Ao segundo episódio da nova série da HBO, intitulado “Martial Feats of Comanche Horsemanship“, é entregue a incumbência de segurar a batata quente do episódio anterior, que simplesmente não poupou a audiência. Se o piloto já surgiu sem grandes explicações, jogando o universo tresloucado de “Watchmen” na cara das espectadoras, este capítulo se dedica a suprir as pontas soltas deste início bastante agitado.
Dando a entender que seria uma personagem tão relevante à trama quanto Angela Abar (Regina King), o chefe de polícia Judd Crawford (Don Johnson) é morto já na última cena do primeiro episódio, enforcado em uma árvore – o que, de forma alguma, interfere de fato na relevância que venha a ter nos próximos capítulos.
Espelhando o material original dos quadrinhos e a narrativa construída (iniciada!) em torno da morte de Edward Blake, o Comediante, “Watchmen” parece indicar que Judd aparecerá bastante ao longo dos próximos capítulos da série, seja por sua relevância para a narrativa de Angela, seja pelos esqueletos que esconde no armário (literalmente).
AVISO: o texto contém spoilers do segundo episódio de “Watchmen”
Ao lado do cadáver de nosso “decoy protagonist”, um idoso de 105 anos chamado Will Reeves (Louis Gossett Jr.) empertiga-se em sua cadeira de rodas, como que aguardando pacientemente que alguém descubra o que aconteceu. Ele é a criança sobrevivente da tragédia de Tulsa que testemunhamos na abertura do episódio piloto.
Similarmente, a cena inicial deste segundo episódio se debruça sobre sua infância, retratando o pai como um combatente da 1ª Guerra Mundial que se depara com um folheto veiculado pelas forças alemãs, endereçado diretamente aos soldados afro-americanos – como lutar por um Estado que afirma prezar pela igualdade se as populações negras são segregadas no próprio país? Quando termina o flashback e retornamos à cena do crime, é possível notar que Will, já velho, ainda guarda o folheto do pai, entregue antes que a família morresse no massacre em Tulsa.
É Angela quem encontra Will ao lado do cadáver de seu parceiro e amigo, e imediatamente leva o homem até o esconderijo na “padaria”. Os questionamentos e afirmações que o idoso faz à policial mascarada marcam o tom do restante do episódio, cheios de duplos sentidos e subtextos. Reeves afirma, com todas as letras, que matou o chefe de polícia e o enforcou na árvore. Irritada, angustiada e confusa, Angela não compra a ideia, mas nem por isso deixa de desconfiar do homem, colhendo amostras de sua saliva recolhidas de uma caneca para investigar por conta própria as origens do velho misterioso.
As dinâmicas efervescentes no núcleo policial de “Watchmen”
Neste segundo episódio, também entendemos um pouco mais a respeito do evento conhecido como “Noite Branca”, ocorrido anos antes, responsável pela “aposentadoria” de Angela e pela morte de centenas de policiais nas mãos da Sétima Kavalaria. Membros do grupo supremacista atacaram os endereços dos agentes durante a noite de Natal, deixando Angela desacordada no chão de sua cozinha, além de matarem seu parceiro de operações e sua esposa. Ao acordar em um leito de hospital, a policial se depara com o chefe de polícia em uma cadeira ao lado. A partir daquelas circunstâncias, entendemos que ambos formaram uma forte relação de amizade e confiança.
A morte de Judd é sentida de formas distintas por todos os membros da polícia. Espelho (Tim Blake Nelson) – cujo comportamento e trejeitos trazem Rorschach à memória – chora debaixo da máscara enquanto conversa com uma Angela trajada de Sister Night. Red Scare (Andrew Howard), o policial “comunista”, extravasa suas dores abatendo supremacistas no bairro branco reacionário e pobre de Nixonville, sob o pretexto de investigar o assassinato, tendo a Sétima Kavalaria como principal suspeita. Angela engole o choro, mas também tem seus momentos ao socar um rapaz branco em meio à briga no bairro. O que realmente a perturba são os pensamentos que Will colocou em sua cabeça.
A intencionalidade na exposição das referências
A série não nos deixa esquecer do estilo de seu material de origem. Novamente, as referências são múltiplas: desde a pintura da silhueta do casal de namorados em um beco na rua, passando por inocentes conversas entre um jornaleiro e seus clientes na banca (conversas estas que, se o quadrinho de Alan Moore serve de indicativo, de inocentes não têm nada).
A tal série de TV “American Hero Story”, cujo episódio de estreia assistimos junto com os personagens de “Watchmen“, serve quase como uma referência tripla: de forma mais evidente, retoma aos Minutemen, à história do vigilante Justiça Encapuzada e a toda a aura em torno de sua morte (referenciada na HQ através da biografia do ex-vigilante Hollis Mason).
Em um segundo momento, a série-dentro-da-série parece ocupar um papel muito semelhante ao que o quadrinho “Contos do Cargueiro Negro” possuía na obra original, de ser uma história menor dentro de uma trama maior, fazendo comentários à primeira através da sobreposição das narrativas.
Por fim, o próprio estilo de direção adotado para a série fictícia remonta às famosas câmeras lentas que são marca registrada de Zack Snyder (diretor da adaptação cinematográfica da HQ de “Watchmen“) – a cena inicial é a primeira atuação de Justiça Encapuzada, interceptando o assalto a uma mercearia de forma violenta, na qual as referências ao estilo de Snyder restam bastante evidentes.
Também é impossível ignorar a peça de teatro montada por Adrian Veidt (Jeremy Irons) em sua mansão escondida, estrelada por seus serviçais: uma reprodução da tragédia nuclear que transformou o cientista Jon Osterman no mítico Dr. Manhattan. Ainda que completamente desconectado do núcleo principal da série, Ozymandias parece ter planos muito bem definidos que devem interferir nos próximos acontecimentos de “Watchmen“.
Opressões, privilégios e entrelaçamentos na construção anti-heroica
Manhattan, aliás, segue como uma presença silenciosa e onipresente em “Watchmen“.
Em dos diálogos mais intrigantes do episódio, um jocoso Will é questionado por Angela sobre como teria conseguido içar um homem com o dobro de seu tamanho e matá-lo. Sua resposta: “Talvez eu seja o Dr. Manhattan”. A policial simplesmente cospe uma resposta que lhe parece óbvia: “Ele não consegue fazer isso, se parecer com a gente”. Will insiste, meio que brincando, meio que falando sério, que Manhattan é capaz de mudar a cor da própria pele, de tal forma que assumir a forma de um senhor negro em uma cadeira de rodas não seria um problema.
Ainda é cedo para assumir conclusões definitivas a respeito, mas o diálogo entre Will e Angela, especialmente quando considerado na conjuntura política em que a série se insere, possui uma dimensão simbólica interessante que não deveria passar despercebida.
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Temos acompanhado a trajetória de Will em Tulsa desde o início, relacionada à da população negra na história norte-americana. Em comentários pela internet, muitos têm apontado para a semelhança entre a história de Reeves e os mitos de origem de diversos super-heróis (tendo presenciado o assassinato dos pais e a destruição do lugar em que vivia). Mesmo ao fim do episódio, ainda não sabemos ao certo quem é este homem, e do que é capaz. Em um dado momento, ele se diz portador de poderes psíquicos.
Quando nos voltamos para a história de origem de Jon Osterman, deparamo-nos com um jovem nascido em uma família de ascendência alemã, distante das políticas segregacionistas implantadas pelo governo dos EUA contra os grupos afro-americanos. Tudo parece limpo, asséptico, enquanto o filho do relojoeiro aprende o ofício do pai, mas logo abandona as engrenagens de relógio para se dedicar à física quando descobre que o tempo é relativo. Sua vida, ainda que humilde, pressupõe privilégios implícitos de gênero, raça e classe. Somente sendo um homem branco heterossexual mundano é que Osterman poderia se tornar o indiferente, frio e trágico Dr. Manhattan – o palpite de Moore para um ser humano superpoderoso. Mas qual é este modelo naturalizado e universal de ser humano que estamos pressupondo?
A série, de fato, demonstra reconhecer esta diferença. A história de Will Reeves, qualquer que seja seu propósito na série, também é a história da existência e resistência negra nos Estados Unidos – no que inclui aquilo que a narrativa tradicional joga para debaixo do tapete (a “história única” a que se refere Chimamanda Ngozi Adichie), como o massacre de Tulsa –, para longe das origens “higienizadas” de um super-humano surgido de um acidente nuclear.
Reeves não é um anti-Manhattan (definição colonizatória por si só), mas uma personagem com grande potencial de elevar a série de “Watchmen” a um patamar político ainda mais amplo que o alcançado pelo quadrinho original. E, como comentado anteriormente nas impressões do piloto, esta parece ser uma das promessas de Damon Lindelof para esta nova obra.
O que temos até agora em “Watchmen”
Estes dois primeiros episódios parecem manter fidelidade à essência inquietante, irônica e jocosa da graphic novel, aliados a novos e recalibrados questionamentos que se conectem à nossa geração, da forma que a Guerra Fria e o conservadorismo dos anos 80 se conectavam com a obra original. Acompanhar a construção desta nova narrativa é como assistir a um mosaico de significados que podem possuir sentido neste momento, para serem lidos através de uma nova luz nos próximos capítulos, ou só serem compreendidos plenamente quando a série finalizar.
Honrando o passado e tendo em mente um futuro pautado nas ansiedades do presente, “Watchmen” parece construir sua trama com cuidado e parcimônia. O final, seja qual for, será mera consequência.