The Forty-Year-Old Version: uma mulher negra protagonista de si

The Forty-Year-Old Version: uma mulher negra protagonista de si

O cinema alimentou de forma problemática diversos estereótipos sobre as vivências de pessoas não-brancas. Isso não é exatamente uma surpresa, se tratando de uma indústria predominantemente branca e masculina. Em The Forty-Year-Old Version, disponível na Netflix, Radha Blank subverte com a norma das produções cinematográficas por ser uma mulher negra à frente da direção e roteiro, além de protagonista do longa.

Propor uma narrativa sobre existir sendo uma mulher negra, sem fazer com que o racismo seja a sina de sua protagonista é a real subversão de Banks. Neste longa, conhecemos uma mulher disposta a contar sua história sem fazer de dor ou violência antagonistas.

Essa não é mais história triste sobre a experiência de ser uma pessoa racializada

Em The Forty-Year-Old Version acompanhamos a história de Radha (Radha Blank). Ela é uma mulher negra, dramaturga, chegando aos 40 anos, que insatisfeita com os rumos de sua vida decide fazer rap. Essa crônica, que deixa de fora aspectos dramáticos de certa tendência ao clichê, é a grande ousadia de Blank. Não estamos falando, porém, de mais um Grande exemplo de superação™. Como qualquer outra pessoa, ela busca conhecer e explorar o lugar que ocupa no mundo. Uma personagem com defeitos, qualidades, medos, sonhos e tesão. Radha, portanto, se torna brilhantemente humanizada como poucas vezes uma mulher negra foi nas telas. 

Mesmo bancando as questões raciais e de gênero que compõem suas personagens, The Forty-Year-Old Version entrega leveza não alienada nos tópicos que propõe, superando as exaustivas narrativas de sofrimento que pessoas não-brancas tradicionalmente enfrentam no cinema.

Além disso, é positivo ver alguém como Radha Banks nas telas, mas alguém como ela no comando das câmeras faz muita diferença na obra final. Protagonismo nas narrativas não-brancas não se trata somente de um não-branco como estrela principal, a história que está sendo contada também faz parte do contexto para uma representatividade que seja positiva.

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Radha Blank na direção de The Forty-Year-Old Version
Radha Blank na direção de The Forty-Year-Old Version. (Foto: reprodução)

Fazer Rap?

Negra, mulher, fora do padrão estético eurocêntrico, entrando na meia idade, professora e artista. Radha representa um fio muito fino e delicado no tecido social, e quem tece (ou comanda) estas tramas espera das pessoas como ela docilidade e subserviência. Até mesmo no teatro, onde forjou uma casa para sua expressão artística, Radha não recebe reconhecimento.

Sua presença não é celebrada, aparenta apenas ser tolerada como um estorvo necessário e ela é constantemente coagida em aceitar intervenções em seu trabalho. Os percalços dessa protagonista não tem a finalidade de ridicularizar sua situação. Fazer rap aqui, não caracteriza um escape humorístico superficial, mas compõe as diversas provocações que Blank lança no decorrer do longa.

Um dos traços do roteiro de Radha Blank é justamente se opor a discursos que cultuam estereótipos da negritude. Assim, para as demais personagens e para o público é um fato curioso que Radha queira fazer rap, justamente por não corresponder ao que é esperado socialmente dela.

Em uma sociedade fetichista e violenta com existências negras, é uma estratégia de sobrevivência que essas pessoas se apropriem de suas narrativas. Portanto, quando Radha se interessa pelo rap, podemos ver uma mulher cuja preocupação não é apenas com a passagem do tempo, mas alguém que está disposta a se manter protagonista da própria trajetória.

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Radha Blank compondo rimas
Radha Blank compondo rimas. (Imagem: reprodução)

Aliás, utilizar uma arte marginalizada como o rap parece algo arriscado demais, quando na verdade é poético escolher uma arte tão marginal, quanto existir sendo uma mulher negra em uma sociedade racista e misógina, onde perspectivas de sucesso são construídas em um imaginário branco e masculino.

Tanto a Radha real quanto a ficcional resistem em se dobrar aos ajustes solicitados em seus trabalhos, tornando suas jornadas mais árduas. Ajustar seu discurso, seu tom, seu comportamento, ajustar suas roupas e o cabelo para se tornar palatável e corresponder a uma normativa padrão. Esse é um “convite” recorrente para mulheres pretas. Radha é uma mulher que tem consciência de seu corpo político e das questões raciais que a atravessam, então analisando sua trajetória, por que não fazer rap?

Mais Radhas, por favor

As costumeiras narrativas de autodescoberta retratadas em rostos joviais dão a falsa impressão de que autoconhecimento, dúvidas e novos rumos são processos exclusivos da juventude. Na realidade, a desconstrução ou construção dos conceitos que compõe a existência humana é uma tarefa constante. Sendo alguém que está passando pelos próprios processos, Radha não tem uma lição moral para passar em The Forty-Year-Old Version.

Seu final em aberto concretiza as infinitas possibilidades que a personagem pode ter, confirmando a proposta de Banks de que buscar seguir uma linearidade das metas da vida adulta não passa de um conceito ultrapassado. 

Radha Blank em The 40-Year-Old Version. Foto: Jeong Park (reprodução)
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Os planos traçados estão submetidos às mudanças que passamos como sujeitos. Através das vivências que adquirimos, nos tornamos pessoas diferentes a todo instante e isso não é algo ruim. Essa ideia de que o sucesso e realização tem uma data limite ou um padrão certo e não alcançar isso demonstra fracasso pessoal, é falha por não considerar a imensidão das subjetividades humanas. Radha, portanto, mostra de maneira primorosa que “chegar lá” é uma perspectiva totalmente individual.

No início de The 40-Year-Old Version, conhecemos Radha em seu apartamento, desconfortável no próprio corpo e perdida em si. E como uma borboleta, que demora em se desprender de um casulo que não tem mais serventia, ela reluta em seguir por novos caminhos. Entretanto, quando percorre as próprias questões e seu intimo, percebe que vem dela a responsabilidade por construir a satisfação que busca. Mas o mundo não costuma ser gentil com mulheres que não se contentam com o mínimo, e encarar mudanças de rumo pode ser um caminho oneroso.

Bem, Nina Simone nos ensinou que é preciso levantar da mesa quando o amor não estiver mais sendo servido, o que Radha Blank propõe é similar. A busca por escrever a própria história.


Edição, revisão e arte em destaque por Isabelle Simões.

Escrito por:

Mulher preta, beletriste, educadora, artista visual e taurina em tempo integral.
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