Mesmo antes de sua estreia, a série Cara Gente Branca, baseada no filme de mesmo nome (Dear White People, 2014, de Justin Simien – leia sobre ele AQUI) já causava alvoroço entre parte dos assinantes da Netflix, que ameaçaram, e alguns outros, de fato, cancelaram suas assinaturas por conta do tema principal que seria abordado na série. Para algumas dessas pessoas o racismo é algo que deveria ser tratado como cita o Lord Voldemort: “aquele que não deve ser nomeado”. Não ser nomeado, não ser discutido e nem ser combatido através dos meios de entretenimento, e por consequência, ter suas práticas perpetuadas e disseminadas em todas as esferas da sociedade.
Cara Gente Branca não se furta de fazer o debate contra a desigualdade racial de forma direta, contundente e até mesmo irônica em alguns momentos, por isso a série é tão necessária e importante. É uma das poucas que trata sobre as variadas formas com que o racismo e como as pessoas racistas se manifestam.
Seja através de uma festa em que pessoas brancas se fantasiam de negras (blackface), ou como em uma abordagem policial, onde ser negro é um sinônimo de suspeito. Vamos acompanhando ao longo dos capítulos outras formas, as vezes sutis, outras vezes mais agudas, em que o racismo afeta diretamente a vida das pessoas negras.
O formato de episódios mais curtos, que duram entre 20 e 30 minutos, fez com que temas como o colorismo (discriminação que hierarquiza pela tonalidade da cor da pele, quanto mais escura for a cor da pele mais racismo se sofrerá), afetividade e solidão da mulher negra – e do homem gay negro – e alguns personagens, não fossem mais aprofundados e nem tivessem ganhado o espaço merecido na série.
Talvez se a personagem da Coco, por exemplo, que é uma mulher negra de pele escura e cabelo crespo, ou do Lionel, que é gay, negro e nerd, fossem os protagonistas no lugar da Sam, que é uma mulher negra de pele mais clara e cabelo cacheado, esses temas pudessem ter tido mais destaque.
Apesar de se chamar Cara Gente Branca e apontar a responsabilidade das pessoas brancas na permanência das tensões e discriminações raciais, a série também tem o intuito de fazer uma crítica a certas posturas da militância negra, e é sobre isso que este texto pretende focar de agora em adiante, a partir de uma breve análise sobre as cinco principais personagens.
Então, será que existe uma única forma válida ou um jeito mais correto de luta política a favor da igualdade racial?
Além da questão racial, que é o principal eixo temático discutido na série, o debate sobre as variadas formas de militância e ativismo é um dos pontos altos (se não o melhor) desenvolvidos ao longo da temporada. Nos é mostrado que não existe um único jeito de lutar por igualdade racial, e o mais importante:
As pessoas lutam politicamente de acordo com as suas possibilidades e condições, sejam elas econômicas, físicas ou psicológicas e o lugar social que ocupam dentro de uma sociedade, que hierarquiza não somente pela questão racial (lembrem-se que gênero e classe são outros marcadores de hierarquização social) mas que tem muito a ver sobre a forma de militância que se escolhe (ou não) fazer.
Colandrea ‘Coco’ Conners
A personagem da Coco, como já foi dito anteriormente, é uma mulher negra de pele escura, que usa, a princípio, o cabelo alisado à custa de muitos puxões e sofrimento. Ela compreende a conquista e o acesso ao ensino superior como um lugar que vai lhe proporcionar ascensão social e financeira.
Ela quer pertencer e não mudar radicalmente as estruturas sociais. Vinda de uma família pobre e tendo conhecido de perto os efeitos nocivos da violência policial, Coco quer afastar-se dessa realidade e fazer parte de um outro espaço social, mesmo que em alguns momentos tenha que dissimular e fechar os olhos, ouvidos e boca diante de situações racistas.
Então, seria a Coco uma alienada que não luta pela causa? Não. O simples fato dela ter conseguido entrar para uma universidade e almejar romper com o script que as estatísticas impõem para uma mulher negra, por si só já é um ato de resistência e luta.
Cargos de subalternidade, menos acesso à escolarização, e hiperssexualização, são os espaços destinados as mulheres negras numa sociedade racista, e Coco luta a sua maneira, ou melhor, de acordo com as suas possibilidades e condições contra tudo isso.
Samantha White
No outro campo, que a principio, pode parecer oposto ao da Coco, temos a Sam, estudante negra que combate as situações racistas existentes na universidade. Indo para o combate direto, ela organiza manifestações e está à frente das reuniões que pautam como serão feitas as ações, usando um canal de rádio e redes sociais digitais para denunciar os racistas da universidade e expor as suas opiniões.
Então, seria Sam o modelo de militante perfeita a ser seguido? Não. Sam é uma jovem segura e com forte liderança. Mas segurança sobre si é um fator que está ligado à autoestima, e é mais fácil se ter uma boa autoestima quando se está encaixado nos padrões estéticos impostos, pois Sam é mulher negra de pele clara, magra, olhos claros e cabelos cacheados, e é interesse afetivo de dois personagens.
Ou seja, se encontra psicologicamente em condições de escolher uma postura militante em que bate de frente, pois sabe que os seus privilégios oriundos das concepções coloristas lhe possibilitam fazer isso de forma mais segura. Falar em público, estar a frente nos espaços de mobilização, sabendo que está sendo vista pelos outros, é algo feito com mais tranquilidade por quem não carrega tantos traumas com a sua imagem.
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Troy Fairbanks
No time masculino, temos o personagem do Troy, um homem negro, hétero, de classe média e com aspirações em seguir uma carreira política, (aspirações que são muito mais do seu pai do que realmente dele) que é cuidadosamente orientada por seu pai, que também é o diretor da faculdade.
Com futuro político e sabendo que a sua condição racial será um entrave em algum ponto para a sua carreira, Troy tenta fazer uma política conciliadora dentro da universidade. Por isso, almeja manter uma boa imagem e ser aceito entre gregos e troianos, assim como resolver as tensões raciais por vias institucionais, promovendo reuniões entre estudantes e a direção, para tentar fazer com que os casos de racismo não terminem em um maior acirramento entre os discentes.
Então, seria a militância conciliadora de Troy, o modelo mais adequado de luta a favor da igualdade racial? Não. Para Troy, é possível tentar conciliar porque suas experiências enquanto homem de classe média e hétero lhe permitem dialogar e ser ouvido com mais empatia, por quem também teve vivências parecidas com a sua, mesmo que estas pessoas sejam brancas, as experiências compartilhadas os aproximam em certo ponto, experiências que numa sociedade racista são restritas às pessoas brancas com poder aquisitivo.
Cabe mencionar que o Troy é um homem machista (quem viu a série percebeu várias situações em que ele se comporta de forma machista ao se relacionar afetivamente com algumas mulheres). Tentar conciliar quando se é homem é muito mais fácil, afinal, a desigualdade de gênero não o atinge diretamente.
Lionel Higgins
Representando quase que o inverso da figura do Troy, temos o personagem Lionel, um rapaz negro, gay (assumindo sua orientação sexual após a metade da série) e nerd. Lionel se manifesta contra o racismo investigando e escrevendo reportagens para um dos jornais da universidade, onde denuncia as práticas racistas que ocorrem dentro e fora do campus (como no caso da festa do blackface).
Como pessoa tímida que é, e estando em processo de começar a querer contar para as pessoas próximas sobre a sua orientação sexual, Lionel encontra na escrita uma forma de combater o racismo sem estar necessariamente se expondo ao público. Lionel também não está enquadrado na imagem do homem negro, tido como “tipo ideal”: alto, forte, viril e heterossexual.
Em algumas cenas, ele demonstra o quanto não está satisfeito com a sua imagem, e se sente inseguro para se aproximar das pessoas que tem interesse. Outra faceta importante que o personagem nos leva a pensar é sobre a homofobia praticada mesmo por quem luta contra racismo, e que os espaços de militância negra não estão isentos de cometerem homofobia e machismo.
Reggie Green
E por último, e não menos importante, temos o Reggie, um rapaz negro, que mantém quase sempre uma imagem de pessoa forte. Ele acredita e pratica uma militância combativa de bater de frente, bem ao modelo da Sam. Reggie é o protagonista de um dos momentos mais dramáticos na série, que envolve uma abordagem policial.
Mas é o desenrolar posterior a esse momento que traz uma reflexão sobre como o militante negro combativo também tem o direito, e precisa, às vezes, se resguardar, mostrando que não há problema em se sentir frágil e impotente diante de uma situação de violência. Reggie mostra que manter-se vivo num mundo racista também é uma forma de resistência e luta, diante de um Estado em que as nossas vidas valem menos.
No fim, e de forma certeira, Cara Gente Branca nos mostra que não existe um único jeito, melhor forma ou modelo para as pessoas negras lutarem contra o racismo. O recado é dado através das ações dos protagonistas, que resistem e lutam de acordo com o que lhes é possível fazer, diante dos outros marcadores sociais que também interferem em suas vidas (classe, gênero, orientação sexual).
Mesmo que por caminhos diferentes e utilizando estratégias variadas, os cinco jovens almejam uma sociedade racialmente igualitária, onde não sejam minorias nos espaços de prestígio social, como a universidade. Almejam que práticas racistas não mais sejam naturalizadas e que a cor deixe de ser um empecilho ou um dificultador das possibilidades de ascensão social.