Quando Akira Kurosawa reinventou Lady Macbeth

Quando Akira Kurosawa reinventou Lady Macbeth

Na extensa filmografia de Akira Kurosawa (1910-1998), constam diversas adaptações de obras literárias. Dentre elas, as mais conhecidas são as dos textos de William Shakespeare (1564-1616), mostrando que Kurosawa era um grande admirador das obras do dramaturgo, além de um excelente cineasta.

Seus filmes shakespearianos e de outras obras literárias são exemplos interessantes de adaptações cheias de personalidade e criatividade, não preocupadas com uma estéril “fidelidade à obra original” cobrada por muitos leitores.

Dentre as adaptações de Shakespeare, podemos citar Homem Mau Dorme Bem (1960), inspirado em Hamlet; Ran (1986), inspirado em Rei Lear; e Trono Feito de Sangue (1957), adaptação de Macbeth – este último, o tema do texto.

Macbeth

Macbeth (1606) é uma das tragédias mais celebradas de seu autor, além de ser – de acordo com fontes – a obra shakespeariana favorita de Kurosawa.  A peça gira em torno de Macbeth, um general muito respeitado na Escócia do século XI. Após sair vitorioso de mais uma batalha, ele e seu companheiro Banquo se deparam com feiticeiras na floresta que entregam revelações gloriosas sobre o destino de Macbeth.

Para cumprir tal destino, no entanto, o protagonista – muito influenciado e incentivado por sua esposa – se envolve em uma sequência de assassinatos e traições até encontrar um fim trágico, ironicamente pouco após conseguir a coroa.

Cartaz do filme Trono feito de sangue (1957)
Cartaz do filme Trono feito de sangue (1957) | Título original: 蜘蛛巣城

No filme Trono Feito de Sangue, Kurosawa adapta o cenário europeu para o Japão do Período Sengoku (aproximadamente entre o século XV e a metade do século XVI, segundo fontes), marcado por várias guerras entre províncias.

Dado que a tragédia aborda disputas políticas com base na violência e ganância, Kurosawa fez uma escolha acertada. O protagonista do longa é o samurai Taketori Washizu (Toshirō Mifune), fiel ao senhor do Castelo Teia de Aranha – até começar o jogo de poder.

No entanto, não é dele que iremos falar hoje, mas sim de Asaji Washizu (Isuzu Yamada), a Lady Macbeth reinventada por Akira Kurosawa.

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Lady Macbeth: imoral e tenaz

Macbeth é uma obra sombria que explora os aspectos mais espinhosos do comportamento humano. Carregada de um racionalismo moderno, coloca o indivíduo como protagonista de suas glórias e fracassos, sem tanto espaço para deuses que controlam os destinos dos heróis. Assim, os personagens centralizam em si as motivações que os conduzem.

Lady Macbeth, embora não seja a protagonista principal, destaca-se pela audácia e clareza de suas atitudes, mesmo que moralmente reprováveis. Apesar de já possuir o título de baronesa e ser esposa de um senhor feudal, ela anseia pelo poder e, ao contrário de seu marido, que serve ao rei como militar, parece não dever lealdade à coroa.

Cineasta Akira Kurosawa (1910 - 1998)
Cineasta Akira Kurosawa (1910 – 1998) | Fonte: Site Plano Crítico

A carta enviada por Macbeth informando sua esposa sobre o evento sobrenatural é bastante emblemática das diferenças entre os dois. Sem falar abertamente sobre suas intenções nem sugerir qualquer ação, ele encerra sua mensagem parecendo não se importar muito com os presságios, referindo-se a eles apenas como uma esperança que ambos devem guardar no coração.

Lady Macbeth, por sua vez, logo compreende os caminhos que deveriam seguir, assumindo para si mesma a ambição que já se escondia na atitude dissimulada do protagonista:

És barão de Glamis e de Cawdor e haverás de ser o que prometeu a profecia; no entanto, temo que o leite da bondade humana impregne demais tua natureza para tomares o atalho do poder.

Desejas ser poderoso; embora não careças de ambição, falta-te a brutalidade que a motiva. […]

Apressa-te e chega logo, para que eu possa despejar meu ânimo em teus ouvidos e subjugar com a coragem de minha língua tudo o que te separa do círculo de ouro.

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Um plano, então, é delineado na mente de Lady Macbeth, e é seu marido quem deve executar cada um dos comandos, o que ele de fato faz. Seria ela, então, uma manipuladora sanguinária? Macbeth é apenas vítima de uma esposa implacável? Essa é a perspectiva de sua própria esposa sobre o comportamento de Macbeth quando ele hesita em matar Duncan:

Teme mostrar-te na realidade, por feitos e coragem, o mesmo homem que desejas ser? Almejas conseguir a coroa que considera o ornamento da vida, mas viver como covarde em tua autoestima, deixando o ‘não ouso’ subjugar-se ao ‘quero’, como o pobre gato do provérbio?

Atriz Isuzu Yamada (1917 - 2012)
Atriz Isuzu Yamada (1917 – 2012) | Imagem: reprodução

Como bem apontado por Lady Macbeth, seu marido não era totalmente inocente; ele desejava a coroa tanto quanto ela. Ele estava disposto a fazer o que fosse necessário, e ela nunca duvidou disso.

No final das contas, talvez Lady Macbeth tenha sido construída para representar – ou ao menos espelhar – um lado do protagonista que ele próprio não ousava expor com tanta transparência.

Enquanto Lady Macbeth incita, verbaliza e planeja, Macbeth dissimula, esconde e hesita, embora deseje intensamente. Ao deixar-se guiar por seus desejos pouco virtuosos, ele acaba por condenar a si mesmo.

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Asaji Washizu: fantasmagórica e corruptora

Se uma tradução é sempre uma traição, uma adaptação pode ser uma corrupção. A linguagem da literatura guarda poucas semelhanças com a cinematográfica, por isso, adaptar uma obra literária para o cinema é sempre um desafio que passa pela própria autoria do cineasta responsável.

Afinal, não há adaptação tão fidedigna que não reflita a visão de mundo e a experiência de seu criador. Ao deixar de lado a ideia de que um roteiro adaptado deve sempre obedecer à lógica do material “original”, a apreciação de uma obra se torna mais completa e prazerosa, sem a necessidade de recorrer a uma referência ideal(izada).

Além da tradução intersemiótica (do roteiro de teatro para um longa-metragem), em Trono feito de sangue vemos também uma tradução intercultural. Ao deslocar o enredo da Escócia para o Japão, Kurosawa subverte todos os elementos culturais que moldam e guiam seus personagens até o desfecho, por vezes mantendo certas características gerais do texto shakespeariano, por vezes alterando-o completamente.

Nesse sentido, Asaji Washizu é um excelente exemplo de como uma personagem consagrada na literatura pode ganhar novas cores e abordagens, mantendo-se tão impactante quanto a versão original.

Asaji Washizu (Isuzu Yamada), a Lady Macbeth reinventada por Akira Kurosawa.
Asaji Washizu | Imagem: reprodução

Para construir sua própria Lady Macbeth, Kurosawa optou por caminhos estéticos e narrativos bastante interessantes.

Asaji Washizu não é imperativa como Lady Macbeth, mas se faz ser ouvida. Não é dissimulada como seu marido, mas age com uma frieza horripilante, aura reforçada por seus longos cabelos negros e maquiagem impecável, implantando dúvidas e ideias na mente de Washizu como quem lança um avião de papel ao vento.

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A sutileza estratégica de Asaji é uma arma eficaz. Dentro da fortificada armadura de samurai de seu marido, ela encontra a brecha necessária para espalhar a corrupção. Tarefa que, teoricamente, não deveria ser tão fácil, uma vez que, nas narrativas épicas, toda a glória de um samurai reside em sua retidão e lealdade.

O desvio do caminho do samurai Taketori, assim como a tragédia de Macbeth, ocorre pelas mesmas vias: na ambição já existente, mas verbalizada por suas respectivas esposas. Aqui, a autoria de Akira Kurosawa mais uma vez se destaca, pois os diálogos do filme utilizam muito pouco do texto shakespeariano, exigindo encontrar vozes e expressões particulares para Asaji.

Taketori e Asaji Washizu
Taketori e Asaji Washizu | Imagem: reprodução

Além dos diálogos, a caracterização das personagens também sugere essa discrição, pois Kurosawa optou por se inspirar no teatro Nō japonês, uma tradição que valoriza a sutileza e atributos simbólicos. A maquiagem de Asaji, assim como a de diversos personagens na obra, mimetiza as tradicionais máscaras dessa tradição. Durante a maior parte do filme, sua impassividade e traços maduros são enfatizados.

No entanto, ao final, após todos os terríveis atos cometidos por ela e seu marido, juntamente com o trauma da perda de seu bebê, Asaji nos assombra com uma maquiagem que destaca seu desespero: sobrancelhas contraídas e boca muito arqueada, uma visão quase demoníaca que, ironicamente, humaniza a personagem e expressa seus sentimentos complexos.

Aliás, apesar da aparição do ser sobrenatural que profetiza o futuro de Taketori, do uso do preto e branco que realça o tom lúgubre de Macbeth, e da aparência e comportamento espectrais de Asaji, Kurosawa nos guia por uma narrativa intrinsecamente humana.

Como sugerido pelo nome do castelo ao qual Taketori serve, os personagens se enredam na teia de suas próprias armadilhas, como em toda boa tragédia. Nesse limiar entre o místico e o carnal, a personagem interpretada por Yamada Isuzu transita de maneira magnífica, encantando e horrorizando alternadamente, não devendo nada à Lady Macbeth.

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Criança dos anos 2000, filha do cerrado mato-grossense, estudante de História(s) e pesquisadora da cultura. Aspirante a crítica.
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