Uma reflexão sobre invisibilidade: quem tem medo do bissexual?

Uma reflexão sobre invisibilidade: quem tem medo do bissexual?

Existe uma palavra que, dentre o vasto dialeto que compõe nosso vocabulário, os roteiristas parecem assustados de usar: bissexualEssa não tão pequena palavra, composta por nove caracteres e uma história que transcende séculos e gerações, chega no ano de 2019 sem poder se orgulhar muito da sua representação nas grandes ou pequenas telas. A culpa, obviamente, não é dos ativistas ou dos próprios bissexuais que povoam nosso mundo afora. A culpa é… de quem é a culpa? A quem culpar por um sistema covarde o bastante para não dizer uma palavra? 

O mais perto que podemos chegar é no consenso do estereótipo social levado para a hora das criações. Afinal de contas, existe uma vasta lista de denominações das quais alguém bissexual pode ser chamado ao longo de sua existência. Vamos tentar mostrar algumas:

“Fulana era lésbica, mas agora namora um cara.”
“Acho que você só tava confusa antes.”
“O nome disso é vadiagem.”
“É só curiosidade, natural.”
“Ah… Todo mundo passa por essa fase. Uma hora, o homem certo vai aparecer pra você.” 

Apagamento, invisibilidade e preconceito

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Roxane Gay, escritora, assumidamente bissexual (Imagem: divulgação)

Meio complicado que, mediante uma sociedade tão obstinada em apagar os bissexuais, sua representação na cultura audiovisual não fique à desejar. Mas isso não serve, em momento algum, de desculpas para os criadores. Estes parecem empenhados em maratonas do quão ofensivos conseguem ser ao criar arcos bissexuais. 

Na grande maioria das vezes, para começar, os personagens são grandes conquistadores, e não passam muito disso, ou usam de sua sexualidade como método de manipulação para conseguir o que querem. O elemento do sexo está, na maioria das vezes, presente na construção dos personagens bissexuais; são questionados sobre fidelidade, assim como na vida real, como se isso dependesse de orientação sexual. 

Existe ainda outro problema que começou como recurso de compreensão e terminou como ferramenta de apagamento: eu gosto de humanos, pessoas. Tudo bem, compreensível usar desse artifício em algumas situações, mas qual o problema em dizer com todas as letras a palavra bissexual? Não falar acaba tornando mais e mais invisível e o efeito colateral em quem não vive na comunidade LGBTQ+ é o de talvez achar que a pessoa ainda não se entendeu direito ou não encontrou “a pessoa certa”. 

Sara Ramirez, atriz assumidamente bissexual (Imagem: divulgação)

Acontece que a tal da pessoa certa nunca chega na vida de muitos – e, se ela chega com do gênero oposto, não invalida o fato de que você continua fazendo parte da comunidade da mesma forma que antes. Afinal de contas, você está num relacionamento, você não é um relacionamento, e mesmo que esse relacionamento vire estável, monogâmico, gere cinco filhos e dure 30 anos, ele pode acabar – e ao final dele você pode redescobrir o amor com alguém do mesmo gênero. 

Aliás, bissexuais não são trans excludentes. Deixando claro. Bissexualidade não existe para reforçar transfobia, não existe uma escolha baseada apenas em parceiros cis. Caso a pessoa faça essa escolha por si mesma, não passa de uma escolha transfóbica. 

Tantos estigmas envolvendo a bissexualidade acabam refletindo no que consumimos. Recentemente, houve uma melhora na qualidade de personagens bissexuais não-estigmatizados ou cuja sexualidade não define toda sua história, mas ainda existe um gigantesco caminho a ser percorrido. 

Representação importa: bissexuais na mídia

Uma das séries que fez um belíssimo episódio sobre ser bissexual foi “Brooklyn-99“. O episódio foi especialmente dedicado para a personagem Rosa Diaz, onde ela se revela bissexual, com todas as letras. É um episódio emocionante e de escrita leve, porém fácil de se relacionar com. Começa com ela contando para Boyle no episódio número 99 e termina no episódio número 100, contando para os demais amigos e sua família.

Stephanie Beatriz, a atriz que interpreta Rosa, também é bissexual e sua performance é bem comovente. O episódio acaba sendo um trunfo do seriado porque respeita a personagem e seu tempo, mostra performances de verdadeiro afeto e como sua família escolhida pode ser fundamental na hora de estruturar um ambiente e dizer “aqui eu me sinto segura.

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GIF: reprodução

Por incrível que pareça, a CW fez um bom trabalho com “Legends of Tomorrow” – Sara Lance (Caity Lotz) é uma bissexual convicta, além de Constantine, mas é muito mais desenvolvida, tendo se envolvido com homens e mulheres e não existindo dúvida alguma quanto à sua sexualidade. 

Annalise Keating (Viola Davis), de “How to Get Away With Murder“, é outra bissexual importante na dramaturgia, primeiro porque é Viola Davis quem a interpreta, segundo pois sua sexualidade não passa nem perto de a definir. A sexualidade de Annalise é um adendo à sua história, não o pêndulo por qual ela circula – porém ela recai naquele principal problema, onde a palavra bissexual nunca é dita. 

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Problema este que Darryl Whitefeather (Pete Gardner), de “Crazy Ex-Girlfriend“, não sofre, já que é um homem que vai descobrindo sua bissexualidade durante a história e temos o prazer de acompanhar sua jornada, que não fica nada subentendida, na série que usa do termo sem problema algum. Aliás, Darryl pode ser considerado como uma das mais inovadoras e divertidas representações de bissexualidade na televisão. Ele é um homem mais velho, já divorciado, seu humor é peculiar e toda sua saga é feita sem diminuir ou estereotipar os bissexuais em momento algum. 

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GIF: reprodução

Ainda para quem gosta do gênero dramacomédia, em “Jane The Virgin” temos Petra Solano. No catálogo da Netflix, temos Stella Gibson, estrelada pela sempre encantadora Gillian Anderson. A personagem é uma detetive cuja sexualidade acaba sendo desenvolvida naturalmente, sem que este seja o centro de seu plot.

Dentre todas as mulheres listadas, uma das mais importantes foi Callie Torres (Sara Ramirez), de “Grey’s Anatomy“, série que tem alcance mundial. O passo a passo com o qual descobriu ser bi foi feito repleto de minúcias, dúvidas, crises e, ao final, aceitação. 

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GIF: reprodução

Callie foi, por muito tempo, a maior referência bissexual na televisão, sendo que para o público adolescente foi Brittany (Heather Morris), de “Glee“, por se relacionarem com a idade – mas o caso de Brittany foi cercado de bifobia e a personagem era muito maltratada pela própria série. Callie era interpretada por Sara Ramirez, uma atriz bissexual ativista da causa que pede constantemente por mais representatividade. Quando saiu de “Grey’s Anatomy“, continuou interpretando uma personagem bissexual na série “Madam Secretary“.

Oberyn Martell (Pedro Pascal), porém, poderia ter tido sua bissexualidade explorada muito melhor na série “Game of Thrones” e não recebeu o tratamento que merecia. O ator Pedro Pascal deu uma interpretação inesquecível do personagem, mas em “GoT“, aparentemente, é costume se decepcionar quando o assunto é adaptação livro-série ou representatividade.

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Oberyn Martell (Pedro Pascal) (Imagem: reprodução/divulgação)

O Capitão James Flint, em “Black Sails“, também é bissexual. Podemos notar que há um número maior de personagens mulheres bissexuais do que homens, algo preocupante por conta da constante fetichização. Existem, inclusive, dados que serão mostrados adiante comprovando a disparidade enorme entre homens e mulheres bissexuais representados na arte audiovisual.

Já no mundo dos videogames, por exemplo, podemos notar que a preocupação com representatividade vem crescendo – a BioWare toma a liderança aqui no termo de representantes bissexuais, com sua saga “Dragon Age” e “Mass Effect“. Recentemente, a Ubisoft lançou “Assassin’s Creed Odyssey“, onde você também pode optar por ser bissexual. Bethesda faz o mesmo com certos personagens em “Fallout 4“. Perceba que a maioria desses jogos são de narrativas rpgisticas, de escolha. 

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Josephine Montilyet, uma das personagens bissexuais de “Dragon Age: Inquisition” (GIF: reprodução)

Poderíamos nos aprofundar ou entregar uma lista de personagens, séries e filmes para serem vistos, mas isso pode ser material para outra matéria. O que queremos é levantar atenção para o fato de que, mesmo dentre os personagens citados, a palavra bissexual raramente é dita, por isso o momento de Rosa Diaz foi considerado extremamente emocional. As pessoas parecem assustadas de usar a palavra, uma simples palavra.

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Progresso, mas não o necessário

Stephanie Beatriz, atriz, assumidamente bissexual (Imagem: divulgação)

De acordo com o anuário da GLAAD (Aliança Gay e Lésbica Contra Difamação; um Instituto não governamental dos Estados Unidos que monitora a representação LGBTQ+ na mídia) de 2018-2019, dos 433 personagens LGBTQ+ no audiovisual, 117 (27%) contam como bissexuais. Esse grupo é formado por 84 mulheres e 33 homens. Apenas uma mulher e um homem trans são bissexuais na representação da TV contada por eles. Parecem poucos personagens bi, mas ainda é um aumento do ano anterior, onde tínhamos apenas 75 mulheres e 18 homens. 

Ainda de acordo com os arquivos da GLAAD, bissexuais+ são, na verdade, a maioria da comunidade LGBTQ+ e continua a ser pouco representada nas formas de mídia – e uma das que mais caem em tropes (estereótipos) danosos.

Estereótipos citados pelo Instituto que mais foram usados no ano passado, são:

“Bissexuais usando sexo como moeda de manipulação ou transação, nunca tendo sentimentos ou real desejo. Bissexuais tratando a atração por mais de um gênero como passageiro, um plot rápido e descartável. Personagens bissexuais como inerentemente não confiáveis, psicóticos, ou faltando algum senso de moralidade.”

Mas nem tudo está perdido e eles ainda citam o caso de Rosa como representatividade positiva; Petra em “Jane The Virgin” e Valencia de “Crazy Ex-Girlfriend”, ambas mostrando seus relacionamentos pela primeira vez e sua construção. Uma série que citam estar esperando é “Bissexual“, da Hulu, que vai estrear esse ano ainda e é escrita e criada por bissexuais. 

Das telas para a vida real: medo, receio e anseios

Keiynan Lonsdale, ator assumidamente bissexual (Imagem: divulgação)

Os próprios bissexuais não são muito propensos a se revelarem dentro da comunidade LGBTQ+ por receio da rejeição sofrida dentro ou fora dela. É como se parte da população os visse num espectro privilegiado por poder se esconder, no caso “acabar com alguém do mesmo gênero”, ou por… não se sabe. Os argumentos usados em discussões são muitos. 

Mas viver uma vida sendo questionado sobre quem você é pelos que ama não parece uma forma muito boa de se viver. Viver uma vida em dúvida, se é seguro ou não “sair do armário”, não parece uma forma muito boa de se viver. Ser alvo da maior fetichização masculina, e de constante violência sexual por sua sexualidade “excitar” o outro, não parece uma forma muito boa de se viver. 

Estão  comprometendo a saúde mental de um grupo que não é mais ou menos “promíscuo” que nenhum outro; de um grupo que não simplesmente acorda um dia e desiste de quem ama por parar de sentir atração por “um gênero”, pois não compreende atração como algo binário, de um grupo cuja única opção é a de amar, querer e desejar; homens, mulheres, não-binários. O bissexual não é excludente, privilegiado e nem sortudo por poder “eventualmente recair nos conformes da sociedade”.

Mulheres bi sofrem violência doméstica. Homens bi não são “gays” nem “homens o suficiente”. Mulheres bi sofrem da fetichização que cria uma ideia de disponibilidade contínua, levando ao abuso. Homens bi se escondem pois, uma vez com outro homem, nenhuma mulher o “levará a sério”; ou será que se ele encontrar uma mulher dirão que ele estava usando os homens?

Mulheres bi são acusadas o tempo todo de usar mulheres lésbicas quando acabam num relacionamento com homens. Não há segurança ou conforto algum na mente de um bissexual tentando compreender o mundo. Toda pessoa pode ser abusiva. Toda pessoa pode trair. Toda pessoa pode abandonar sua família. Toda pessoa pode gostar de sexo mais que a média. Toda pessoa pode ser manipuladora. Toda pessoa pode recair nas infinitas classificações que dão aos bissexuais. Então, por que o medo? Diga a palavra, repita a palavra: bissexual.

Evan Rachel Wood, atriz assumidamente bissexual (Imagem: divulgação)

Repitam a palavra até que ela seja absorvida pela sociedade, pela cultura e pelas mídias; até que estejamos na TV, nas salas de escritores e nas salas de cinema; até que sejamos um número correspondente à realidade – ou, melhor ainda, até que as pessoas certas estejam criando e reproduzindo diversidade. Que não-brancos bissexuais se vejam nas telas com continuidade e não apenas podendo apontar um ou outro personagem numa lista pequena. Nesse mês do Orgulho, há de se lembrar da luta pela quebra da normatividade e ela vem não da segregação das comunidades, mas do respeito e entendimento. 

Digam o nome, se abracem em comunidade e escutem as vozes de quem tem muito para ensinar. Aprendam, criem e sejam vocês mesmos os agentes de mudança na cultura – e um dia, talvez, não teremos apenas um ou outro personagem ou uma ou outra cena com a qual se identificar. Que a invisibilidade transforme-se em luz.


Edição realizada por Gabriela Prado [bissexual e que se sentiu com o coração quentinho com esse texto].

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Escrevo onde meu coração me leva. Apaixonada pelo poder das palavras, tentando conquistar meu espaço nesse mundo, uma frase de cada vez.
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