Noite passada em Soho: (mais uma) tentativa falha de construir um filme feminista

Noite passada em Soho: (mais uma) tentativa falha de construir um filme feminista

Enquanto “A World Without Love“, canção de Peter and Gordon, envolve nossa audição através do som emitido por uma vitrola, somos levadas a conhecer um quarto tomado por referências aos anos 1960. Pôsteres de filmes antigos estão colados nas paredes, vinis estão por toda a parte e uma jovem dança enquanto usa um vestido feito de jornal. A jovem em questão se chama Ellie (Thomasin McKenzie), uma garota apaixonada por design de moda e que sonha em trabalhar e estudar nessa área. Ela é uma das protagonistas de Noite Passada em Soho (2021), filme dirigido por Edgar Wright, cineasta que até então concentrava suas narrativas em histórias protagonizadas por homens.

As obras de Wright costumam ser divertidas e são as queridinhas de muita gente. Contudo, é bem comum que as personagens femininas desses filmes sejam limitadas ao papel de “namorada de alguém”. Se observarmos, Liz (Kate Ashfield) de Todo Mundo Quase Morto (2004), Sam (Rosamund Pike) de Heróis da Ressaca (2013) e Debora (Lily James) de Em Ritmo de Fuga (2017) se encaixam nesse tipo de papel. Nenhuma dessas personagens ganha um desenvolvimento notável na trama. Já em Scott Pilgrim Contra o Mundo (2010), temos como personagem principal um garoto imaturo que basicamente tem como objetivo superar mulheres e atingi-las. Ele descarta sua namorada Knivess Chau (Ellen Wong) sem dar a mínima para seus sentimentos e fica perseguindo Ramona (Mary Elizabeth Winstead) de uma forma tóxica e irritante.

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Após Em Ritmo de Fuga, que traz como enredo o universo dos carros e do crime, Wright volta ao mundo dos filmes ficcionais e decide explorar uma narrativa diferente e mais sombria. Um horror psicológico em companhia de uma boa pitada de melancolia e um tanto de inspiração no gênero giallo.

Noite Passada em Soho, que atualmente está disponível no Telecine Play, é o primeiro longa de Wright com protagonistas femininas e se mostra como uma tentativa do diretor em fazer um filme feminista, que funciona até certo ponto, mas escorrega em diversas considerações.

Anya Taylor-Joy, Edgar Wright e Matt Smith no set de Noite Passada em Soho
Anya Taylor-Joy, Edgar Wright e Matt Smith no set de Noite Passada em Soho | Crédito: Greg Williams / © 2021 Greg Williams.

Nos momentos iniciais do longa acompanhamos Ellie a caminho de dar início a realização de seus sonhos. Ela sai de casa, deixando para trás sua pequena cidade, para estudar moda em uma renomada instituição localizada no distrito de Soho, em Londres. Após não ter tido uma boa experiência com a colega de quarto, a garota aluga um outro quarto na casa da senhora Collins, interpretada por Diana Rigg – conhecida por ser uma Bond girl em 007 – A Serviço Secreto de Sua Majestade (1969) e mais recentemente atuou como Olenna Tyrell na série Game of Thrones (2011 – 2019). Noite Passada em Soho, foi seu último trabalho como atriz antes de seu falecimento.

Alerta: O texto abaixo possui spoilers da obra.

Quando o sonho se transforma em pesadelo

Ellie se mostra uma garota sensitiva, que tem facilidade em ter contato com o sobrenatural. Devido a isso, não demora muito para que ela comece a ter sonhos com Sandie (Anya Taylor-Joy), uma mulher a quem seu atual quarto pertenceu nos anos 1960. Durante esses sonhos é como se Ellie estivesse no corpo de Sandie, e ela vai vivendo todo o glamour da sua década favorita. A estudante de moda vai acompanhando em cada sonho a vida agitada de Sandie e se encantando cada vez mais com ela, usando-a inclusive como inspiração para criar modelos de roupas nas aulas na faculdade.

Cena de Noite Passada em Soho
Gif | Reprodução.

Também é nesses sonhos que seguem as sequências mais fascinantes do longa. O cenário faz uso de muito neon para iluminar a cidade. Tal iluminação trabalha em conjunto com a montagem frenética, com cada cena conseguindo fluir perfeitamente para a outra. Vamos observando tudo isso através de uma câmera inquieta, marca registradas da direção de Edgar Wright, e o resultado é uma estética belíssima.

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No entanto, não demora muito para que os sonhos de Ellie com a vida de Sandie comecem a se transformar em pesadelos. A personagem de Anya Taylor-Joy se envolve com um homem que a explora e a obriga a se prostituir. E Ellie nada mais pode fazer além de assistir Sandie ser humilhada e abusada por vários homens.

Os assédios que Sandie encara refletem nas vivências de Ellie. Seja no momento em que o taxista é inconveniente com ela, ou quando um senhor a fica perseguindo e aparece com frequência em seu ambiente de trabalho. Ou ainda, quando os fantasmas/zumbis dos homens passam a atormentá-la não só nos sonhos, mas também enquanto ela está acordada e começam a prejudicar sua vida arriscando sua sanidade. Afinal, quem levaria uma vida normal sendo atormentada por espíritos? E isso nos faz compreender a mensagem de que a violência contra a mulher continua tão vigente quanto era nos anos 1960, ou mesmo antes disso.

Ellie acompanhando a vida de Sandie através dos sonhos.
Ellie acompanhando a vida de Sandie através dos sonhos. Imagem | Reprodução.

Ellie sente a necessidade de proteger Sandie, porém ela não consegue fazer nada além do que observar o que acontece através dos sonhos. Até que, ao acreditar que Sandie foi assassinada, ela decide que vai encontrar uma forma de trazer justiça à garota. Porém, Ellie passa cada vez mais a ser perseguida pelos zumbis fantasmas. Até que ela descobre que a senhora Collins, na verdade, é Sandie e que os fantasmas são homens que ela matou por a explorarem.

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Dessa forma, as peças vão se encaixando. Os fantasmas que assombram Ellie o tempo todo não estão ali para matá-la, mas sim para pedir ajuda e implorar que ela encontre uma maneira de suas almas descansarem. Os caras morreram porque eram abusadores, pagavam de forma consciente, para se satisfazerem sexualmente com uma garota que tinha seus “serviços sexuais” vendidos pelo namorado abusador e que isso acontecia claramente contra a vontade dela. Porém, talvez não fosse a ideia, a construção narrativa parece colocar os zumbis fantasmas como as grandes vítimas e Sandie parece ser apenas a mulher louca.

Thomazin McKenzie em cena de Noite Passada em Soho.
Thomazin McKenzie em cena de Noite Passada em Soho. Imagem | Reprodução.

E como se não bastasse, após morrerem, os agora fantasmas continuam sendo abusivos com outra mulher. Afinal, perseguem Ellie por todo lado e quase a enlouquecem com suas aparições. A inspiração no giallo acabou por manter na obra, um estereótipo recorrente nesse tipo de filme: violentar o feminino, seja de forma física, sexual e/ou psicológica a fim de causar impacto, apenas isso.

Como já foi dito, talvez a intenção não tivesse sido essa, mas Noite Passada em Soho está lidando com temas muito delicados e pesados, que podem gerar gatilhos: psicopatia, violência (sexual, física e psicológica), suicídio. Expor temas pesados como esses sem mostrar que há formas que possam inspirar as espectadoras a solucioná-los, é totalmente irresponsável.

Tentativa frustrada de fazer um filme feminista

É bom estarmos cientes de que retratar em uma narrativa certos traumas e situações violentas, não é sinônimo de criticá-los. A partir do ponto em que a narrativa perde isso de vista tudo começa a ruir. Para trabalhar com esses assuntos é preciso ter muito cuidado, não se pode simplesmente jogá-los em uma obra sem dar a devida atenção a eles. É crucial buscar trazer soluções positivas que podem incentivar a quem está assistindo a fazer o mesmo.

Ainda que Ellie tenha desenvolvido sororidade por Sandie, o sentimento não foi recíproco. A senhora Collins tenta assassiná-la por ela descobrir seu segredo. Todo o relacionamento que foi cuidadosamente construído entre elas, mesmo que através dos sonhos, é destruído. A senhora Collins/Sandie é agora apresentada como uma vilã. Assim, ela rompe sua conexão com a mulher que conhece seu trauma e que queria poder fazer justiça por ela. Trazendo à tela, a velha e incômoda situação de colocarem mulheres umas contra as outras.

Noite Passada em Soho e sua fotografia belíssima
Noite Passada em Soho e sua fotografia belíssima. Imagem | Reprodução.
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Noite passada em Soho, conta com uma excelente trilha sonora; figurinos muito bonitos; boas atuações, em especial das protagonistas e uma excelente fotografia. Tecnicamente falando é um filme lindíssimo. No entanto, a obra se atrapalha bastante ao tornar a mulher que sofreu injustiças em vilã e seus agressores em vítimas. E ainda que o longa nos passe de forma clara a mensagem de que o mundo ainda não mudou tanto quanto deveria, sendo o filme ele próprio um exemplo disso, sua tentativa de tratar de assuntos ligados à violência contra a mulher foi superficial. Infelizmente, o roteiro não tem muito a nos dizer sobre a indústria do sexo e seus problemas, ou mesmo sobre saúde mental, por exemplo. Esses problemas são abordados e deixados de escanteio.

Os momentos finais do filme parecem se preocupar muito mais em trazer de forma mais intensa os homens assassinados como vítimas. Sandie, parece ter seu trauma mental banalizado e é retratada como a mulher louca que se dispõe a matar mesmo pessoas que nunca tenham lhe feio mal e que ainda estavam dispostas a ajudá-la, como acontece quando ela tenta assassinar Ellie e um amigo. E ainda que Sandie tenha cometido vários crimes, ela também foi uma vítima e crimes também foram cometidos contra ela. Mas o roteiro parece muito mais interessado em trazer um plot-twist, que nem surpreende muito. Revelar Sandie como vilã, parece ser mais significativo do que trabalhar um final que também a traga como vítima. Enfim, Noite Passada em Soho se encerra arruinando a própria crítica que ele tentou fazer a respeito de toda a violência e sexismo sofrido pelas mulheres.

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Denise é bacharela em cinema e tem amor incondicional por tal arte. Pesquisa e escreve sobre feminismo e a representação das mulheres na área do audiovisual. É colecionadora de DVDs, fã da Audrey Hepburn, apaixonada por Rock n' Roll e cultura pop. Adora os agitos dos shows de rock, mas tem nas salas de cinema seu local de refúgio e aconchego.
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