O documentário Górgona, dirigido por Pedro Jezler e Fábio Furtado, é o resultado de seus cinco anos de trabalho acompanhando o espetáculo teatral “As Três Velhas”, do chileno Alejandro Jodorowsky, dirigido e encenado por Maria Alice Vergueiro – conhecida como a “Velha Dama Indigna” do teatro paulistano. Górgona está em cartaz desde sua estreia, no dia 29 de março.
Maria Alice Vergueiro, com 83 anos, dirige e encena a peça ao lado de Luciano Chirolli, Danilo Grangheia e Paschoal da Conceição. O espetáculo é uma comédia sobre a decadência e a insanidade de duas velhas irmãs marquesas e octogenárias que vivem na miséria, assombradas pelo passado. Garga, a centenária criada das irmãs – papel de Maria Alice – exerce a função de advogado do diabo, provocando situações que ora levam as irmãs à loucura ora as trazem de volta à realidade.
Durante esses cinco anos, os diretores acompanharam o grupo realizando registros somente da coxia, nos momentos em que os atores reuniam-se para repassar falas, maquiar-se e tratar de assuntos relativos ao espetáculo. Por este motivo, propositalmente, talvez, é possível acompanhar de perto a intimidade do grupo e conhecer as dificuldades de se realizar espetáculos teatrais aclamados pela crítica, mas que não atraem visibilidade do grande público, tão pouco dos patrocinadores – que preferem investir financeiramente em projetos que envolvam nomes de figuras carimbadas da televisão.
Além de acompanhar a turnê do espetáculo, Górgona permite-nos conhecer um pouco do talento e da intimidade de Maria Alice Vergueiro que, octogenária e acometida pelo Mal de Parkinson, mantém-se ativa e ainda trabalhando no teatro.
Maria Alice Monteiro de Campos Vergueiro, conhecida como Maria Alice Vergueiro, ou ainda, a “Velha Dama Indigna”, nascida em 1935, de família quatrocentona, é pedagoga, professora universitária e atriz de teatro, tendo passado pela televisão e pelo cinema.
Estreou no teatro em 1962, com o espetáculo “Mandrágora”. Passou pelo Teatro Oficina, onde atuou na montagem histórica de “O Rei da Vela” (que mais tarde virou filme). Fundou o Teatro Ornitorrinco ao lado de Cacá Rosset e Luiz Roberto Galízia, e foi professora de teatro na Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da mesma universidade.
Atuou em cerca de 31 espetáculos teatrais, dos quais foi diretora de alguns. No cinema, participou de aproximadamente 12 filmes, tendo feito também algumas novelas e dois curtas para o Youtube – um deles, “Tapa na Pantera”, ficou conhecido e viralizou nas redes.
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O documentário Górgona presta uma homenagem a essa mulher que mantém-se viva e relevante por tanto tempo num nicho teatral conhecido como alternativo, underground e marginal – que sobrevive do talento de atrizes e atores que trabalham intensamente todos os dias, muitas vezes até pagando de seus próprios bolsos para manterem-se no palco.
Maria Alice, assim como todos, enfrenta as dificuldades do envelhecimento, além do desafio de viver com Mal de Parkinson, a proximidade da morte e as recordações da infância – o que torna, em muitos momentos, o documentário grotesco e um tanto exagerado, exatamente como no espetáculo “As Três Velhas” encenado pelo grupo.
Vale mencionar que Górgona (que dá nome ao filme) é uma criatura da mitologia grega, representada como um monstro feroz, de aspecto feminino, com grandes presas. Tinha o poder de transformar em pedra aqueles que olhassem para ela. O mito conta que haviam três Górgonas, filhas de Fórcis e Ceto – Medusa, Esteno e Euríale – extremamente belas e com cabelos invejáveis, porém, eram desregradas e sem escrúpulos.
Atenas, deusa da sabedoria, irritada com o comportamento das três irmãs e consternada com o fato delas serem idênticas a ela, deformou a aparência de todas, transformando seus lindos cabelos em serpentes, e seus belos dentes em presas de javali. Atenas condenou-as a transformar em pedra tudo aquilo que as olhassem e, assim, o belo olhar das Górgonas tornou-se algo perigoso.
Envergonhadas e desesperadas por seu infortúnio, as Górgonas fugiram para o Ocidente e esconderam-se na Ciméria, conhecida como “o país da noite eterna”. Talvez não tenha sido à toa que Pedro Jezler e Fábio Furtado tenham escolhido o “Mito de Górgona” para o título desse belo documentário sobre essa dama obscena, transgressora, desbocada e com um grande senso de humor, capaz de fazer do excesso e da vulgaridade um maravilhoso exercício da arte.
Assim como em “As Três Velhas” ou no “Mito de Górgona”, Maria Alice Vergueiro ainda é capaz de fazer com que seu público apaixone-se por ela e por sua capacidade de interpretar grandes textos, dando vida a personagens difíceis e desafiantes.