Duna: uma adaptação árida para um clássico da ficção científica

Duna: uma adaptação árida para um clássico da ficção científica

Uma das obras de ficção científica mais influentes do século XX, Duna teve diversas adaptações e tentativas de adaptação para o cinema e a televisão. A mais conhecida é o filme de 1984, dirigido por David Lynch, que decepcionou fãs, críticos e o público em geral. Uma década antes, em 1974, o cineasta chileno Alejandro Jodorowsky também tentou encampar uma adaptação do romance de Frank Herbert. Não teve sucesso. Seu Duna é frequentemente chamado de “o melhor filme jamais feito”. Em 2000, o canal americano SyFy lançou uma minissérie que foi pouco assistida, mas bem recebida por fãs da obra original. Em 2021, foi a vez de Denis Villeneuve (Blade Runner 2049, A Chegada) arriscar uma adaptação do livro para as telas.

Bem recebido pelo público e pela crítica, o filme de Villeneuve mistura visuais interessantes com outros não tanto. As atuações são boas, e Villeneuve e sua equipe têm sucesso em transpor para o cinema o universo descrito por Herbert. A trama não chega a alcançar o final do livro, que talvez seja realmente grande demais para um filme só. Com cortes e alterações acertadas, a primeira metade de Duna flui bem. A segunda, mais uma vez, não tanto.

A família Atreides chega a Arrakis. Cena de Duna, filme de Denis Villaneuve.
A família Atreides chega a Arrakis | Imagem: Reprodução

Duna recebeu dez indicações ao Oscar 2022. A maioria foi em categorias técnicas, como Efeitos Visuais e Som. Contudo, o filme também pode conquistar os prêmios de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Filme na cerimônia que acontecerá no dia 27 de março.

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Na categoria de Melhor Roteiro Adaptado, Duna concorre contra A Filha Perdida, Ataque dos Cães, Drive My Car e No Ritmo do Coração. Já na categoria de Melhor Filme, os outros indicados são Amor, Sublime Amor, Ataque dos Cães, Belfast, Drive My Car, King Richard: Criando Campeãs, Licorice Pizza, No Ritmo do Coração, Não Olhe para Cima e O Beco do Pesadelo.

Duna: um (?) livro para vários filmes

Duna tem como protagonista o jovem Paul Atreides (Timothée Chalamet), filho do Duque Leto Atreides (Oscar Isaac) e de sua concubina, Lady Jessica (Rebecca Fergunson). Integrante de uma ordem política e religiosa exclusivamente feminina, as Bene Gesserit, Jessica contrariou ordens superiores ao ter um filho homem e treiná-lo segundo a doutrina da organização. Contudo, Paul é um excelente aluno e, desde cedo, apresenta dons como sonhos proféticos com uma garota misteriosa (Zendaya) em um lugar longínquo.

Por ordem do Imperador Padixá, os Atreides são obrigados a deixar seu planeta natal de Caladan e rumar para Arrakis. Também conhecido como Duna, Arrakis é um planeta extremamente árido no qual é minerado um pó alucinógeno essencial para o funcionamento do império, a especiaria. É para garantir a mineração dessa substância que os Atreides devem ir para Arrakis, tomando o antigo feudo de outra família nobre, os Harkonnen. O que, a princípio, pode parecer um favor imperial é, na verdade, uma armadilha para o duque e sua família.

Timothee Chalamet como Paul Atreides.
Paul Atreides (Timothée Chalamet) em Caladan | Imagem: Reprodução

O projeto de Leto Atreides envolve a cooptação dos nativos do deserto de Arrakis, os Fremen, oprimidos e massacrados pelos Harkonnen. Porém, o duque não tem tempo de concretizar nada além de algumas conversas iniciais. Após a queda da casa Atreides, Paul e Jessica se refugiam no deserto e se juntam a uma comunidade Fremen, da qual faz parte Chani, a tal garota misteriosa dos sonhos do jovem duque. Paul e sua mãe correspondem à descrição do messias esperado pelos Fremen, o Muadib. Com a ajuda deles, Paul organiza uma revolta para derrubar os Harkonnen e colocar os Atreides de volta no mapa.

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Fazer um resumo da história de Duna não é tarefa fácil. Tanto que precisamos de três parágrafos para contar apenas o básico. O livro de Frank Herbert é cheio de personagens, detalhes e temas praticamente impossíveis de contar em um filme só. (Aqui no Delirium, a Nathalia de Morais fez uma série de artigos ótima para quem quer conhecer melhor o universo da saga.)

Zendaya como Chani em Duna (2021)
Zendaya como a Fremen Chani | Imagem: Reprodução

E Villeneuve e a Warner Bros. não têm a menor intenção de condensar tudo em um único filme. Duna terá uma sequência, que deve ser lançada em 2023, e é possível que se torne o primeiro capítulo de uma trilogia. A Warner também está preparando uma série para o serviço de streaming HBO Max. Contudo, o universo de Duna tem material para muitas adaptações: são seis livros publicados por Herbert entre 1965 e 1985, e mais 15 escritos pelo filho do autor, Brian Herbert, e Kevin J. Anderson.

Cortes e alterações em Duna

O filme de Villeneuve termina mais ou menos na altura da metade do primeiro livro de Herbert – que, na edição da Aleph, tem 620 páginas sem contar com os apêndices. Por um lado, é uma decisão acertada, que permite que a história seja contada com calma, sem muitos sacrifícios. Portanto, do livro, são cortadas apenas cenas de falatório sem muita trama, que, de fato, fazem pouca diferença em um filme.

Porém, por outro lado, essa divisão torna o filme lento. Duna tem realmente cara de primeira parte de trilogia. Assim como O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel, é um filme em que praticamente nada acontece além de exposição e do posicionamento de peças no tabuleiro. Mesmo o clímax da trama é apenas um ponto de partida para a verdadeira história que virá depois.

Paul Atreides (Timothée Chalamet) diante da Reverenda Madre Bene Gesserit (Charlotte Rampling)
Paul diante da Reverenda Madre Bene Gesserit (Charlotte Rampling) | Imagem: Reprodução

No entanto, das alterações feitas por Villeneuve, uma que merece atenção é o leve aumento da presença e do protagonismo feminino na história. Com exceção das Bene Gesserit, as mulheres de Duna não têm muitos papéis importantes, sendo relegadas ao lugar de esposas ou filhas de alguém. No filme, porém, é perceptível a presença de mulheres nos exércitos das duas casas nobres, e o personagem Liet Kynes, planetólogo e juiz responsável pela transição do domínio Harkonnen para os Atreides, é interpretado por uma mulher (Sharon Duncan-Brewster). Parece pouca coisa, mas já é suficiente para dar uma outra cara para a história.

Arrakis: como filmar o deserto

A indicação de Duna a grande parte das categorias técnicas do Oscar não é sem razão. O figurino criado por Jacqueline West e Bob Morgan é realmente de tirar o fôlego, com destaque para a beleza dos trajes de Lady Jessica, o visual intimidador das Bene Gesserit e a praticidade dos trajestiladores usados pelos Fremen para reciclar a água do corpo. Além disso, os efeitos visuais e o design de produção também ajudam a criar uma Arrakis palpável e a passar uma sensação de imponência e isolamento essencial para uma história sobre uma família nobre marcada para morrer.

Entretanto, a indicação na categoria de Melhor Fotografia não faz tanto sentido quanto as outras. Com direção de fotografia de Greig Fraser, Duna é um filme escuro e com poucos contrastes. Algumas cenas chegam mesmo a ser difíceis de assistir em um nível físico, tanto no cinema quanto no streaming. Por outro lado, combina bem com a onda de filmes sem cor das últimas décadas, causada tanto por falhas na pós-produção quanto pelo suposto apelo de um cinema mais “sério”, “realista” e “maduro”.

Rebecca Fergunson como Lady Jessica em Duna (2021)
Rebecca Fergunson como Lady Jessica | Imagem: Reprodução

Além disso, até mesmo as cenas passadas no deserto são escuras em excesso, e o figurino em tons de marrom, bege e cinza dos Fremen não ajuda. A exceção fica por conta das sequências diurnas, que, embora mais discerníveis, também não têm uma fotografia muito interessante. Ou seja, quase todas as cenas de Duna parecem ter sido filmadas sob um filtro ora laranja, ora cinza, com alguns toques de azul para as sequências passadas em Caladan.

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O objetivo de Fraser e Villeneuve parece ser transmitir a aridez do deserto não apenas por meio de tomadas de montes de areia e pedra, mas também pela utilização de cores escuras que evocam um ar empoeirado. Isso, contudo, gera dois problemas. O primeiro é questão da visibilidade que, embora talvez remeta à visibilidade de um deserto real, não é muito convidativa para quem está assistindo ao filme. O segundo é que, em um filme em que poucas coisas acontecem, a falta de variedade nas cores contribui para deixar a trama menos dinâmica e mais desinteressante.

Por outra forma, a aridez do deserto poderia ser facilmente transmitida com um pouquinho mais de contraste e iluminação. É só pegar dois filmes aos quais Duna está intimamente ligado para ter uma noção das alternativas. Dirigido por David Lean, Lawrence da Arábia (1962) é baseado na vida do militar inglês T.E. Lawrence, cujas memórias da Revolta Árabe (1916-1918) inspiraram Herbert na criação de Paul Atreides e dos Fremen. Já Star Wars tomou emprestado de Duna elementos como o Império, a especiaria e o planeta desértico para construir seu universo.

Tanto em Lawrence da Arábia quanto em A Nova Esperança (primeiro filme da saga, que tem Tattooine como um dos principais cenários) o deserto aparece como um lugar árido e inóspito sem sacrificar a vista dos espectadores. As imagens também são mais interessantes de acompanhar, com uma variedade de cores, luzes e sombras bem maior do que em Duna.

Duna, Lawrence da Arábia e Star Wars
A aridez do deserto em Duna, Lawrence da Arábia e Star Wars | Imagens: Reprodução
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No fim das contas, os altos e baixos da parte técnica de Duna são um bom resumo do filme em si. Embora seja um longa marcante, com cenas impactantes e memoráveis, é também monótono. Tanto o andamento (ou falta de andamento) da história quanto a parte visual deixam a desejar em muitos pontos. O resultado final não torna Duna um filme ruim. Porém, o torna bem menos interessante do que pede a grandiosidade da obra original.

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Tradutora, jornalista, escritora e doutoranda em Linguística, na área de Análise do Discurso. Gosta de cinema, de ficção científica, de cinema de ficção científica e de batata. Queria escrever quando crescesse e, agora que cresceu, continua querendo.
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