Estrelado por Lindsay Lohan, Meninas Malvadas foi um sucesso de bilheteria em seu lançamento, no ano de 2004, e desde então se tornou um marco da cultura pop. Memes e frases do filme circulam até hoje, e a geração que cresceu com o longa mantém memórias afetivas relacionadas a ele e suas próprias adolescências.
A história gira em torno de Cady (Lindsay Lohan), uma menina de 16 anos que cresceu em algum lugar inespecífico na África com seus pais zoólogos, sendo educada em casa. Só agora, de volta aos Estados Unidos, ela vai encarar seu primeiro ano de escola formal.
Já no primeiro dia de aula, ela se depara com alunos maldosos e professores autoritários, descobrindo como funciona a sociedade com que nunca teve contato antes. Logo em seguida, ela conhece alguns alunos que vão virar sua vida de cabeça pra baixo, como os “artísticos esquisitos” Janis (Lizzy Caplan) e Damian (Daniel Franzese), e o grupo das garotas populares conhecidas como “As Plásticas”.
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Alheia aos costumes sociais dos adolescentes americanos, Cady acaba sendo fácil de manipular, e se vê envolvida em um plano de vingança contra a maldosa Regina George (Rachel McAdams), líder das Plásticas. Janis convence Cady a se infiltrar no grupo de Regina, e tramar para que ela perca sua popularidade e seu status dentro da escola.
Racismo e outros erros na trama de Meninas Malvadas
O que mais impressiona em rever Meninas Malvadas depois de vários anos, é notar como seu roteiro é bem estruturado, e, graças a boas atuações e uma edição afiada, várias das piadas ainda funcionam muito bem. A roteirista, Tina Fey, é responsável por vários desses acertos, mas também por vários erros que não seriam perdoados hoje em dia, como o racismo, que costuma estar presente em várias de suas obras.
Em Meninas Malvadas, o racismo aparece na evidente forma como a África é retratada, apenas por paisagens genéricas de savana e animais selvagens, e na recusa do filme em especificar o lugar que a família de Cady morou, como se a África fosse uma coisa só e não um continente gigantesco com enorme diversidade de culturas e ambientes.
Em certos momentos, Cady também compara os alunos da escola que acabou de conhecer aos “animais selvagens da África”, dando a impressão de que ela nunca entrou realmente em contato com nenhuma civilização lá, e reforçando as visões reducionistas que os ocidentais já tem sobre o continente. Outros também são retratados de formas inadequadas, como um grupo de meninas asiáticas hipersexualizadas, e as panelinhas de alunos negros estereotipados, que, além de tudo, são apenas figurantes na história.
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Em alguns momentos, Tina Fey insere comentários sobre o racismo dos próprios brancos americanos, como quando o diretor da escola apresenta Cady como a “nova aluna que veio da África“, e a professora de matemática, interpretada pela própria Tina Fey, dá boas vindas a uma menina negra, que responde “eu sou de Michigan!“. Em outra cena, Karen (Amanda Seyfried), uma das seguidoras de Regina George, pergunta a Cady “mas se você veio da África, por que você é branca?“. Esses momentos, porém, não tiram a culpa do filme de ter inserido outros retratos racistas em sua própria narrativa.
O racismo nas obras de Tina Fey e a vilanização da feminilidade padrão
Tina Fey costuma usar essa artimanha constantemente em suas obras, como se estivesse atirando em todos os grupos igualmente. Zoando tanto os racistas brancos quanto os grupos discriminados, é como se Tina achasse que essa soma pudesse se anular no final, tal qual uma conta matemática, e tirasse a sua responsabilidade enquanto roteirista em dar vazão a seu próprio racismo. Isso já era considerado bastante retrógrado em 2004, mas hoje em dia é realmente inaceitável, e uma de suas séries, 30 Rock, teve alguns episódios retirados do ar por causa desse tipo de representação.
Outra visão bastante antiquada está na forma como o filme retrata a feminilidade padrão. Cady é apresentada como uma garota “normal” que caiu de paraquedas no mundo escolar e foi rapidamente corrompida pela vaidade e futilidade do mundo feminino. Ao seguir o plano de Janis e se infiltrar no grupo das Plásticas, Cady acaba se tornando uma delas, e fazendo várias crueldades com seus colegas e professores, tal qual Regina George fazia. A redenção, ao final, se dá por Cady abandonando os signos dessa feminilidade padrão, como as “roupas de vadia”, as atitudes fúteis, e até mesmo o linguajar dessas meninas populares.
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Na cena final do filme, no baile da escola, Cady está vestida com o casaco do time de matemática do colégio, simbolizando sua entrada oficial no time das garotas-que-não-são-como-as-outras-garotas™. Regina George, o expoente máximo dessa feminilidade no longa, é punida simbolicamente (e também literalmente) com violência física – ela é atropelada por um ônibus na frente da escola. Sua redenção, por fim, se dá por meio de ingressar nos esportes, uma atividade menos “feminina”. Só a partir daí Regina sossega e para de infernizar a vida de seus colegas.
Os símbolos de feminilidade padrão continuam a ser associados a corrupção e vilania, pois no final do filme Cady vê um grupo de meninas mais novas sendo as “novas Plásticas” na frente da escola, e trata logo de narrar que o jeito de acabar com elas seria mais uma vez um ônibus as atropelando. Cady, ao longo de sua jornada no filme, aprendeu que feminilidade padrão é uma coisa indesejável e deve ser combatida. Ela internalizou os ideais misóginos da sociedade.
A misoginia como um problema inventado pelas próprias mulheres
Existem filmes que buscam desafiar esses conceitos preconceituosos e mostrar que uma mulher pode sim abraçar a estética e cultura padrão e também ser bondosa e inteligente. Um desses exemplos é Legalmente Loira, que inclusive foi lançado alguns anos antes de Meninas Malvadas, e possui uma mensagem bem mais progressista.
Meninas Malvadas, ao contrário, trata a misoginia como um problema inventado pelas próprias mulheres, sem investigar realmente como a sociedade as molda para agirem assim, reproduzindo os mesmos ideais que as oprimem. O único comentário social a esse respeito é muito breve, e aparece na cena em que a irmã pequena de Regina está dançando de forma sensual na frente da TV, imitando o programa que está passando. Essa é a única cena que indica como as meninas são expostas desde muito cedo a essas imagens hipersexualizadas e reducionistas de feminilidade.
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A mensagem geral que o filme passa acaba sendo a de que, se as meninas criticam seus corpos em frente ao espelho, se tentam fazer dieta a todo custo mesmo sem saber o que estão comendo de fato, e se criticam as roupas umas das outras, é simplesmente porque são fúteis e não tem nada na cabeça. Como se por um acaso elas tivessem escolhido agir assim porque não tem nada melhor para fazer.
Aaron Samuels (Jonathan Bennett), o interesse romântico de Cady, se refere dessa exata forma às meninas quando o diretor está investigando o “livro do ódio” que causou confusão na escola: “Esse livro foi escrito por meninas estúpidas que inventam fofocas porque estão entediadas com suas vidas medíocres“. Esta fala de Aaron é tratada como a voz da sensatez, e o motivo pelo qual Cady resolve se entregar e confessar que inventou algumas das acusações escritas no livro. Aaron, assim como a sociedade à sua volta, liga diretamente a “futilidade” das meninas com suas atitudes cruéis, e, de fato, Cady só consegue o afeto de Aaron quando abandona tanto a estética da feminilidade padrão quanto as atitudes cruéis associadas a elas.
O arquétipo da “garota cool” e a inadequação feminina no patriarcado
No fim das contas, com mulheres sendo rechaçadas tanto por fugirem demais do padrão quanto por segui-lo à risca, fica evidente que não tem como vencer. Ser mulher no mundo patriarcal é ser inferior e inadequada, não importa o que você faça. O mais próximo que o ideário patriarcal inventou nos últimos tempos para tentar disfarçar este problema foi a criação da “garota cool“. Esse arquétipo ficou bastante prevalente nos filmes dos últimos anos.
A garota cool tem uma beleza padrão, mas não é fútil. Na verdade, ela gosta de coisas tradicionalmente masculinas, como esportes, cerveja, etc. Se for um filme de ação, é provável que a garota cool seja uma exímia lutadora de artes marciais, hábil com armas, e assim por diante, mas nunca perdendo a beleza. As pessoas costumam brincar que os homens inventaram a garota cool porque queriam mesmo namorar a si mesmos. A aparência feminina ali nada mais é do que uma capa.
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A visão misógina de que mulheres são seres inferiores impede com que homens consigam conceber personagens mulheres dignas sem que elas adotem características associadas a masculinidade. Mas, ao mesmo tempo, se forem “masculinas demais” as mulheres podem ameaçar o lugar de poder dos próprios homens. O resultado final acaba sendo uma tentativa de se chegar a um meio termo. Uma mulher que exiba características masculinas, consideradas “louváveis”, mas não demais, para não serem ameaçadoras.
Cady, no final de Meninas Malvadas, acaba tentando se encaixar em algo próximo de uma garota cool aos olhos da narrativa. Ela abandona a estética fútil das Plásticas e se junta ao time de matemática da escola, mas não chega ao ponto de se tornar uma “nerd inadequada”, como sua adversária na competição de matemática, retratada como um péssimo estereótipo, com roupas cafonas e maquiagem borrada – algo que é imediatamente percebido por Cady na cena. Cady continua se arrumando mais do que no começo do filme, mas agora de forma mais comedida do que quando andava com as Plásticas.
Mulheres também podem reproduzir o machismo que as oprime
É uma pena que o filme encare a discussão sobre feminilidade dessa maneira, mostrando, de uma forma até meio metalinguística, como as mulheres podem reproduzir a própria opressão que sofrem. Tina Fey, interpretando a professora de matemática no filme, fica encarregada de resolver o conflito entre as meninas da escola. E a primeira coisa que diz para o diretor sobre as meninas é: “não é questão de auto estima, elas gostam de ser assim”. Com a insistência do diretor, a professora acaba concordando em tentar fazer as meninas se acertarem, e mais uma vez solta um comentário machista: “vocês tem que parar de se chamar de piranhas e vadias. Isso só incentiva os homens a fazerem o mesmo.”
Esse é um dos pensamentos mais nocivos que o filme traz. É aquela famosa ideia de que mulheres tem que “se dar o respeito”, do contrário, homens tem justificativa para as tratarem mal. De fato, os homens do filme não são responsabilizados nenhuma vez pela misoginia presente no mundo das meninas. Quando alguns deles passam cantadas vexaminosas ou fazem comentários machistas, é tratado como piada, como “garotos sendo garotos”, uma atitude besta mas inofensiva.
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Aaron Samuels recompensa o comportamento cruel de Regina durante a maior parte do filme, e até o justifica em uma cena, dizendo para Cady que todo mundo tem lados bons e ruins, Regina apenas é mais honesta que a maioria das pessoas. Porém, Aaron jamais é retratado como um cúmplice no reino de Regina. Ele permanece como se fosse um par romântico ideal até o fim do filme.
E, por fim, o diretor da escola até tenta tomar as rédeas da situação e resolver o conflito das meninas, mas quando a primeira aluna menciona algo relacionado a menstruação, o diretor imediatamente abandona a missão e passa a tarefa para a professora, considerando o mundo feminino muito estranho e complicado para tentar entender e lidar. Vários desses momentos são retratados com objetivos cômicos, porém, se não subvertidos em algum momento do filme, acabam deixando a mensagem original que trouxeram.
As dinâmicas sociais retratadas no filme
O que Meninas Malvadas traz de melhor é a forma perspicaz com que retrata algumas dinâmicas sociais. Apesar de apresentar uma visão um tanto misantropa, o roteiro foi baseado no livro Queen Bees e Wannabes, de Rosalind Wiseman, um livro de auto-ajuda para pais de garotas que desejam entender os problemas pelos quais elas podem passar na escola. De fato, o foco do filme é sobre como Regina George usa seu status e poder de manipulação para controlar as pessoas a seu redor, justamente para continuar mantendo o poder que esse status lhe confere.
A cena em que Regina conhece Cady ilustra muito bem essa dinâmica. No refeitório, um rapaz surge do nada e começa a dar em cima de Cady. Esse rapaz é Jason, o interesse romântico de Gretchen, amiga e braço direito de Regina. Ao ver essa situação, Regina interfere e manda Jason embora. E, em seguida, convida Cady para sentar com seu grupo no refeitório, com intuito de saber mais sobre ela. Quem é essa nova garota, que é bonita e pode talvez se tornar uma ameaça para o reino de Regina na escola? Mais pra frente, o filme também deixa implícito que ela usou táticas semelhantes para cooptar Karen, outra garota bonita que poderia virar sua concorrente.
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Regina também usa estratégias para controlar seu próprio grupo, como a imposição de regras arbitrárias de vestimenta que elas devem usar em cada dia da semana. Claro que o filme, para efeitos de comédia, exagera esses elementos e coloca algumas coisas bem absurdas e infantis, mas as dinâmicas de dominação social em si acabam sendo bastante complexas e até bem fieis à realidade. Também é muito interessante notar como alguns professores e o diretor são retratados como vítimas da própria estrutura escolar, além de apresentarem algumas falhas que os tornam mais humanos.
Como a falta de acolhimento institucional prejudica as alunas
No fim, apesar de Meninas Malvadas não levantar essa mensagem explicitamente, é possível fazer a leitura de como a falta de uma estrutura institucional eficaz permite com que as alunas mantenham esse comportamento de dominação e agressão social.
Durante uma cena, quando Regina menciona brevemente o rumor que espalhou sobre Janis, ela fala que o episódio acabou resultando numa briga entre as mães das duas tentando resolver a situação, aparentemente sem o envolvimento formal de autoridades da escola. As consequências do rumor foram sérias o bastante para que Janis fosse excluída pelo resto dos alunos, e a fizessem sair da escola, voltando apenas no ano seguinte com uma estética totalmente diferente, diametralmente oposta à de Regina. Janis, obviamente, ainda nutre um grande ressentimento em relação ao ocorrido, tanto que resolve se vingar por conta própria quando enxerga uma oportunidade.
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Algumas pessoas apontam o quanto Janis também exibe características de uma menina malvada, tratando Cady com condescendência ao conhecê-la, se recusando a pronunciar seu nome corretamente, e a manipulando para conseguir sabotar Regina. Aliás, o grande erro do filme é também nunca mostrar Janis reconhecendo essas maldades e se desculpando com Cady. Apenas Cady realmente se desculpa com as pessoas que magoou no filme.
Uma importante questão, que nunca é levantada, é que, se a escola realmente oferecesse apoio institucional para resolver e mediar os conflitos entre os alunos, Janis não precisaria buscar reparação com as próprias mãos, em primeiro lugar. Regina permaneceu livre para continuar promovendo bullying contra ela e vários outros alunos na escola. Quando uma organização não assume seu papel institucional de mediar a relação entre seus participantes, eles sentem que só podem contar consigo mesmos para resolver seus problemas, muitas vezes recorrendo a táticas problemáticas e anti-éticas.
Regina é a única pessoa que o filme mostra tentando recorrer ao poder institucional da escola para virar o jogo ao seu favor, quando procura o diretor para mentir sobre ser vítima do “livro do ódio”. Nem Cady, nem Janis, nem nenhuma outra menina aparece procurando alguma via oficial da escola para reportar o bullying que sofre de Regina ou de algum outro aluno.
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O exercício de resolução de conflito proposto pela professora de matemática, ao final, acaba se mostrando algo quase cosmético. Apenas um paliativo que resolveu mais ou menos os conflitos imediatos daquela série na escola, mas que não se sedimentou em medidas de longo prazo para melhorar a interação entre os alunos na escola toda. Tanto que o filme termina com novas Plásticas mais jovens, perpetuando o mesmo ciclo que Regina mantinha no ano anterior.
Dessa forma, a resolução do filme soa quase falsa e incompleta, pois apenas Cady e alguns outros alunos conseguiram sair do regime de abuso individualmente, mas a estrutura social de agressividade e dominação vai permanecer intacta nas turmas seguintes.
Tina Fey parece mais preocupada em manter o retrato cínico que compôs daquele grupo de pessoas do que solucionar de forma autêntica o embate entre suas personagens. O filme, no final das contas, parece não levar muito a sério os conflitos, dores e motivações das adolescentes que retrata. Cady parece ser a única personagem que realmente aprende alguma lição ali, e o que ela aprende é que tem que ficar distante desse universo infantil, corrompido e maldoso das meninas populares, pois o mundo não vai realmente mudar assim tão rápido.
Ainda que esse retrato cínico da sociedade possa ter algum fundo de realismo, daria para o filme manter seu tom de humor, e mesmo assim adicionar algumas cenas em que Regina e Janis ao menos parecessem realmente passar por uma redenção mais autêntica. Hoje em dia felizmente temos filmes como Booksmart, da diretora Olivia Wilde, que também possui um tom cômico, mas subverte vários arquétipos e consegue levar os dilemas de suas personagens a sério sem perder a vibe leve e bem humorada.
Apesar de tudo, Meninas Malvadas permanece um filme muito divertido e engraçado. Apenas temos que nos dar conta de quais mensagens o filme está nos passando, para que não fiquemos reféns delas, e, assim como Tina Fey, acabemos as reproduzindo também.
Edição e revisão por Isabelle Simões.