“Aqui, não é claro nem mesmo o limite entre o que é ‘trabalho’ e ‘eu’”, lamenta a ilustradora Rachel Denti em seu novo fanzine – “Não pense em crise, trabalhe” – sobre o lugar que ocupam aqueles que escolheram a arte como profissão. “Aqui, onde escolhi estar, a minha vulnerabilidade é produto e dá dinheiro – a perturbação do artista é valiosa e primordial”. O mundo acadêmico e/ou profissional pode ser verdadeiramente hostil e impiedoso para quem exerce qualquer área, mas isso se agrava quando seu campo de estudo é tão intrinsecamente ligado à sua sensibilidade e visão de mundo quanto a arte é para Rachel, ou para qualquer outro artista que ama – e se empenha para continuar amando – o que faz.
A Rachel mora em Brasília, formou-se em Design Gráfico pela UNB e demonstra-se em constante estado de dúvida, inquietação e insegurança – principalmente em relação ao seu trabalho. “Não pense em crise, trabalhe”, recém-lançado para a coleção “Violências Cotidianas” (editora Piqui), é um texto ilustrado sobre sua angústia relativa à comercialização da arte que promoveu um notável movimento de identificação ao ser publicado no Facebook – foram 2300 likes e 2100 compartilhamentos, além de uma tiragem de 50 exemplares esgotada em menos de dois dias. “Foi muito doido, eu expus em uma feira dias antes e só vendi quatro exemplares”, conta. “Depois que divulguei na internet, todos quiseram comprar”.
A internet foi (e ainda é) uma ferramenta de grande relevância para a consolidação da carreira da Rachel. Seu primeiro fanzine foi um presente para um ex-namorado e nunca chegou a ser publicado, mas seu segundo fanzine, uma compilação de inadequações cotidianas – “Everyday Thoughts On Everyday Things” (2015), realizado durante um intercâmbio para a Holanda – é hoje considerado o projeto mais notável da artista e ganhou popularidade através do Tumblr. “Eu amo e odeio esse trabalho ao mesmo tempo”, ela diz. “Foi ele que abriu todas as minhas portas, mas ficou muito popular e eu não aguento mais vê-lo”. “Everyday Thoughts On Everyday Things” é a arte mais vendida da Rachel e já está em sua terceira tiragem.
Um outro fanzine de destaque idealizado pela ilustradora é o “Girl, it’s a wild world” (2016), trabalho encomendado para a galeria The Blush Room, de Seattle, que faz uma analogia entre a violência dos seres humanos contra animais e a relação de poder que existe entre homens e mulheres. “Girl, it’s a wild world” é um ensaio pesado e sensível sobre o machismo presente em construções sociais relativas à aparência e comportamento que circundam nossa relação com figuras masculinas, como o pai, o chefe ou o professor. “A pior crítica que recebi veio de um professor holandês que disse que achava o meu trabalho vazio, que não transmitia nada”, conta. “Hoje sei que ele é um idiota, mas no dia fiquei muito mal, até chorei e pensei em largar o intercâmbio”.
Na Holanda, em Haia, Rachel cursou Belas Artes na KABK, onde pôde experimentar diversos métodos de impressão, como serigrafia, risografia e xilogravura. “Foi transformador, eu aprendi a estudar e a pesquisar”, conta. “Sempre via exposições, tanto em galerias quanto dentro da própria faculdade”.
A designer realiza suas ilustrações com uma mesa digitalizadora através de sketches no Photoshop, que são finalizados e vetorizados no Illustrator, e afirma ter dificuldades para desenhar manualmente – ela confessa que proporção e anatomia não são o seu forte. Suas paletas sempre envolvem cores marcantes e tons pasteis, que promovem uma simplicidade característica em seu estilo, percebida também no uso de formas geométricas e linhas retas. Entre suas maiores referências, estão Jenny Holzer, Barbara Kruger e Robert Montgomery.
DN – Como você escolhe as cores que utiliza em seus trabalhos?
Rachel – Eu relaciono meus sentimentos às cores, é automático. Não me lembro de nenhum processo criativo meu em que mudei a paleta de cores radicalmente, acho que as cores das minhas ilustrações têm muita relação com os sentimentos que quero transmitir através delas. Quando pensei no “Girl, it’s a wild world”, na hora me veio o vermelho – é uma cor visceral, crua, que eu consigo relacionar à raiva. Eu nem testei outra cor. “Não Pense Em Crise, Trabalhe” é um zine sobre frustração, dúvida e mágoa, então pensei no azul, pois o azul é uma cor meio melancólica.
DN – Como você entrou para o mundo do design?
Rachel – Eu desenho desde criança, sempre quis ser desenhista e sempre mexi com Photoshop e HTML, então para mim estava bem óbvio que eu faria Design. O começo do curso foi meio frustrante, pois eu não me identificava com nada, nada fazia sentido para mim. Não gostava de nada, tinha um trabalho chato, pensei até em trocar de curso para Relações Internacionais.
Eu queria desenhar, mas a universidade consumia todo o meu tempo e então eu copiava desenhos que via na internet – era um trabalho sem identidade. Então surgiu a oportunidade de fazer um intercâmbio gratuito, pelo Ciências Sem Fronteiras, eu taquei o foda-se e fui fazer Belas Artes.
Na Holanda eu me descobri, fiz arte pensando em ideias e não em clientes, mas também fui muito criticada por ter um trabalho muito comercial – era um curso de artes, não de ilustração. Sou bem insegura e tento me encaixar demais, foi um ano difícil, eu recebi muita nota baixa e porrada de professor. Fui aprovada para a faculdade que eu mais queria, a minha maior referência – a KABK – Royal Academy Of Art, que fica em Haia. Eu nem sei como me aprovaram, pois meu portfólio era podre. Acho que eles viram potencial.
DN – Me fale mais sobre o seu intercâmbio.
Rachel – Foi muito complexo, uma experiência que virou a minha vida de cabeça para baixo – eu mudei como profissional, como pessoa, como amiga. Minha visão de mundo era muito fechada, tanto em relação à ilustração quanto em relação às pessoas, enfim, em relação a tudo. Também tiveram coisas bem ruins, eu me sentia deslocada e estava sempre tentando me encaixar. Eu achava todo mundo muito legal e queria ser legal também, mas parecia que eu estava sempre errando.
Eu tenho ansiedade e me julgo muito, então essas situações sociais são muito complicadas para mim – estou sempre me perguntando sobre o que acham de mim, ou o que acham do que eu digo, vou dormir à noite pensando nas coisas que disse durante o dia. Na Holanda, eu estava conhecendo pessoas novas o tempo inteiro, socializava em inglês, tinha uma cultura diferente. Essas coisas pesavam muito mais, então eu senti que estava sempre errando e por isso eu me isolava – eu agi esquisito, eu sei disso. Eu conheci muita gente, mas não consegui me conectar com quase ninguém.
DN – Você acha que é possível adequar-se ao mundo?
Rachel – Que pergunta difícil. Acho que não, o mundo é um lugar inóspito – mas existem coisas que podem deixar nossas experiências melhores. Eu não gosto de parecer que sou uma pessoa pessimista, mas essa é a realidade, todos nós sofremos e não deveríamos ignorar o sofrimento, ou os sentimentos ruins. Aliás, o que é ser adequado? Que regras são essas? A adequação completa não existe, porque se você se adequar a alguma regra, se tornará inadequado em relação a uma outra. Sentir-se inadequado é necessário – eu precisei errar, me expor e me sentir vulnerável para me entender como pessoa. O mundo ser um lugar inóspito é importante, porque se tudo fosse confortável, ninguém entenderia ou buscaria entender nada.
DN – É curioso como os únicos sentimentos socialmente aceitos são aqueles positivos. Quem demonstra vulnerabilidade ou decepção perante a existência – algo que todos sentem ou um dia vão sentir – é visto como alguém rabugento, frustrado, negativo.
Rachel – Sim, exatamente! Por que essas coisas são ruins? Por que a tristeza é ruim? É claro que não é legal ficar triste, mas a tristeza existe por um motivo, um motivo que importa a quem a sente. É um agente de mudanças e de autoconhecimento, é um sentimento que promove uma evolução para seu relacionamento consigo mesmo, com as pessoas, com o trabalho. Não se ignora um sentimento, independente do sentimento em questão – ignorar o que se sente é burrice. Sentir é importante, faz parte do que nós somos!
DN – E a cultura que promove essa ocultação de sentimentos negativos acaba gerando sentimentos mais negativos ainda, pois todo mundo parece realizado e bem-sucedido, menos você – quando na verdade, estão todos fingindo. Isso acaba com a autoestima.
Rachel – É isso. É óbvio que ninguém vai postar uma selfie chorando no Instagram, então eu abro as minhas redes sociais e penso “caraca, todo mundo está tão feliz e eu estou tão triste!”. Então eu me culpo pelos meus sentimentos ruins, pois eles não são atraentes, divulgáveis. Quando eu publico meus trabalhos, as pessoas se identificam e me mandam mensagens relatando experiências negativas que pareciam estar engasgadas há muito tempo. Depois que publiquei o “Não Pense Em Crise, Trabalhe”, eu recebi pelo menos 50 mensagens de pessoas de diversas profissões, inclusive de um cara que vendia suplementos de academia e conseguiu se identificar com o meu trabalho de alguma forma. Sei lá, é muito doido.
DN – Quando se expõe um sentimento ou ideia pouco discutida, você cria um movimento de reflexão e identificação – as pessoas veem nessa exposição uma possibilidade de desabafo com um semelhante; são coisas que todos sentem ou pensam, mas têm vergonha de demonstrar até que uma outra pessoa demonstre.
Rachel – É essa reposta a parte mais legal do meu trabalho. Todos têm suas inquietudes, e são essas reflexões mais pessoais e viscerais que nos ligam aos outros – ao músico, à estilista, ao cara que vende suplemento de academia. Recentemente, quando escrevi o texto de “Não Pense Em Crise, Trabalhe”, estava passando por um período muito difícil em relação à minha ansiedade, e muitas pessoas se identificaram com essa dificuldade. As pessoas acreditam que só elas sentem as coisas, e se acham problemáticas por acreditarem que só elas se sentem de uma determinada maneira. É bizarro, a internet nos aproxima e nos isola ao mesmo tempo!
DN – O quão doloroso é ter uma atividade artística como profissão?
Rachel – Tem um trecho de “Não Pense Em Crise, Trabalhe” em que escrevo “escolha um trabalho que ame e não passarás um dia sem relacionar seu valor próprio à sua produtividade”. Às vezes eu acho que todos deveríamos trabalhar com algo que não gostamos – trabalho é uma merda, de qualquer forma, então acredito que a melhor estratégia seja trabalhar com algo que você odeia e usar seu tempo livre para fazer o que você ama. O desenho sempre foi a minha válvula de escape, mas agora eu desenho sobre coisas que o desenho me faz sentir – a arte é muito pessoal, e é muito difícil encaixar algo pessoal dentro dos moldes do mercado. Como ser criativo e se doar artisticamente para algo que não faz parte de você?
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DN – Como está o cenário de ilustração de Brasília? A Feira Dente tem estimulado a produção independente?
Rachel – Acho que no Brasil inteiro, de um modo geral, tem crescido bastante. Eu fui na Feira Plana e fiquei chocada, é muita gente fazendo muita coisa incrível – Brasília não fica para trás. Na verdade, Brasília é uma cidade difícil, que promove a solidão, e a solidão está ligada à independência. Realizar uma feira como a Dente faz todas essas pessoas solitárias se conectarem, eu conheci muita gente quando expus nela.
DN – Você pode me falar mais sobre essa solidão que Brasília promove?
Rachel – Brasília foi uma cidade planejada, mas quem a planejou se esqueceu de que uma cidade tem que ser orgânica. Tudo é feito de carro, tem poucas árvores, pouco espaço de interação entre pessoas. Você sai de casa de carro, faz o que quer e volta para casa, sem qualquer forma de socialização. No Distrito Federal tem uma Lei do Silêncio absurda, é muito difícil fazer uma festa nessa cidade, todas as baladas e casas de show fecham suas portas. Ninguém fala com ninguém.
DN – Que conselho você daria para quem quer começar a fazer fanzines?
Rachel – Faça. Qualquer um pode fazer um fanzine, todos têm algo a dizer e sempre vai ter alguém para se identificar com o que você diz. O zine é barato e uma ótima ferramenta para compartilhar ideias, e as feiras de publicações independentes são muito acessíveis. É um cenário maravilhoso que deve ser explorado! Ah, e divulguem suas coisas na internet. Eu tenho tudo o que eu tenho hoje pois publiquei o “Everyday Thoughts On Everyday Things” no meu Tumblr.
Confira mais do trabalho da Rachel:
Instagram: @racheldenti
Facebook: /dentirachel