Dentre os muitos problemas que o jogo “Cyberpunk 2077“, da CD Projekt RED, já vem apresentado em seus conceitos, apontados em entrevistas, gameplay, divulgação e outros, se encontra uma “suposta” representatividade de pessoas transgênero. Não é o objetivo aqui entrar em detalhes nos muitos problemas conceituais que vem surgindo, focando apenas na questão da representatividade da mulher transgênero; também não se fala que o jogo “é ruim” ou “bom”, claro que se fala de um jogo que ainda não foi lançado e o foco é sobre elementos que surgem sobre ele a partir da própria desenvolvedora, elementos estes que trazem abordagens conflituosas com propostas divulgadas.
Inicialmente, podemos pensar que “Cyberpunk 2077” será um jogo “possível” de resolver os profundos problemas de representatividade, machismo e objetificação da mulher que existem no “The Witcher 3“, jogo que tornou a CD Projekt RED mundialmente conhecida. Apesar do “The Witcher 3” ser um bom jogo e ter uma boa gameplay, é um jogo que não traz representatividade real -e, inicialmente, isso, talvez, pudesse ser pela história que o jogo narra, sobre a saga de Geralt de Rivia, e portanto se “fecha” neste personagem.
Como “Cyberpunk 2077” tem outra proposta – e é Cyberpunk, um gênero de representatividade, discurso político, questionamentos e discursos sobre minorias -, naturalmente surge a expectativa de que fosse um jogo com preocupações genuínas neste sentido, uma vez que em “The Witcher 3” temos uma “pincelada” de representatividade, que surge de forma vaga e superficial, sugerindo estar ali só para “dizer que tem” sem, no entanto, entregar isso em experiência a quem está jogando.
Sobre a questão da mulher transgênero, foi noticiada e divulgada uma imagem do jogo na qual teria uma imagem de mulher transgênero, e isso sendo colocado como “representatividade da mulher trans”, e talvez seja importante falar que representatividade é um termo que busca indicar a construção de representação, dar voz ou trazer à sociedade, como um todo, populações ou subgrupos sociais marginalizados a partir de seus posicionamentos, para que se possa conhecer estas populações a partir delas mesmas, a partir de suas realidades e não dos conceitos preconceituosos e discriminatórios que naturalmente existem a partir dos grupos de domínio social. Assim, sobre representatividade, é preciso entender que ela acontece quando o nicho representado possui voz de se colocar socialmente a partir de suas perspectivas, dificuldades e peculiaridades às demais parcelas populacionais e culturais, trazendo com isso um entendimento real sobre a situação e dificuldades vivenciadas pelo grupo representado.
A imagem divulgada pela CD Projekt RED dentro do jogo “Cyberpunk 2077” se trata de uma “propaganda dentro do jogo”. Em um ambiente dentro de uma estação de metrô, há uma arte que é um cartaz de propaganda; são três cartazes que fazem propaganda sobre uma bebida e um deles apresenta a modelo que seria a mulher representando as mulheres transgênero. O problema aqui é justamente a construção desta mulher: uma modelo magra, esguia e que apresenta sob o maiô que veste o volume de um enorme pênis ereto.
Esta abordagem sugere que a artista que realizou a imagem, ou não entende o que é representatividade, ou não entende o que é uma mulher transgênero ou, o mais provável, não entende o que são ambas. É importante ressaltar que aqui se critica um conhecimento sobre mulheres transgênero e representatividade desta parcela das mulheres. Não significa que a artista que realizou aquela arte seja uma pessoa ruim e má e que temos que boicotar ou agredir virtualmente. Não! Vamos diminuir nossos índices de ódio contemporâneo; se está criticando um trabalho, uma forma de abordagem que não cumpre com a proposta declarada, se critica a concepção e conceitos que, provavelmente, são desconhecidos pela artista e isso não a torna uma pessoa ruim, nem mesmo transfóbica ou preconceituosa.
O primeiro problema da imagem é que ela não representa as mulheres transgêneros. A imagem, absolutamente ficcional para a realidade de uma mulher trans que realiza corretamente a transição hormonal, representa, na realidade, o estereótipo de mulheres trans que é vendido na indústria pornográfica e que existe a partir da perspectiva de fetiche masculino de pornografia.
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É preciso que fique claro que a imagem apresentada em “Cyberpunk 2077” não representa a realidade da mulher trans, que batalha por local no mercado de trabalho formal e que luta para desconstruir a objetificação contra seu corpo, e fetichismos que contribuem até mesmo para violências sofridas. Esse estereótipo da mulher trans inserido na indústria pornográfica e esta construção de imagem de mulher já possuem exemplos demais! Esta representação gera má informação para quem não conhece transgêneros, além de gerar falso conhecimento sobre mulheres transgênero, contribuindo com parte da violência e exclusão de mercado formal de trabalho que essas mulheres sofrem – assim como contribui para os estereótipos das mulheres a noções obscenas de pornografia, fetiches e objetificação.
Aqui vemos a grande importância da representatividade enquanto possibilidade de desconstrução de preconceitos sociais, exatamente o oposto do que causa a imagem apresentada, pois um dos problemas que já está acontecendo são mensagens dentro de fóruns e comunidades de pessoas transgênero aludindo para a “representatividade da mulher trans no Cyberpunk 2077”. Esta propagação já está acontecendo; em comunidades recebe-se mensagens como “olha que massa, tem mulher trans no Cyberpunk”, porém, quando se observa o modelo utilizado para passar a mensagem de representatividade, se constata apenas que se trata da propagação de um conceito em imagem do que as mulheres trans buscam, constantemente, se desvincularem: a imagem objetificada e irreal propagada pela indústria pornográfica.
Não existe, até o momento, representatividade trans no jogo da CD Projekt RED ou, mais especificamente, não existe representatividade de mulheres transgênero no game. Existe uma perpetuação de erros conceituais que prejudicam e dificultam a luta por igualdade ou diminuição de violência social e preconceitos sofrida pela comunidade transgênero. Não existe um discurso vindo da comunidade transgênero e sim uma visão social e cultural de objetificação da mulher trans a partir da perspectiva pornográfica, que surge a partir da objetificação e idealização masculina.
É preciso entender que representar um determinado nicho social exige participação deste nicho, exige pessoas que, inseridas neste nicho, o estudam em suas dificuldades, suas lutas, seus posicionamentos e implicações políticas, sociais e culturais. Representar um grupo de pessoas exige conhecimento sobre este grupo, sua cultura, suas dificuldades, seus objetivos e dimensões, para que se possa construir uma abordagem que desconstrua os preconceitos sociais e traga à sociedade a situação real na cultura; do contrário, apenas se perpetua entendimentos equivocados que acabam saindo em larga escala e contribuindo ainda mais para a manutenção dos preconceitos e noções equivocadas.
Autora convidada: Líryan Lourdes é filósofa, trans, feminista, gamer e apaixonada por Star Trek. Busca trabalhar a filosofia de forma aplicada à realidade utilizando-a para solucionar problemas. Curte um vinho enquanto assiste as séries que adora.
Edição realizada por Gabriela Prado.