Satânia: as facetas infernais dentro de cada um de nós

Satânia: as facetas infernais dentro de cada um de nós

A DarkSide Books completou dez anos no segundo semestre de 2022 e, para comemorar, trouxe mais um quadrinho incrível para o seu catálogo: Satânia, dos autores Fabien Vehlmann e Kerascoët, mesmos criadores de “Aurora nas Sombras”, também publicado pela editora, ambos traduzidos por Maria Clara Carneiro.

Satânia, que narra a expedição da jovem Charlie em busca do irmão, Constantin, que saíra de casa a fim de comprovar a existência do inferno, promete muitos momentos de suspense, horror e interpretações diversas acerca da existência humana, sobretudo das mulheres em suas jornadas.

“O que sabemos é uma gota. O que ignoramos é um oceano.”

Charlotte, mais conhecida como Charlie, quer reencontrar o irmão: Constantin, um cientista, acredita que o inferno existe no núcleo da Terra. Para ele, os demônios habitantes do local seriam neandertais que seguiram a teoria da evolução de Charles Darwin, sobrevivendo em bolsões de ar em meio às cavernas, mas em um local totalmente inóspito e com um ecossistema diferente do mundo de cima.

Para sobreviverem às altas e baixas temperaturas e à falta de contato com a civilização da superfície, os demônios tiveram o próprio corpo modificado para o que parece ser monstruoso aos olhos do restante da humanidade. Para provar seu ponto de vista, Constantin sai em expedição para encontrar o local e seus habitantes, sem retornar, no entanto.

Satânia, novo quadrinho da Darkside Books
Fotografia: Laís Fernandes para o Delirium Nerd.

Preocupada com ele, pois, além de irmão, Constantin é o único membro da família que se preocupa com ela, Charlie reúne um grupo de expedidores, todos homens, e parte em uma aventura repleta de aventuras, perigos, terrores, mas, sobretudo, de autodescobertas em meio a cenários deslumbrantes e aterrorizantes nas reentrâncias perigosas de diversas cavernas.

Em dado momento, quando já estão avançando na expedição, uma enchente os acerta em cheio e eles são salvos justamente pelos bolsões de ar que Constantin havia mencionado em seus estudos. Após o susto, e impossibilitados de voltar para a saída bloqueada da caverna, o grupo decide continuar a caminhada e acaba se deparando com uma civilização completamente diferente da que vivem na superfície.

Através da tecnologia avançada e dos costumes conflitantes, pistas sobre o paradeiro de Constantin começarão a ser descobertas e, para encontrá-lo, Charlie e seus companheiros terão de ir cada vez mais fundo em um universo completamente novo, se desnudando cada vez mais de seus costumes e enfrentando suas feras interiores.

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Satânia: as facetas infernais dentro de cada um de nós
Fotografia: Laís Fernandes para o Delirium Nerd.

A obra versa muito sobre aquilo de que não se tem conhecimento — ainda — no mundo, e sobre a intervenção da sociedade dita “civilizada” em contextos sociais diferentes dos seus, contextos estes que, por esta razão, acabam sendo rechaçados e menosprezados.

Satânia e a demonização do que é diferente e desconhecido

O quadrinho de Fabien Vehlmann e Kerascoët funciona também como uma obra de valor antropológico, uma vez que dentro de seus muitos símbolos apresenta o enfrentamento que existe, desde os tempos mais remotos, entre culturas que divergem em diversos pontos, sobretudo ameaçadas por homens brancos e europeus.

Satânia e a demonização do que é diferente e desconhecido
Fotografia: Laís Fernandes para o Delirium Nerd.

Na trama do quadrinho, nos deparamos também com um grupo de homens brancos que personificam os colonizadores também conhecidos na História. Tal grupo, inclui até mesmo um padre, que em seus sermões repletos de moral cristã busca demonizar o que é diferente e novo para todos eles, tentando a qualquer custo influenciar seus companheiros de viagem de forma negativa e levando caos e pânico satânico às sociedades que não são regidas pelas mesmas estruturas do mundo da superfície.

Os Satanianos são criaturas enormes, com chifres e pelagem por todo o corpo. Habitantes de Satânia, um local no núcleo da Terra, são vistas como demônios, impuros, selvagens e bárbaros por não seguirem as convenções do mundo patriarcal de cima, cujo fundamentalismo cristão dita as regras do jogo.

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Quadrinho de Fabien Vehlmann e Kerascoët
Fotografia: Laís Fernandes para o Delirium Nerd.

Ao passo que vão coexistindo com o que é diferente, precisam fazer uma escolha: sucumbir por medo ou pela própria ameaça que representam, ou se adaptarem e estarem abertos às novidades e se descobrirem no processo — e nem todos eles aceitarão esta última opção.

A jornada de Charlie: da luz às trevas — e de volta outra vez

No entanto, e para além de uma análise de sociedades ditas “civilizadas” e “selvagens”, há a belíssima narrativa que acompanha Charlie: a protagonista de Satânia, cujo apelido de cara já remete a um nome masculino. Forte e determinada em encontrar o irmão, ela tem um perfil de liderança, por saber justamente como guiar os companheiros de expedição.

Charlie também demonstra as dores às quais fora submetida desde o início da vida por conta da mãe abusiva. A todo momento, a figura da mãe aparece para ela, como um fantasma para assombrá-la, e que a assusta muito mais do que toda a novidade perigosa dos locais em que estão passando.

A maternidade abusiva em Satânia
Fotografia: Laís Fernandes para o Delirium Nerd.

Ao romper laços com a mãe (que inclusive aparece mais de uma vez, simbolizado por um fio vermelho que as une em momentos decisivos da história) para encontrar o irmão tendo a ajuda de outros homens, Charlie entra no ciclo da Jornada da Heroína, proposta por Maureen Murdock, fator também presente na trajetória da protagonista de “Aurora nas Sombras”. Sua jornada pessoal, no entanto, transcende o ato de encontrar o irmão e permeia a vontade de Charlie de encontrar a si mesma.

Trecho de "Satânia".
Fotografia: Laís Fernandes para o Delirium Nerd.

Para tanto, a protagonista terá de enfrentar perigos pelo caminho (o que Maureen chama de “o caminho de provas”) e descer até o que é considerado divino (no caso, a oposição de Satânia ao inferno bíblico) para iniciar seu processo de cura espiritual e a retomada do feminino, ferido lá atrás com o tratamento hostil recebido da mãe (e que, por sua vez, também sofrera ao longo da vida com as imposições de uma sociedade misógina e patriarcal).

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É no texto e nos desenhos de Kerascoët que acompanhamos o processo de maior autonomia de Charlie. Em uma leitura poética, pode-se imaginar que os próprios companheiros de jornada fazem parte de sua personalidade. Eles vão sofrendo alterações ao longo do caminho ao passo que ela vai se libertando de dogmas e conceitos que circulavam pela família e pela sociedade, como a culpa cristã imposta em sua própria sexualidade.

Jornada da Heroína
Fotografia: Laís Fernandes para o Delirium Nerd.

Ao descer aos recônditos de um lugar completamente diferente, mas conhecido dentro de seu íntimo, Charlie terá de se desdobrar para conseguir sair das próprias trevas em direção à luz.

Aspectos gráficos de “Satânia”

Tanto o traço quanto as cores de Satânia são de encher os olhos. A dupla Kerascoët faz um trabalho magistral desde “Aurora nas Sombras”, ao utilizar um traço delicado para mostrar as mais cruéis atrocidades que os seres, humanos ou não, são capazes de cometer.

A história começa sombria, mas aos poucos, conforme os personagens vão descendo cada vez mais fundo na Terra, as cores vibrantes do ambiente e das criaturas vão ganhando lugar nas páginas até povoarem quadros inteiros de uma psicodelia convidativa e poética, acompanhada pelo ótimo e fluido texto de Fabien Vehlmann.

Dos mesmos criadores de "Aurora nas Sombras"

Trecho de Satânia, novo quadrinho da Darskide Books.

Resenha: Satânia, de Fabien Vehlmann e Kerascoët.

Resenha: Satânia, de Fabien Vehlmann e Kerascoët.
Fotografias: Laís Fernandes para o Delirium Nerd.

Satânia é uma obra indispensável para fãs de ficção científica e horror, e apresenta visões surpreendentes acerca da dicotomia entre o bem e o mal, as relações entre o “eu” e o “outro” e a necessidade fundamental do autoconhecimento.


Fabien Vehlmann e Kerascoët Satânia

Fabien Vehlmann e Kerascoët

DarkSide Books

128 páginas

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Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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