A guerra não tem rosto de mulher: o campo de batalha constante das mulheres

A guerra não tem rosto de mulher: o campo de batalha constante das mulheres

Em 1978, a bielorrussa Svetlana Aleksiévitch era uma jornalista de 30 anos que se propôs uma jornada monumental e também arriscada: contar a história de suas conterrâneas – na época, a União Soviética ainda estava de pé – que participaram da grande Guerra Patriótica, como os soviéticos se referem à participação do bloco na II Guerra Mundial, quando venceram os nazistas dentro e fora de seus territórios. A jornalista não falaria do esforço feminino de guerra em casa, para apoiar os soldados que lutavam, tema comum quando se relacionam mulher e guerra. O livro trataria das mulheres que foram à guerra e, portanto, estiveram no front, como franco-atiradoras, tanquistas, sapadoras*, enfermeiras, padeiras, lavadeiras, telefonistas e mensageiras.

Se ainda hoje este tema é visto como algo menor, nos anos 70 a resistência era ainda maior. Uma história concentrada na vida das mulheres começava a tomar fôlego, por meio do movimento feminista, mas Aleksiévitch não era uma acadêmica e, além disso, vivia sob o regime da Cortina de Ferro, onde imperava a censura a tudo o que pudesse “envergonhar” a história do exército soviético – e falar das mulheres, de suas dores, experiências, desafios e pensamentos enquanto estavam na guerra, era algo menor, supérfluo; em suma, vergonhoso, “coisa de mulherzinha”. A honra dos homens, feita de grandes feitos e atos dramáticos de coragem, não suportaria tal baque.

Porém, Aleksiévitch insistiu. Durante sete anos, entrevistou dezenas de mulheres. Do baú físico e do baú da memória saltaram inúmeras fotos, medalhas e relatos que humanizaram aquela guerra que era contada em prosa, verso e música por toda a nação como uma batalha épica e impecável. Quase 40 anos depois, em 2015, a autora foi laureada com o Prêmio Nobel de Literatura, sendo que esta obra é sempre citada com a mais emblemática de sua carreira. Importante mencionar que, mesmo pós ter publicado o livro pela primeira vez em 1985, a autora voltou a entrevistar mulheres e incluir novos relatos, até finalizá-lo novamente em 2004. Ali estão presentes tanto o que a censura havia reprimido quanto novos depoimentos de mulheres que a procuraram após lerem a primeira versão.

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A voz da autora, em si, aparece pouco, sempre em primeira pessoa – o coração do livro é construído por meio da voz direta das mulheres, em relatos que podem tanto ocupar várias páginas ou se resumir a duas linhas. Alguns, inclusive, questionaram a premiação da autora, afirmando que a mesma não necessariamente escreve, mas apenas transcreve suas histórias. Bobagem. O trabalho de Aleksiévitch é essencialmente jornalístico, e seu grande mérito está não somente na escrita – que alterna entre a narração de suas próprias memórias, o ensaio histórico e a descrição de seus encontros com as mulheres, uma espécie de making off da obra-, mas na apuração monumental, na seleção de suas entrevistas e também do que cada ex-combatente lhe contou.

Em relação à descrição que traz dos encontros com as mulheres, estas falam tanto quanto o próprio relato das ex-soldados, como quando foi à casa de uma delas para ouvi-la, e chegando lá, deparou-se com o marido da mulher, também ex-combatente. O marido havia instruído a esposa sobre o que dizer à jornalista – apenas as cenas consideradas grandiosas, sempre protagonizadas por homens. Ao ver que a mulher não se concentrava no que havia sido determinado, manda-a para a cozinha para fazer o chá.

Cenas como essa, contadas pela autora, mostram como as mulheres não tiveram direito a falar de suas particularidades. Muitas, inclusive, esconderam que lutaram, pois sofriam preconceito: eram vistas como antinaturais e até promíscuas. Num mundo machista, a discriminação é sutil: deu-se não pela exclusão aberta, mas por meio do recurso da universalização das experiências que, ao fim e ao cabo, se resumem às experiências dos homens, que nunca se veem de forma particularizada – afinal, homens se veem como seres humanos, e mulheres são mulheres.

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O que não quer dizer que as mulheres pensavam a guerra de forma distinta porque nasceram com útero ou porque teriam um cérebro diferente. A grande questão é: em um mundo machista, que separa as pessoas por meio de seu gênero, a experiência de homens e mulheres é construída de forma diferente. Neste sentido, as mulheres eram vistas de forma diferente no front. Sofriam discriminações e paternalismo, não tinham acomodações e uniformes pensados para elas, precisavam a toda hora provar o seu valor e justificar sua presença ali, estavam expostas a riscos muito maiores (como o do estupro) e realizam funções a mais, que não eram dadas aos homens com muita frequência (enfermeiras, padeiras e lavadeiras).

*Sapador/a é o termo utilizado para denominar o/a soldado que desempenha funções de engenharia militar, tendo como tarefas as ações de montar e desmontar minas, as de demolição e a construção de fortes, pontes e demais edificações em geral.

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A autora, Svetlana Aleksiévitch, Prêmio Nobel de Literatura de 2015

O silêncio sobre o estupro na guerra

Um assunto não abordado por Svetlana certamente fez falta: a questão da violência sexual contra a mulher na guerra. Infelizmente, estupro e assédio sexual são violências comuns sofridas pelas mulheres que servem as Forças Armadas – na americana, uma mulher tem mais chances de ser estuprada por um colega ou superior do que ser morta em combate pelo fogo inimigo.

É fato que este tema sempre foi negligenciado pelo alto-comando das Forças Armadas – numa visão imensamente misógina e punitivista, entende-se que a violência sexual é o preço que tais mulheres devem pagar por ousarem se intrometer em um ambiente masculino.

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Cartaz soviético busca angariar as mulheres para o esforço de guerra

Outra questão é o fato de que a História é contada pelos (homens) vencedores, e trazer à tona episódios de estupro cometidos pelos soldados contra mulheres do país inimigos e principalmente contra suas próprias companheiras de combate e cidadãs de seu país é visto como um ato de traição que teria como objetivo envergonhar aqueles que lutaram e morreram pela pátria e pela liberdade – ainda mais na União Soviética, onde imperava a censura em relação a tudo o que fosse contra os “interesses do Estado”.

Surgem cadas vez mais relatos de que, ao entrarem em Berlim, os soviéticos estupraram coletivamente inúmeras cidadãs alemãs – um episódio é inclusive citado no livro –, mas ainda há enorme negação por parte do governo e até da população que vive da nostalgia da guerra. Sobre o estupro de mulheres dentro dos regimentos, nada se fala.

A vergonha e o medo da culpabilização certamente também pesam para esse silêncio. Falar sobre seus medos, sonhos, amores e problemas já era visto como uma ninharia, algo menor. Falar sobre ter sido violentada seria algo ainda mais terrível. Muitas mulheres, depois que voltaram da guerra, sofreram ostracismo por parte da população – inclusive de outras mulheres, que viam as ex-combatentes como suspeitas de terem ido à guerra com o objetivo de seduzir os homens das mulheres que ficaram em casa.

Muitas, como o livro demonstra, sofriam injúrias de cunho sexual, eram chamadas de putas e vadias, mulheres fáceis e promíscuas. Mesmo anos após o fim da guerra, qual seria o risco de uma ex-soldado afirmar que fora assediada ou estuprada? Certamente, ou seria acusada de mentir para ofender a moral dos combatentes, ou então seria acusada de ter, na verdade, seduzido os companheiros e depois se arrependido de tal ato. Ou então, seriam acusadas de terem contribuído para a violência, já que eram vistas como seres estranhos ao ambiente da guerra.

Um recurso que poderia ter sido adotado pela autora é o dos depoimentos em off, sem identificação da personagem. Não se sabe, no entanto, se a autora simplesmente não pensou em abordar este tema, ou se surgiu alguma dificuldade para abordá-lo. É uma ausência relevante que, de toda forma, fruto ou não de uma escolha, é algo que faz falta. Isso, no entanto, não diminui a grandiosidade da obra, que presta um grande serviço e uma justa homenagem àquelas mulheres que tanto se sacrificaram e que pouco foram reconhecidas.

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A franco-atiradora Lyudmila Pavlichenko, fotografada durante a guerra

Jornalismo de imersão feito por mulheres

Qualquer estudante de Jornalismo, com notáveis exceções, deve se lembrar de que, durante a faculdade, poucos foram os livros-reportagem escritos por mulheres citados, recomendados e lidos durante o curso. O Jornalismo é uma profissão que pouco prestigiou e prestigia as mulheres. Pode-se dizer, por meio de um trocadilho com a obra aqui resenhada, que o Jornalismo não tem rosto de mulher.

Neste sentido, a premiação de Svetlana com o Prêmio Nobel de Literatura, com base em suas obras documentais que também podem ser chamadas de Literatura de não-ficção ou simplesmente de grandes reportagens históricas, é um reconhecimento de que mulheres também realizam um trabalho de apuração jornalística, de escrita e de edição dignos de atenção e prestígio.

Além disso, também são um reconhecimento de que reportagens sobre mulheres e suas experiências também merecem ser contadas. Embora a autora não tenha se especializado apenas em personagens femininas, “A guerra não tem rosto de mulher” é o carro-chefe de sua obra, tanto que foi a escolhida para ser o primeiro lançamento de Svetlana no Brasil, pela Companhia das Letras. Reconhecimento merecido.

Entrevista com a autora, durante a Festa Internacional Literária de Paraty, em 2016:


A Guerra não tem rosto de mulher

Autora: Svetlana Aleksiévitch

392 páginas

Editora Companhia das Letras

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Para saber mais:

A Guerra invisível (legendado em português) – sobre estupros contra mulheres que servem as Forças Armadas dos Estados Unidos

A batalha de Sebastopol (trailer) – sobre a vida de Lyudmila Pavlichenko, a maior franco-atiradora do exército soviético durante a II Guerra Mundial

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