É sempre animador ler livros nacionais que exploram temas distintos do DNA nacional de crônica-romance e adentram em territórios dominados pela literatura estrangeira, como mistério. Esse é exatamente o caso de Guanabara Real: A Alcova da Morte, resultado extraordinário da colaboração de três já conhecidos autores nacionais, que adentrou em um território (quase) estranho à literatura brasileira de tal forma que devemos tomar nota.
Confira a sinopse de Guanabara Real – A Alcova da Morte:
“Brasil, 1892. Durante a noite de inauguração da estátua do Corcovado, um horrendo crime toma de assalto a alta sociedade carioca. Para resolver o mistério, a investigadora particular Maria Tereza Floresta, o engenheiro positivista Firmino Boaventura e o dândi místico Remy Rudá terão de se embrenhar numa perigosa trama de poder e corrupção. O que parece mais um caso, aos poucos se revela um plano que põe em risco o futuro de todo país e para impedi-lo, a agência de detetives Guanabara Real terá de usar toda a sua perícia para solucionar os enigmas tecnológicos e os mistérios arcanos da sangrenta Alcova da Morte! ”
Com a sinopse sentimos um pequeno gosto do que se trata o livro, mas isso não se aproxima nem um pouco da sensação que sentimos ao lê-lo. Logo ao sermos apresentadas aos personagens principais, vemos como suas características são ao mesmo tempo completamente opostas e totalmente necessárias ao caso que se desenrola na trama, estando cada um responsável por uma determinada parcela da solução da mesma. O que chama a atenção sobre isso é, claro, como cada parte da agência de detetives cobre uma parcela de minorias mundiais, estando elas, nesse caso, reunidas na cidade do Rio de Janeiro, pós Império.
Remy Rudá, o místico da agência, representa não apenas a população indígena, tão perseguida e continuamente assassinada no Brasil, mas também a comunidade LGBTQ+, que além do próprio Remy, é mostrada no livro através da transexual Madame Leocádia, de uma forma respeitosa e que abre espaço para a aceitação das vontades involuntárias que atingem a alguns de nós, sendo um dos poucos livros em que a sexualidade de personagens não é uma questão central de suas histórias e em que os pertencentes dessa comunidade não são mostrados como perseguidos, apesar da realidade.
É em Remy que recebemos o elemento mágico do livro, através de mistérios astrais e extracorpóreos que se misturam ao suspense da história, adicionando ainda mais enigmas e tensão a trama. É interessante, porém, pensar que o elemento mágico da trama está justamente no personagem indígena, estando este fato flertando com estereótipos raciais indígenas de mágica ancestral tão explorados midiaticamente.
Firmino Boaventura, o engenheiro, traz ainda mais cor à história ao representar a população negra. É notável a oposição – e o equilíbrio – que se refletem na imagem de Firmino. Seus conhecimentos tecnológicos e mecânicos são igualmente essenciais aos trabalhos da Guanabara Real, sendo que sua própria figura como engenheiro desafia os estereótipos atribuídos à raça, que os pertencentes da mesma enfrentam até hoje.
Assim como em Remy, porém, o fato de Firmino ser lutador de capoeira e ser negro levanta a bandeira do estereótipo que precisamos nos atentar a todo o momento. É claro que não estamos pedindo para excluir as características de místicos de indígenas e de capoeiristas de negros em todos os casos e em todas as circunstâncias, mas a insistência em caracterizá-los como tal em histórias que tem como cenário o século XIX não passa despercebida, e mais, impede um aprofundamento no enredo e uma diversidade de personalidade dessas personagens, exatamente o que fazem os estereótipos.
Maria Tereza Floresta, a líder do trio que compõe a agência de detetives, representa as mulheres. Talvez a melhor parte do livro seja o fato de que o ponto focal da história, a Guanabara Real, junto com o trio principal de personagens, seja liderado por uma mulher, que não recai nem na recorrência de personagens femininas fracas nem na de personagens femininas fortes. Ao contrário, MT consegue retratar a mulher mundana comum, aquela que tem que conviver – e lidar com – figuras masculinas também comuns, leia-se (majoritariamente): machistas e sexistas, ao longo de seu dia a dia.
“(…) Os olhos estavam secos e havia mais raiva ali que revolta. Estavam acostumados a morrer. ”
Um elemento que parece intrínseco à história é a contundente crítica social feita ao longo dos capítulos.
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Questões de raça, classe, sexo e gênero se misturam e são apresentadas a todo momento e com diversas intensidades, de forma que até o leitor mais desatento e menos politizado consegue perceber o tom crítico ou ,no mínimo, questionador dos argumentos ditos e pensados pelos personagens da trama, ou até pelo próprio narrador. A propósito, a narrativa do livro é feita em terceira pessoa, e de forma onisciente. Esta característica, porém, não interfere de nenhuma forma na construção do mistério que envolve a trama, sendo este resguardado até as últimas páginas da história.
Além do evidente elemento de mistério presente no livro e do fator sobrenatural, a história traz elementos de steampunk evidentes. Tanto o objeto do mistério central quanto a mão do associado Boaventura, além de diversos outros entre estes, figuram nas páginas do livro, contribuindo não apenas para aumentar o apelo de mistura igualitária presente na narrativa, mas de forma a fazer com que a mesma se desenvolva com uma fluidez que parece ser impossível se não houvesse esse elemento presente.
“Mas, com isso em perspectiva, a lista de peças que ele estava atrás incluía um regulador monofásico, algo que pode ser utilizado em um vibrador a quartzo.”
Ao lermos as páginas de Guanabara Real – A Alcova da Morte não sabemos ao certo verificar se se trata de uma narrativa de Agatha Christie, de Dan Brown, de Arthur C. Clarke ou mesmo de Stephen King, sem contar aqueles que inspiraram os próprios autores, como Júlio Verne e H.P. Lovecraft. O que sabemos por certo, entretanto, é que a história apresentada por Nikelen Witter, Enéias Tavares e A.Z. Cordenonsi consegue combinar os elementos individualizantes dos autores supracitados com as suas próprias características já conhecidas por seus trabalhos anteriores.
Guanabara Real: A Alcova da Morte é uma obra fascinante, das poucas das que realmente conseguem apresentar um mistério – e personagens – capaz de prender o leitor. A melhor parte, além de todos os motivos já falados acima, é que ela foi feita por promissores autores nacionais, de forma que os elementos típicos não apenas da cidade do Rio de Janeiro, mas do próprio Brasil, por piores que sejam, são verossímeis e corretamente apresentados de uma maneira que só nativos conseguiriam fazê-lo. O risco que os três autores tomaram ao resolverem unir suas mentes nesse trabalho, com certeza valeu a pena e agora, após lermos o livro em poucas horas, só podemos ansiar pelas próximas aventuras dos associados da agência de detetives Guanabara Real.
Guanabara Real – A Alcova da Morte
Por: A.Z. Cordenonsi, Enéias Tavares e Nikelen Witter,
240 páginas
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Esta obra foi cedida pela editora para resenha.
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