Mozart in the Jungle: as mulheres no mundo da música clássica

Mozart in the Jungle: as mulheres no mundo da música clássica

Mozart in the Jungle é uma série original da Amazon Prime Video transmitida entre os anos de 2014 e 2018, criada por Roman Coppola, Alex Timbers e Jason Schwartzman e dirigida por Paul Weitz. Baseada no livro ‘’Mozart in the Jungle: Sexo, Drogas e Música Clássica’’, que conta as memórias da oboísta Blair Tindall, a história acompanha a Orquestra Filarmônica de Nova York após a chegada de um novo maestro, o excêntrico Rodrigo de Souza (Gael García Bernal). 

A trama de Mozart in the Jungle é centrada na personagem baseada em Tindall, Hailey Rutledge (Lola Kirke), uma jovem oboísta que sonha em juntar-se à filarmônica. A moça acaba tendo uma breve oportunidade, que perde por conta do nervosismo. Comovido por sua sinceridade ao fazer um desabafo, Rodrigo decide lhe dar uma chance de trabalhar como sua secretária, enquanto lhe dá oportunidades de aprender sobre o que realmente lhe interessa 一 a música.

Mozart in the Jungle
Rodrigo de Souza (Gael García Bernal) e Hailey Rutledge (Lola Kirke) em Mozart in the Jungle (Imagem: Amazon Prime Video / reprodução)

Mozart in the Jungle e a arte em meio à selva

Hailey consegue uma vaga como oboísta na filarmônica após Rodrigo ouvi-la tocando. Porém, quando confrontada pelo ambiente de extrema tensão e desconfiança, a jovem se deixa levar pelo nervosismo e acaba falhando na frente de todos. O maestro Rodrigo decide lhe recontratar como assistente após presenciar um momento de desabafo de Hailey.

Logo em seu primeiro dia, a moça se depara com um ambiente hostil. Quando aproxima-se de uma das oboístas que admira, Betty (Debra Monk) imediatamente insinua que a vaga de Hailey foi conquistada com sexo. Posteriormente, a personagem confessa à sua amiga Cynthia (Saffron Burrows) que foi uma das primeiras mulheres na filarmônica e que não suportaria perder seu espaço conquistado de forma tão difícil para jovens inexperientes e iludidas. 

Betty encara Hailey como uma injustiça após anos lutando para conseguir seu lugar na filarmônica. Sua fala evidenciando o fato ter sido uma das únicas mulheres na orquestra, deixa um subtexto que sugere que ela tenha enfrentado situações de sexismo para exercer sua profissão. 

Ademais, todos os personagens de Mozart in the Jungle estão em constante conflito, seja por sua inexperiência diante de grandes novas responsabilidades, ou pelo medo do ostracismo e esquecimento, que seu esforço seja imediatamente apagado por novas estrelas e tendências. 

Durante todo o tempo da série há um grande paralelo entre viver o sonho de fazer música com o coração e manter a orquestra funcionando, o público e os patrocinadores. Rodrigo de Souza chega como um furacão na vida de todos os músicos que estavam acostumados com um sistema funcional um tanto conservador, mantido durante anos pelo antigo maestro Thomas Pembrige (Malcolm McDowell). 

Rodrigo de Souza (Gael García Bernal)
Rodrigo de Souza (Gael García Bernal) e orquestra em Mozart in the Jungle (Imagem: Amazon Prime Video / reprodução)

As novas técnicas de Rodrigo são revolucionárias e inusitadas para todos. Ele considera que a atual condição da orquestra está fazendo a mesma definhar. Porém, o mais interessante dos métodos do jovem é que alguns comportamentos tidos pelos músicos como excêntricos, na verdade são apenas afeto, carinho e energia. 

Rodrigo é um jovem prodigioso e genial, e sua conduta calorosa é encarada imediatamente como falsidade. Suas ideias frequentemente o colocam em problemas 一 problemas estes que o rapaz deve evitar, visto que poderia ser deportado de volta para o México por conta deles. 

As novidades trazidas por Rodrigo são gerenciadas por Gloria Windsor (Bernadette Peters), a presidente da orquestra. Embora, por vezes, seu comportamento pareça insensível, insistindo que o maestro contenha suas ideias e compareça à eventos que favorecem a imagem da filarmônica, Gloria se importa tanto quanto qualquer músico. Seu amor se manifesta lutando no âmbito da administração para salvar o espaço da orquestra no meio cultural nova-iorquino. 

Aliás, é preciso maturidade de ambos os lados para manterem o equilíbrio entre a arte visionária e a gestão realista. Nesse e em muitos outros sentidos, “Mozart in the Jungle” também é uma história sobre crescimento e empatia

Sexo, drogas e música clássica

Apesar da célebre frase ‘’sexo, drogas e música clássica’’, Mozart in the Jungle não é uma Woodstock sinfônica. As aventuras sexuais não são regra, e seu contexto varia, indo de meros interesses para favorecer um desenrolar político e administrativo até momentos extremamente íntimos e sentimentais. 

As drogas muitas vezes são consumidas para aliviar o estresse e a ansiedade. Em um dos momentos de Mozart in the Jungle, a violoncelista Cynthia recorre à medicamentos sem recomendação médica para aliviar as dores da tendinite. Seu amigo e fornecedor a alerta para tomar cuidado, para que ela não acabe se viciando na medicação.

Na verdade, Cynthia é uma das personagens que mais demonstra empatia com Hailey, incentivando Betty a ajudá-la e ser mais gentil com ela. Sua sexualidade e envolvimentos com outros personagens é abordada de forma natural, bem como as polêmicas em torno de seu caso com Thomas. Durante todo o tempo, fica clara a liberdade, competência e força de Cynthia como personagem, que em momento algum é retratada de forma sexista por conta de suas escolhas.

Mozart in the Jungle
Cynthia (Saffron Burrows) e Hailey (Lola Kirke) em Mozart in the Jungle (Imagem: Divulgação / Amazon Prime Video)

Cynthia também acaba enfrentando recomeços dolorosos, especialmente por conta da lesão em sua mão, que compromete sua capacidade de tocar. Após responsabilizar-se pelo projeto da orquestra jovem, acolhendo crianças, ensinando-as e oferecendo a possibilidade de um novo futuro, ela se reencontra. Então, Mozart in the Jungle acaba e deixa Cynthia vivendo uma nova história, apesar da dor de precisar parar com algo que amava. Ademais, a série traz um final esperançoso de poder fazer algo que valha a pena.

Em relação aos aspectos subversivos propagados pelo bordão que identifica a série, acabam por se mostrar, quando não simples escolhas individuais, frutos de tentativas de aliviar a tensão e a angústia dos dilemas advindos do ofício.

O aterrorizante novo e o medo do ostracismo 

O maestro Thomas Pembrige é certamente um dos maiores exemplos do dilema do ostracismo na série. Após a chegada de Rodrigo, o personagem sente-se passado para trás diante das novidades e do apelo da mídia ao redor da nova estrela. Constantemente confrontado com o esquecimento e sentindo que sua credibilidade é ignorada em prol da modernidade, Thomas decide isolar-se em Cuba, em um momento de surto. 

Enquanto Rodrigo enfrenta os desafios da filarmônica e o medo de falhar, Thomas lida com a sensação de ser substituído pelas novas tendências já abraçadas pelo público e pela mídia. Os dilemas dos dois maestros são apenas um exemplo das adversidades enfrentadas pelos membros da orquestra. Todo o estresse que resulta na competitividade, desespero e hábitos ruins é motivado pelo medo 一 seja da inexperiência ou da experiência ignorada.

Thomas Pembridge (Malcom McDowell)
Thomas Pembridge (Malcom McDowell) em Mozart in the Jungle (Imagem: Amazon Prime Video / reprodução)
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Outros músicos apresentam as mesmas inseguranças de Thomas, que os fazem questionar se devem ou não mentorar os novos membros da orquestra ou, como no caso de Hailey, aqueles que desejam se juntar a ela. Assim, o mundo fora da filarmônica colabora, seja através da mídia ou do público, para tornar o ambiente ainda mais difícil e selvagem. 

Uma jornada de todas as mulheres

Como em qualquer meio profissional e artístico, Hailey enfrenta os empecilhos tanto de produzir arte quanto de produzir arte sendo mulher. Em uma jornada para encontrar sua própria voz, ela precisa constantemente provar algo para todos ao seu redor. Desde seu pai, que a incentivou a tornar-se uma oboísta, até a sociedade como um todo (e o nicho da música clássica em especial). Ela precisa mostrar que é capaz de chegar ao pódio, e com seu próprio talento.

Ao descobrir sua paixão como maestra, Hailey vê sua jornada até o hall dos grandes mestres da música ser obstruída pela constante ideia de que seu romance com Rodrigo lhe dá uma vantagem injusta. Ela precisa primeiro ter coragem para viver esse relacionamento e enfrentar os julgamentos, e então bravura para terminar por vontade própria quando sente que deseja algo diferente do que têm.

Em meio ao medo, dúvidas e desafios, Hailey é aconselhada por fantasmas de grandes compositoras esquecidas pela história. Ela, assim como Rodrigo, encontra a si mesma nessas conversas. No entanto, ao ouvir sobre a vida de cada uma dessas mulheres que foram afastadas da música, o sucesso de Hailey passa a ter uma carga ancestral, de conquistar aquilo que foi tomado de tantas outras por conta do sexismo.

teatro kabuki
Hailey conversando com Izumo no Okuni, criadora do teatro kabuki, em Mozart in the Jungle.

Não apenas uma dor histórica, mas Hailey vê na atualidade como o mundo da música é hostil para mulheres. Durante sua participação em uma grande competição no Japão, ela ouve de outra excelente concorrente que duas mulheres nunca são permitidas na final. Nesse ponto, Mozart in the Jungle também apresenta um retrato da realidade. Não apenas na música, como em todas as áreas, a jornada até o pódio é árdua para mulheres que decidem viver seus sonhos com coragem.

O que Hailey e outras mulheres vivem é o reflexo de buscar seu espaço em um mundo comandado por homens, onde o peso de falhar é sempre maior. A presença dos fantasmas de grandes compositoras que acompanham Hailey é a prova de que, embora o mundo das artes não tenha sido pensado para as mulheres e sim para os homens, elas sempre estiveram presentes enquanto a história era construída, embora seus papéis raramente sejam lembrados.

A jornada de Hailey traz uma mensagem que pode ser acolhida por todas as mulheres. O caminho, por mais cruel que pareça, nunca é solitário. Cada mulher que chega até a vitória carrega consigo a história de todas aquelas que foram apagadas por não viverem conformadas com um mundo injusto. Mas também a esperança de todas aquelas que lutam para derrubar os muros que ainda estão erguidos na atualidade. Especialmente no mundo da arte, uma mulher nunca vence sozinha, mas abre caminho para inspirar todas as outras.

Mozart in the Jungle e a coragem para viver o onírico 

Apesar da insegurança e do medo, todos os personagens de Mozart in the Jungle precisam vencer suas próprias batalhas durante a série. Por mais diferentes que esses desafios possam se mostrar, todos eles o fazem com o mesmo intuito 一 viver pela arte. 

Quando Hailey decide pedir a Betty por aulas de oboé, ela reconhece o quão exigente sua professora é, e a antipatia que esta tem por ela. Apesar disso, ela sabe que há a oportunidade de aprender muito ali. Hailey vence seus medos em prol do seu sonho constantemente, e aceita a mudança no momento certo. 

Hailey Rutledge (Lola Kirke)
Hailey Rutledge (Lola Kirke) em Mozart in the Jungle (Imagem: Divulgação / Amazon Prime Video)

Não apenas a resiliência de suportar as dificuldades a leva mais longe, mas também a coragem de dizer o que deve ser dito no momento certo, de não aturar infortúnios calada para sempre. Assim como ela, Rodrigo e os outros personagens também precisam enfrentar seus desafios e seus monstros 一 independente de como eles se manifestem. Embora o ambiente seja hostil, eles não chegam ao pódio solitários. O amor e a empatia das pessoas ao redor também são essenciais para que cada um possa prosperar. 

Mozart in the Jungle” apresenta os dilemas de ambientes altamente exigentes e competitivos, onde o estresse e a ansiedade contribuem para uma agonia desmotivadora. Entretanto, a série também apresenta uma essencialidade da arte 一 o seu caráter humano. Assim, apesar de ser especificamente sobre a rotina dos músicos de uma orquestra, as questões da série podem ser visualizadas em qualquer âmbito. Fica claro que a gentileza e a empatia são elementos tão importantes quanto a ousadia e a coragem para que a arte possa se reinventar e sobreviver, e no fim, fazer com que tocar Mozart não se pareça tanto com uma caçada selvagem.


Edição realizada por Isabelle Simões.

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Formada em Jornalismo. Gosta muito de cinema, literatura e fotografia. Embora ame escrever, é péssima com informações biográficas.
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