O Bosque: a falta de sororidade entre as personagens femininas da trama

O Bosque: a falta de sororidade entre as personagens femininas da trama

O Bosque é dirigido por Julius Berg e ambientado numa pequena cidade francesa. A série tem início com o desaparecimento de uma garota e do mistério envolvendo sua relação com outras duas meninas, estudantes do mesmo colégio. No decorrer das buscas, a polícia e a personagem protagonista Eve Mendel destrincham um quebra-cabeças de mistérios e segredos envolvendo os habitantes do local.

Nos dizeres da filósofa Simone de Beauvoir, “o opressor não seria tão forte se não houvesse cúmplices entre os próprios oprimidos”; transportando tal reflexão para a questão de gênero, podemos discernir que o patriarcado possui um sólido alicerce, composto de ideologias de hierarquização de poder do masculino sobre o feminino. A desigualdade na relação de gêneros é historicamente reproduzida por homens, que pouco se importam em problematizar o modelo de masculinidade que condiciona a mulher à posição social de subalternamento (pois, para cada grupo social oprimido há uma parcela opressora que não quer abrir mão de seus privilégios), bem como por mulheres que endossam o status quo predominante, atuando como verdadeiras vigilantes do patriarcado.

Já no primeiro episódio de O Bosque (La Fôret), série de origem francesa transmitida pela Netflix, deparamo-nos com situações que mostram a falta de sororidade entre as personagens femininas da trama. Em mais um dia comum, as mães levam os filhos até a escola, e ao perceberem a chegada de Gaspard Deker (Samuel Labarthe), o novo capitão da polícia, indagam à amiga e policial local, Virgine Musso (Suzanne Clément) sobre o estado civil do capitão. Ao saber que este é divorciado, logo começam o falatório e julgamento moral acerca da vida privada da professora de francês, Eve Mendel (Alexia Barlier), afirmando que “a professora certamente vai pegar o capitão, pois ela pega todo mundo”.

Uma mensagem-chave muito presente no movimento feminista, mas ainda pouco exercida no cotidiano das mulheres em nossa sociedade culturalmente falocêntrica, é o sentimento de sororidade que significa a união e aliança entre mulheres, baseado na empatia e companheirismo, em busca de alcançar objetivos em comum. O patriarcado se utiliza de muitos instrumentos ideológicos e formas de pensar, construídos culturalmente e socialmente; como a mentalidade de que as mulheres são rivais umas das outras.

Desde muito cedo, somos instruídas a não reconhecer na outra uma aliada, mas uma adversária que está competindo conosco. E assim, vamos moldando o sentimento de não pertencimento ao ser mulher, deixando de admirar o legado de muitas mulheres. Pelo contrário, enxergamos na outra uma ameaça e passamos a disputar os holofotes dos olhares masculinos, como se estivéssemos sempre num ringue. A partir desse sentimento de rivalidade que o patriarcado nos incute, não raro, começamos a condenar moralmente o comportamento da outra, a censurar sua roupa e a reprovar sua vida sexual. Ou seja, ainda que de forma inconsciente, mas naturalizada por estar arraigado em nossa cultura, exercemos o controle social da vida de outra mulher, corroborando com a opressão do patriarcado.

Virgine Musso (Suzanne Clément) e Vicent Musso (Frederic Diefenthal) na série O Bosque
Virgine Musso (Suzanne Clément) e Vicent Musso (Frederic Diefenthal)

Na narrativa seriada O Bosque, uma garota de 16 anos desaparece e seu corpo é encontrado na floresta. Um dos suspeitos passa a ser o marido de Virgine, Vicent Musso (Frederic Diefenthal). Ela é uma das policiais que está trabalhando nas investigações para solucionar o crime. No curso das investigações, descobre-se que o marido de Virgine estava tendo uma relação extraconjugal com  a adolescente assassinada, que por sua vez, era colega de escola e amiga de Maya, filha do casal.

Apesar da estupefação e do desconforto de Virgine ao saber que o marido a traía com uma menor de idade e amiga de Maya, a policial ainda cogitou perdoá-lo, só se eximindo de fazê-lo porque as mentiras do marido foi o estopim para que Maya também desaparecesse de casa. Ou seja, Virgine não demonstra revolta sobre o fato de seu marido – um homem já experiente – ter um relacionamento com uma adolescente. Ela se sensibiliza com a violência e morte sofridas pela vítima, porém, não mostra empatia, chegando a questionar o marido sobre quando ele começou a ter atração sexual pela adolescente e, quantas vezes, eles fizeram sexo; como se estivesse numa relação de competição pelo desejo sexual do marido que se sentia atraído e “seduzido” por uma mulher mais jovem.

Tal fato evidencia uma preocupação maior em descobrir o que a outra tinha e que lhe faltava, dando ensejo à traição, do que ater-se ao grave evento de que o seu marido, um homem bem mais velho, estava tendo relações sexuais com uma menor de idade em processo de formação de discernimento e de personalidade.

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Eve Mendel: uma mulher que não teme ser ela mesma

Muito fora da curva das demais personagens femininas da trama, está a protagonista Eve Mendel, interpretada pela atriz Alexia Barlier. Apesar de ser sexualizada na narrativa, a professora de francês foge do conceito de “boa moça”, segundo a lógica da norma hegemônica do patriarcado. Eve mora sozinha e perto da floresta. Ela não tem um namorado ou marido, mas tem uma vida sexual bem resolvida. E por ser uma mulher que destoa do padrão tradicional e conservador traçado pelo patriarcado, ela tem uma reputação maculada entre os moradores da cidade.

Eve Mendel: uma mulher que não teme ser ela mesma
Eve Mendel (Alexia Barlier)

Eve é considerada a “piranha” que pega todo mundo, simplesmente por ser uma mulher à maneira do que os homens costumam ser: livres para ser o que eles querem. Logo que Eve suspeita do desaparecimento da adolescente que é sua aluna, ela recorre até a autoridade policial – no caso, o chefe de polícia Gaspard – para pedir providências e apuração sobre o caso. Virgine, então, sem mostrar qualquer sentimento de sororidade, logo tenta desacreditar e invalidar a versão e preocupação da professora perante Gaspard.

Dos muitos pensamentos hegemônicos que precisamos subverter para alcançarmos igualdade de gênero, está a falsa noção de que nós mulheres temos de competir umas com as outras, na disputa pela aprovação e preferência de um homem. É urgente o despertar de consciência de que ou somos livres juntas ou somos escravas juntas. Não é apontando o dedo para a sexualidade ou o tamanho da roupa da outra que conseguiremos avançar num projeto de sociedade mais justo e igualitário para todos e todas.

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Jornalista, pós-graduada em Comunicação, Semiótica e Linguagens Visuais, estudante de Direito, militante femimista, autora do livro A Árvore dos Frutos Proibidos, desenhista, cinéfila e eterna aprendiz na busca do aprender a ser.
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