Reportagens: a verdade no jornalismo em quadrinhos de Joe Sacco e por que não acreditamos em jornalismo imparcial

Reportagens: a verdade no jornalismo em quadrinhos de Joe Sacco e por que não acreditamos em jornalismo imparcial

O quão legítimas são as histórias em quadrinhos como um processo documental, como um formato jornalístico? O desenho pode ser considerado um método válido de representação do real, neste caso? O jornalismo não é objetivo, e o desenho, subjetivo? Esses e outros questionamentos são problematizados pelo quadrinista Joe Sacco, no prefácio do livro “Reportagens” — “Journalism”, na versão original — traduzido por Érico Assis e lançado no Brasil pela Companhia das Letras.

Sacco afirma que sim, o desenho é sempre subjetivo, inclusive quando baseado em uma fotografia — considerada por muitos (e, aparentemente, até pelo próprio Sacco) um processo narrativo puramente factual.

O que ele não menciona é que mesmo as fotografias são subjetivas: por mais que elas dependam de objetos e cenários reais para serem produzidas, diversos elementos fotográficos — como o foco, o enquadramento e a escolha do que será fotografado — fazem parte de análises subjetivas do fotógrafo.

As discussões que rondam a veracidade do fotojornalismo têm se tornado cada vez mais recorrentes, principalmente diante do avanço da tecnologia e dos novos softwares de tratamento fotográfico. Até que ponto uma fotografia pode ser modificada sem que a validade documental desta seja dissipada?

Reportagens

Não existe jornalismo “imparcial”. Cada vírgula, cada hierarquização de fatos, cada passo do processo de produção e edição de uma notícia, reportagem ou entrevista é guiado pelas crenças e ideologias de quem as faz.

A partir do momento em que você — ou o agendamento, ou a redação, ou o editor-chefe — define o que vale a pena ou não ser noticiado, existe um teor de parcialidade na prática jornalística. O jornalismo é uma mediação humana dos fatos — e mediações humanas sempre trazem consigo uma carga de opinião.

Joe Sacco tem uma visão que, de certa forma, pode ser resumida neste trecho: “Não acredito que a maioria dos jornalistas consiga abordar um fato, seja qual for a sua relevância, com ‘objetividade’. Eu, decerto, não consigo”.

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No entanto, é importante destacar que existe uma grande diferença entre parcialidade e manipulação, logo, as escolhas de um jornalista devem ser muito mais guiadas por princípios éticos e profissionais do que meramente por convicções pessoais.

Por mais que um jornalista seja incapaz de representar o real por completo, ou tenha que escolher a parte do real que deve ser representada, ele ainda tem um compromisso com a verdade e deve se esforçar para representá-la o máximo possível — isso é o que o senso comum chama de “jornalismo imparcial”.

Ainda no prefácio de “Reportagens”, Sacco faz menção à seguinte citação do jornalista Edward R. Murrow: “Toda pessoa é prisioneira de sua experiência. Ninguém consegue eliminar seus preconceitos — mas tão somente reconhecê-los”.

E é através do reconhecimento destes preconceitos que nasce a possibilidade de, quem sabe, um jornalista qualquer praticar um jornalismo mais justo e livre de achismos. Dito isso, é fácil — e coerente — afirmar que o jornalismo em quadrinhos é um formato jornalístico tão válido quanto qualquer outro.

Reportagens

Em “Reportagens”, Sacco defende as histórias em quadrinhos como formato jornalístico aproximando suas práticas às práticas dos formatos convencionais: jornalistas-quadrinistas também atém-se às falas dos entrevistados ou têm a obrigação de checar as informações que veiculam, por exemplo.

No entanto, os jornalistas-quadrinistas ainda têm desafios maiores: o exemplo proposto por Sacco diz que o chamado “repórter tradicional” pode descrever um comboio da ONU meramente como “comboio da ONU” e prosseguir com sua reportagem; já o jornalista-quadrinista tem que se preocupar com uma série de questões representativas — “como são os veículos do comboio? Como são os uniformes dos operativos da ONU? Como era a estrada? E o cenário de fundo?”, ele questiona.

O autor prossegue afirmando que não existe um manual de estilo para jornalistas-quadrinistas, portanto, não está definido o quão detalhada sua reportagem deve ser em termos visuais. No entanto, segundo o próprio, seu estilo busca detalhar as pessoas envolvidas em suas reportagens o máximo possível. Os desenhos que representam coisas que não foram vistas, mas sim narradas pelas fontes ao autor, são apoiados por pesquisas com bases temporais, espaciais e situacionais.

Diferentemente dos jornalistas convencionais, Joe Sacco busca representar também sua interação com os entrevistados — ele afirma que essa interação, constantemente subtraída dos produtos jornalísticos tradicionais, muitas vezes são mais interessantes do que o próprio conteúdo noticiado.

Ele ainda pontua que a presença do jornalista em um determinado ambiente sempre interfere no fenômeno e em seu funcionamento. Outra reflexão que Sacco propõe é até quando é justo fazer um jornalismo “equilibrado”.

Segundo ele, o equilíbrio jornalístico não se dá quantitativamente, ou seja, não é resultante de um mesmo número de citações ou menções a ambos os lados. “Tenho interesse sobretudo por aqueles que raramente são ouvidos”, afirma o quadrinista, “e não creio que caiba a mim equilibrar suas vozes com as apologias bem escovadas dos que detêm o poder. Os poderosos geralmente estão muito bem servidos pela mídia massiva ou pelos órgãos de propaganda ideológica”. O sensato Joe Sacco, mais uma vez, está certíssimo.

Reportagens

“Reportagens”, uma compilação de quadrinhos sobre múltiplas guerras e conflitos políticos — dos territórios palestinos à Chechênia, passando pela Índia camponesa — é um livro didático e detalhado que demonstra empatia para/com as vítimas da crueldade e ambição humana — evitando, é claro, um viés sensacionalista (apesar de muitas vinhetas ilustrarem chacinas e corpos ensanguentados).

A maioria das reportagens é realizada em preto e branco, outras poucas, coloridas por Rhea Patton. O sensível traço de Sacco busca ilustrar emoções não só através de personagens extremamente expressivos, como de um sombreado belíssimo e de um detalhamento de cenários muito característicos — essa é a qualidade mais marcante do estilo de Sacco, eu diria.

 

O livro é muito bem organizado e tem uma diagramação impecável. Ao final de cada reportagem, o quadrinista divulga anotações sobre suas experiências pessoais durante o processo de apuração, que trazem também referências externas ou menções aos veículos em que estas foram publicadas.

É interessante perceber que algumas reportagens trazem gráficos e mapas muito bem representados: a reportagem “Por dentro da cidade de Hébron”, por exemplo, traz uma vinheta que mostra a divisão entre palestinos e israelenses na cidade de Hébron. “Os indesejáveis”, uma das melhores e mais longas reportagens — sobre imigrantes ilegais do Mar Mediterrâneo que viajam em direção à Europa e embarcam em Malta, o país de origem de Sacco — traz uma vinheta excelentemente detalhada, esquematizando as migrações de parte dos africanos ao norte do continente (em direção à Líbia e, em seguida, à Europa).

Reportagens

 

As reportagens de Sacco não vêm com um tom impessoal e genérico, mas verdadeiramente narrativo — o quadrinista escolhe personagens muito específicos, com nomes e histórias próprias, para desenvolver seu ponto de vista.

Creio que a escolha dessa estratégia narrativa, que se aproxima muito do jornalismo literário, se dê pelo formato escolhido — histórias em quadrinhos, necessariamente, precisam de personagens para serem desenvolvidas. Em “Reportagens”, tal qual qualquer história em quadrinho, existe o desafio de jamais desprender a narrativa textual da visual — e nesse quesito, Joe Sacco demonstra ter completo domínio tanto no jornalismo quanto nos quadrinhos.


ReportagensReportagens

Autor/ Ilustrador: Joe Sacco

Quadrinhos na Cia.

200 páginas

Onde comprar: Amazon

Escrito por:

11 Textos

Estudante de Comunicação Social com ênfase em Jornalismo. Apaixonada por música, documentários, artes visuais, quadrinhos e publicações independentes. Fascinada por contracultura e gente maluca.
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