Gaycation: uma viagem pela realidade da comunidade LGBTQ pelo mundo

Gaycation: uma viagem pela realidade da comunidade LGBTQ pelo mundo

Gaycation” (2016-presente), produzida pela Viceland, tem como propósito levar sua audiência em uma jornada íntima, profunda e muitas vezes dolorosa da realidade vivida pela comunidade LGBTQ ao redor do mundo. Apresentada pela atriz Ellen Page e seu melhor amigo, Ian Daniel, a série lida a todo momento com temas complexos, participando de situações muito sensíveis, especialmente através de entrevistas. Uma destas situações mostra-se logo no primeiro episódio, onde a dupla visita o Japão, e deparam-se com a oportunidade de acompanhar um homem que contratou o serviço de “amigo-de-aluguel” como forma de apoio emocional ao assumir sua sexualidade à sua mãe.

São momentos que têm, de fato, a potencialidade de conduzir o público à um lugar inimaginável ou, àqueles que tiveram que passar por experiências similares, a uma memória simultaneamente particular e coletiva, garantindo a visibilidade crua tanto das dificuldades, dos perigos, dos medos, como da resistência, da resiliência e das redes de apoio que são construídas pela comunidade LGBTQ, independente do país em questão.

Gaycation
Ellen Page e Ian Daniel no Japão

Gaycation busca, portanto, traçar alguns caminhos que permitam perceber não só as divergências socioculturais construídas localmente através das particularidades de cada país, mas também as similaridades tanto nas formas de discriminação enfrentadas como nas formas de resistência a elas em escala global.

A questão central que a série busca apresentar é a compreensão de que por mais que as diferenças culturais, sociais e religiosas entre os países visitados sejam reais e profundas e a discriminação direcionada à comunidade LGBTQ também tenha diversas facetas – marcadas por gênero, classe e raça para além da sexualidade -, elas tendem a um mesmo resultado: altos índices de suicídio, homicídio, desemprego, de pessoas em situação de rua, marginalizadas, sendo atribuídos estigmas relacionados à prostituição e ao HIV, por exemplo, que mostram como a comunidade enfrenta uma das maiores violações dos direitos civis na atualidade.

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Ian Daniel e Ellen Page vão conhecem a comunidade hijra na Índia

Essa marginalização fica mais evidente, sem dúvidas, no caso das mulheres trans, onde mesmo em países como a Índia, no qual se reconhece um terceiro gênero (hijra) nas escrituras antigas, desde antes da colonização britânica, a discriminação e as dificuldades impostas à essas mulheres é ainda muito grande. Os impactos da colonização também são percebidos em diversos países.

Na Jamaica, o movimento e a filosofia rastafari, centrados na resistência à colonização e à escravização, pregam o amor entre os homens, mas baseiam-se parcialmente na Bíblia, aderindo à concepção “pró-vida” que não reconhece outras sexualidades e identidades de gênero, uma vez que a reprodução seria impossível nesses casos. É possível, portanto, traçar um paralelo tanto com a bancada evangélica brasileira (apresentada através de uma entrevista com Bolsonaro no episódio do Brasil) e com a bancada cristã republicana nos Estados Unidos (através do debate com Ted Cruz no episódio “Deep South” e no episódio “United We Stand” que busca compreender os impactos da eleição de Donald Trump).

Uma das entrevistas mais marcantes da série se deu em Georgia, nos Estados Unidos, com Ashley Diamond – uma mulher trans que sobreviveu por três anos em um presídio masculino por uma infração não-violenta -, onde ela relata sua experiência ao ser negada o acesso aos hormônios já utilizados há 17 anos, as mudanças corporais e, consequentemente, a disforia que isso causou, assim como os relatos de abusos sexuais e de estupros pelos quais passou dentro da prisão, sendo negada seus direitos humanos básicos.

Ashley gravou, de dentro da prisão, vídeos que mostram a forma como foi tratada no presídio e, hoje, finalmente liberta, é militante pelo direito das mulheres trans, sendo sua maior conquista, a partir de uma ação judicial em união com o SPLC (Southern Poverty Law Center), uma entidade que auxilia nos processos judiciais no sul dos Estados Unidos a implementação de políticas de segurança e de bem-estar para as pessoas trans encarceradas.

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Ian Daniel entrevista Ashley Diamond

A importância dos meios de comunicação, da cultura, da música e de espaços de lazer tanto para a propagação de ideais homotransfóbicos como para a construção de redes de apoio e de resistência da comunidade LGBTQ, é outra questão fundamental discutida no decorrer da série.

Ao trazer à tona, por exemplo, o dancehall jamaicano, conhecido como “murder music” ou “música assassina”, Page e Daniel apontam para a necessidade de tratar a cultura politicamente, analisando a influência das letras que pregam o assassinato de pessoas LGBTQ, por exemplo. Ao mesmo tempo, não deixam de lado a forma pela qual esses lugares auxiliam na construção de uma comunidade, de redes de apoio e de resistência, tendo como exemplo máximo as consequências do massacre na Pulse em Orlando, palco de uma das grandes tragédias enfrentadas pela comunidade LGBTQ dos EUA (mais especificamente a comunidade LGBTQ latina) que, acima de tudo, se fortaleceu enquanto espaço de união.

O episódio que retrata a realidade brasileira, é, por sua vez, marcado por profundas contradições entre o clima de aceitação da diversidade durante o carnaval e a verdade do cotidiano enfrentado pela população LGBTQ brasileira, que conta com um dos maiores índices de homicídio por conta da homotransfobia no mundo, especialmente no que diz respeito às mulheres trans negras. 

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Ellen Page entrevista Jair Bolsonaro

Contando com entrevistas com Jair Bolsonaro e com um miliciano do Rio de Janeiro, assassino em série de pessoas LGBTQ, e uma entrevista com pais que perderam seu filho em um ataque homofóbico, assim como a participação em momentos de celebração, orgulho e fortalecimento dos laços entre as pessoas LGBTQs no Brasil, mostram-se claros os contrastes entre a realidade e a aparência de aceitação construída pelas festas brasileiras.

A importância da série consiste, enfim, em tratar de todos os temas tangentes à população LGBTQ atualmente, abordando questões como a objetificação de homens gays, no episódio do Japão, através dos quadrinhos yaoi; a invisibilização de mulheres lésbicas, como mostrado no episódio na Índia; os altos índices de pessoas em situação de rua, como no episódio dos Estados Unidos; a marginalização de pessoas trans em todos os países, mas especialmente nos episódios do Brasil, da Índia e Jamaica; as violações dos direitos humanos no encarceramento de mulheres trans, como tratado no episódio “Deep South”; nas dificuldades em se permitir a se abrir para o mundo, ser quem se é da forma mais autêntica possível, nas cenas mais chocantes, profundas e difíceis de assistir, especialmente aquelas pessoas que já passaram por torturas inimagináveis, como no episódio na Ucrânia.

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Ellen Page na Marcha das Mulheres
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Contudo, mais importante ainda é tratar desses temas de uma forma que traz esperança e ares de mudança, participando ativamente da primeira parada LGBTQ da Jamaica, da marcha das mulheres nos Estados Unidos após a posse de Donald Trump, fazendo com que vejamo-nos uns aos outros como potenciais imensos de mudança, como pilares de força extraordinária nos momentos mais difíceis e perigosos.

A sensibilidade através da qual Gaycation e os apresentadores abordam todos os temas aqui mencionados garante, mais do que tudo, a inspiração e o ímpeto necessário para a compreensão dos dilemas enfrentados pela comunidade LGBTQ e para o fortalecimento da luta pela garantia de reconhecimento dos direitos civis e, acima de tudo, humanos, em qualquer canto do mundo.

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Gaycation/Divulgação

Autora convidada: Mariana El Khoury, graduanda em Ciências Sociais, louca das séries, dos filmes e dos gatos. Às vezes nada, às vezes tudo, mas sempre antifascista.

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