Hibisco Roxo: a colonização da Nigéria no primeiro romance de Chimamanda

Hibisco Roxo: a colonização da Nigéria no primeiro romance de Chimamanda

Uma menina adolescente está em pé em uma banheira falando com o seu pai. Após um rápido diálogo, onde ele acusa ela de ter pecado, ele decide puni-la e derrama água fervente em seus pés. Essa cena pode parecer absurda (e de fato é) para nós leitores, mas para Kambili, a narradora e protagonista do primeiro romance de Chimamanda Ngozi Adiche, Hibisco Roxo (Companhia das letras, 2003), é só mais uma das várias punições de seu pai, um católico fanático.

“Entrei na banheira e fiquei parada, olhando para ele. Não parecia que Papa ia pegar um galho, e senti o medo, ardente e inflamado, encher minha bexiga e meus ouvidos. Não sabia o que ele ia fazer comigo. Era mais fácil quando eu via o galho, porque podia esfregar as palmas das mãos e retesar os músculos das panturrilhas para me preparar. Mas Papa jamais me pedira para ficar de pé dentro da banheira. Então percebi a chaleira no chão, ao lado dos pés de Papa, a chaleira verde que Sisi usava para ferver água para o chá e para o garri, aquela que apitava quando a água começava a ferver. Papa apanhou-a.”

A vida da protagonista em Hibisco Roxo não representa aquela de uma adolescente nigeriana comum. Filha de um homem importante e respeitado, que é dono de um jornal e de várias outras empresas, Kambili cresce em um ambiente privilegiado, uma casa grande com motoristas, empregadas e cozinheiras a sua disposição. Nessa casa, ela, sua mãe Beatrice e seu irmão Jaja vivem conforme as regras de seu pai Eugene, sofrendo diversos tipos de violências físicas e psicológicas.

A família janta sempre junta e vai à igreja regularmente, as crianças estudam em uma escola particular prestigiada onde as aulas são apenas em inglês e são obrigadas a seguir um cronograma rígido de estudos para serem sempre os melhores da turma.

É nesse dia a dia monótono que começa a história de Hibisco Roxo. Kambili descreve com naturalidade a submissão da sua mãe perante o pai, em um ambiente onde todos seguem rigorosamente as tradições católicas. Mas, a trama muda quando ela e seu irmão viajam para a casa da tia Ifeoma, irmã de Eugene. Lá, eles entram em contato pela primeira vez com a realidade nigeriana e com a cultura do seu país. 

Kambili passa a conhecer o mundo de sua prima Amaka, que ouve música local no volume alto enquanto conversa com seu grupo de amigas sobre cultura pop. Jaja passa a conversar com seus primos e aprende a cultivar flores no jardim. Os dois observam com curiosidade as diferenças entre a sua casa grande, sempre limpa e quieta, e a casa da tia onde todos dividem quartos e tarefas domésticas, mas também brincam, riem, rezam e cantam juntos todos os dias.

 

Pela primeira vez a protagonista passa a questionar as regras rígidas com as quais está acostumada, e amadurecer conforme passa a entender mais sobre uma realidade diferente da sua. Ao mesmo tempo, ela passa por descobertas da adolescência que até então não existiam em seu mundo superprotegido, como a do primeiro amor e a da necessidade de se sentir incluída em grupos de outras meninas. 

A colonização inglesa em Hibisco Roxo

Assim como o Brasil, a Nigéria também sofreu colonização europeia, entretanto, diferente da gente, o país só conseguiu a sua independência do Reino Unido em 1960 e logo passou a sofrer diversos golpes militares (foram 8 golpes durante o século XX). Nesse contexto, é possível entender a importância de uma história como Hibisco Roxo que, através dos olhos de uma menina de 15 anos, consegue nos fazer entender melhor sobre a história e a política de um país pouco conhecido.

Diferente do que muitas vezes nos é ensinado, o processo de colonização de um povo não acontece de forma rápida e homogênea, e não é apenas na base da violência física. O pai de Kambili, por exemplo, é um exemplo disso, pois é um personagem que representa os efeitos da intervenção branca em um país africano.

Eugene é um homem negro que acredita que tudo que vem dos brancos europeus é melhor. Apesar de ter crescido com um pai que acredita nos rituais religiosos nigerianos, ele se tornou adepto do catolicismo inglês depois de estudar em uma escola de missionários que o catequizaram.

A sua ascensão financeira e profissional estão relacionadas ao fato dele negar as suas origens, sempre considerando padres e empresários brancos mais respeitosos. Ele espelha seus hábitos, sua cultura e seus negócios naquele que é considerado o modelo de “povo civilizado”. 

Além de ser autoritário com os filhos e a mulher, ele renega o pai que já é idoso, pois o considera um “pagão” e um pecador. Ele impede também que seus filhos falem a língua local igbo e que aprendam as antigas canções do povo nigeriano. Aos poucos, Eugene destrói a própria família ao impor regras rígidas católicas na vida deles, criando uma metáfora para a colonização cultural e religiosa em países do continente africano.

Apesar desse ser seu primeiro romance publicado, Chimamanda consegue desenvolver uma escrita orgânica e envolvente, que anos depois viria a torná-la famosa com o romance Americanah e a palestra “Sejamos todas feministas”.

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Em Hibisco Roxo, a autora já consegue tratar de assuntos complexos que vão desde a situação política do seu país ao amadurecimento de uma menina adolescente. Para quem ainda não leu nenhum título de Chimamanda, fica aqui o convite para começar com esse livro, e também o aviso de que você provavelmente terminará Hibisco Roxo com saudades da protagonista e dos outros personagens cativantes. 


Hibisco RoxoHibisco Roxo

Autora: Chimamanda Ngozi Adichie

Companhia das Letras

328 páginas

Este livro foi cedido pela editora para resenha

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Feminista. 20 anos. Libriana indecisa com ascendente em leão que sonha em viajar o mundo. Estudante de publicidade e propaganda, apaixonada por séries, livros, filmes e levemente viciada em ver fotos de animais fofinhos na internet.
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