbolos Targaryen por símbolos religiosos na corte e usando-os mesmo em suas roupas.

Esse fervor religioso pode ser um aceno de George R. R. Martin ao papel de Ana Bolena como uma das idealizadoras e mais fervorosas representantes da reforma protestante.

Alicent Hightower e seu relacionamento com Rhaenyra

Alicent Hightower tem um relacionamento conturbado com sua enteada, a Princesa Rhaenyra. Enquanto na série a situação é ainda mais complicada pela antiga amizade entre as duas, no livro Fogo e Sangue, o material original que inspirou a produção da HBO, Alicent e Rhaenyra não se dão bem desde o princípio.

Em ambos os casos, Rhaenyra acaba por ser excluída da corte e passa a morar em outra propriedade, por conta de suas desavenças com a madrasta. Alicent faz todo o possível para que a primeira filha de seu marido seja preterida em favor de seus filhos, o mais velho dos quais, de acordo com ela, deveria tomar o lugar dado a Rhaenyra como herdeira do trono.

Alicent Hightower e Rhaenyra em "House of the Dragon"
Alicent Hightower e Rhaenyra em House of the Dragon (Foto: Divulgação/HBO)

Ana Bolena tinha um relacionamento terrível com a princesa Maria Tudor, sua enteada. Ana consegue que Henrique VIII tire o título de sua filha, que passa a ser apenas Lady Maria, pois o casamento dele com Catarina, mãe de Maria, tinha sido anulado e, por consequência, Maria era, agora, considerada uma bastarda. Maria foi enviada para outra propriedade e chegou a servir como dama de companhia de Elizabeth Tudor, sua meia-irmã, filha de seu pai com Ana Bolena.

O simbolismo do verde

Não é à toa que a facção de Alicent Hightower seja conhecida como “os verdes”: o verde é a cor da família Hightower e se tornou o grande símbolo de Alicent, famosamente chamada de “A Rainha Verde”. Ela ganha o apelido após uma cena que já é das mais icônicas da série, quando entra atrasada no casamento de sua enteada, Rhaenyra, em um vestido verde que contrasta abertamente com as cores Targaryen usadas pelo resto da família real.

Sua própria família de origem, os Hightower, se levantam para sua rainha, enquanto a trilha sonora que figura entre uma das mais famosas do universo de Game of Thrones, The Green Dress (O Vestido Verde), de Ramin Djwadi, toca no fundo. Nesse momento, através de seu vestido verde, Alicent declara onde estão suas alianças e, de fato, se põe, de uma vez por todas, em oposição a Rhaenyra. A partir de então, a rainha é vista quase que exclusivamente em vestidos verdes.

Ana Bolena e o vestido verde

Ana Bolena também teve um vestido verde de considerável fama. Hoje em dia ele é conhecido em função da música composta por Henrique VIII em homenagem à futura esposa, titulada Green Sleeves (“Mangas Verdes”), referindo-se às mangas de um vestido verde usado por Ana.

A música se tornou um clássico, até hoje altamente conhecida e utilizada em filmes, séries e mesmo em musicais, sendo alvo de um remix eletrônico para se tornar a principal melodia das composições do musical “Six”, um sucesso mundial a respeito da vida das seis esposas de Henrique VIII. Nele, cada rainha tem uma cor – a de Ana, é claro, é verde.

Ana é representada vestindo verde em quase todas as mais famosas representações de sua vida – é particularmente famoso o vestido verde que Natalie Portman veste nas fotos promocionais do filme A Outra (2008), onde interpreta Bolena.

Ana Bolena (Natalie Portman ) com o vestido verde no filme "A Outra" (2008)
Ana Bolena com o vestido verde no filme A Outra | Divulgação
Alicent Hightower (Olivia Kate Cooke) com o vestido verde em A Casa do Dragão
Alicent Hightower com o vestido verde em A Casa do Dragão | Divulgação

Guerra Civil e sucessão

O casamento de Henrique VIII e Ana Bolena não foi longo, mas constituiu, de qualquer forma, um dos eventos mais importantes da história inglesa.

Ana não apenas foi catalisadora da reforma religiosa que mudaria para sempre o rosto da Inglaterra – e que eventualmente levaria a perseguições religiosas, tanto de protestantes contra católicos quanto vice-versa, e teria influência fundamental na constituição de outra potência mundial, os Estados Unidos -, como também foi mãe de Elizabeth I, que viria a se tornar a mais longeva e competente herdeira de Henrique VIII, e uma das mais famosas monarcas inglesas.

Após a morte de Henrique, seus três filhos – Eduardo, Maria e Elizabeth – viriam a ocupar o trono, nessa ordem. Eduardo e Elizabeth eram protestantes, e Maria católica, como a mãe. Eduardo morreu muito jovem e, não querendo deixar o trono para nenhuma das irmãs, decidiu fazer de sua prima, Jane Grey, sua herdeira.

O reinado turbulento dos herdeiros de Henrique VIII

Jane Grey foi rainha por sete dias, antes de ser deposta e executada por Maria, que seria coroada Maria I da Inglaterra, também conhecida como “Maria Sangrenta” em função de sua perseguição aos protestantes. Nessa ocasião, Elizabeth se tornou uma ameaça ao trono de Maria, e chegou a ser presa na Torre de Londres.

Com a morte de Maria, Elizabeth finalmente assumiu o trono, e seu reinado foi um dos mais marcantes da história da Grã-Bretanha. Seu governo não era simpático aos católicos, e deu origem a uma série de conflitos e movimentações políticas relacionadas à questão religiosa que assombraria a Inglaterra por toda a idade moderna.

Maria Stuart (1542-1587) | Pintor não identificado – The Museum of Scotland’s Catholic Heritage (Divulgação)

Elizabeth tinha como principal rival outra Maria – a famosa rainha dos escoceses, Maria Stuart -, sua prima católica, rainha da Escócia, que dizia ter direito ao trono britânico. Elizabeth eventualmente conseguiu a execução de Maria, que foi decapitada. Como Elizabeth – conhecida como “A Rainha Virgem” – não teve filhos, seu trono acabou por ser deixado para o filho de Maria, Jaime, o primeiro rei a unificar as monarquias escocesa e inglesa.

Paralelos entre House of the Dragon e a história inglesa

Toda a história de House of the Dragon, retirada de Fogo e Sangue, gira em torno de uma guerra civil conhecida como “Dança dos Dragões”, que ocorre por brigas sucessórias entre a primeira filha de Viserys, a Princesa Rhaenyra, e seu filho com Alicent, o Príncipe Aegon.

O sangrento conflito se inicia quando Alicent declara que Viserys desejava que seu filho, e não Rhaenyra, assumisse o trono logo após a morte do rei. O conflito, que é iniciado pelo casamento de Alicent com Viserys, termina com a morte de Rhaenyra e com seu filho, Aegon, no trono. O sucessor de Aegon, porém, é ninguém mais, ninguém menos, que o filho de Rhaenyra.

Como a filha de Ana Bolena, o filho de Alicent Hightower é o grande vencedor da guerra civil pela sucessão do pai. Aegon executa Rhaenyra, mas sua falta de herdeiros garante que sua dinastia acabe com ele, e o filho de um odiado membro da família, morto por suas próprias ordens, venha a reinar em seu lugar.

Ana e Alicent são, ambas, mulheres complexas e divisivas, com fãs e detratores quase que em igual medida. Martin inspira-se habilmente no legado de uma para construir a outra, e assim incluir sua própria Rainha Verde no hall de personagens femininas que serão alvo de discussão por anos após sua criação: é Alicent Hightower uma vítima ou uma vilã? Foi Ana Bolena uma hábil e calculista sedutora, ou mais uma mulher sacrificada no altar da ambição dos homens ao seu redor? E qual dos dois foi Alicent?

Escrito por:

Estudante de História na Universidade Federal do Amazonas e dona do instagram @behindherglasses_
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