Narrativas de terror e suspense no k-pop feminino

Narrativas de terror e suspense no k-pop feminino

A diferença entre horror e terror pode ser meio nebulosa e, por vezes, os dois se entrelaçam. A escritora Ann Radcliffe, pioneira da literatura gótica, relacionou o horror ao sentimento de choque após uma situação apavorante, enquanto o terror estaria ligado ao medo e à ansiedade. Aliado ao terror, o suspense funciona de forma semelhante: elementos da narrativa criam a atmosfera de incerteza, mas comumente dissociada de aspectos sobrenaturais.

Os três gêneros permeiam o cinema, a literatura e a música – nesse sentido, não seria diferente para o k-pop. O estilo se desenvolve de forma particular, diferente das produções europeias e americanas. O que une letras de música, videoclipes e álbuns físicos é o chamado conceito.

Dentro do k-pop, o conceito nada mais é do que a estética responsável pela harmonia entre toda a produção. Essa estética pode ser refletida na letra das músicas, nas fotos promocionais e nos clipes. Estes frequentemente contam alguma história, também chamada de lore. Não é de se surpreender que o horror, o terror e o suspense também marquem presença em uma indústria cujo planejamento estético é um fator essencial de mercado.

O suspense em Red Velvet

O girl group Red Velvet é conhecido pelo uso de diferentes estéticas, mas a atmosfera do suspense em seus clipes é frequente. Além do suspense, o estranhamento também atravessa as produções do grupo, seja pelo uso de elementos fantásticos, seja pela narrativa violenta. Um exemplo é o clipe Russian Roulette, no qual as integrantes se perseguem enquanto disputam por amor.

O clipe, em tons pastéis, retrata a rivalidade entre as garotas, marcada por tentativas de homicídio. Essa perspectiva violenta do amor também surge em Psycho, na qual o eu lírico está preso em um relacionamento desgastante e até mesmo abusivo. O clipe, com referências ao filme Cisne Negro (2010), traz elementos fantásticos e fantasmagóricos.

O suspense é muito claro nos clipes Peek-A-Boo e Chill Kill. No primeiro, as integrantes são um grupo de sequestradoras, responsáveis pelo sumiço de entregadores de pizza. O clipe mostra como as idols fazem jogos com armas, seduzem um desses rapazes e o guiam em rituais peculiares.

Cena do clipe de Peek-A-Boo
Cena do clipe de Peek-A-Boo, associada a rituais por conta das velas e da roda com as integrantes do grupo | Imagem: reprodução

Relações difíceis, soluções difíceis

A letra da música de Peek-A-Boo traz um eu lírico que trata o amor como um jogo inconsequente. Essa temática é comum nas músicas de Red Velvet, que aproximam o amor da violência e utilizam metáforas de duplo sentido. Assim, as canções encontram-se no cruzamento entre o romance inocente, a violência e o apelo sexual.

Ainda em Peek-A-Boo, a narrativa das sequestradoras também influencia o formato do álbum físico. No mercado do k-pop, a venda de álbuns físicos é muito comum, e os CDs são acompanhados de álbuns de fotos, fotos avulsas (como polaroids e cards), adesivos, entre outros itens. O álbum Perfect Velvet, que contém a canção Peek-A-Boo, tem o formato de uma caixa de pizza, e o CD é, literalmente, uma pizza.

Capa do álbum Perfect Velvet
Capa do álbum Perfect Velvet, com o CD em formato de pizza e o card da integrante Irene | Imagem: reprodução

Já o clipe de Chill Kill, do álbum homônimo, também apresenta uma narrativa sombria. As integrantes interpretam cinco irmãs em uma relação conflituosa com o pai, que é assassinado por uma delas. Desesperadas, as garotas fogem de casa, mas são encontradas pela polícia.

A letra da música, semelhante a Psycho, tem um eu lírico infeliz com o amor, mas esperançoso com a possibilidade do retorno de uma paixão antiga. Isso leva a um instrumental animado, inspirado pelo synth pop.

As narrativas em clipes de k-pop são importantes catalisadoras das fanbases. Nem sempre essas narrativas são lineares ou explícitas, o que leva os fãs a criarem teorias, escreverem análises de clipes e músicas ou até mesmo fanfics. Com esse tipo de atenção, muitas gravadoras planejam diferentes álbuns e clipes que dialogam entre si, de forma a instigar o público cada vez mais.

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Horror fantasmagórico em Dreamcatcher

O girlgroup Dreamcatcher, que estreou em 2017 em uma gravadora pequena, cativou o público utilizando a mescla terror e horror. Seus clipes fazem referência uns aos outros, despertando a curiosidade dos amantes do gênero. No clipe de debut, intitulado Chase Me, as sete integrantes são fantasmas atormentando um investigador paranormal. 

Imagem do clipe Chase Me, Dreamcatcher
Cena de ritual do clipe de Chase Me | Imagem: reprodução

A letra do single acompanha a narrativa do vídeo e apresenta um eu lírico fantasmagórico que persegue pessoas em seus sonhos. O instrumental, diferente do k-pop tradicional, incorpora riffs de guitarra, baterias fortes e uso de piano, aproximando-se do pop rock e do rock japonês.

Diferente de Red Velvet, que utiliza conceitos variados a cada lançamento, Dreamcatcher organiza seus álbuns e clipes com continuidade. Assim, os lançamentos se complementam seguindo determinados padrões conceituais.

O clipe de Chase Me termina com a mensagem “to be continued”, e o lançamento seguinte do grupo, Good Night, prossegue a narrativa, finalizando a história do investigador paranormal assombrado. Entretanto, em outro clipe, Fly High, ainda aparecem referências aos acontecimentos dos primeiros dois vídeos.

Em uma entrevista à PAPER Magazine, as integrantes do Dreamcatcher afirmaram que as narrativas de cada clipe formam uma única história. Também destacaram que cada pessoa pode ter uma interpretação diferente, já que a narrativa não é linear. Isso evidencia como o uso de histórias atrai o público e é parte fundamental do mercado do k-pop.

Entre terror e suspense no k-pop feminino

É perceptível que os dois grupos utilizam simbologias semelhantes para criar uma atmosfera sombria. As integrantes interpretam grupos de garotas enfrentando situações adversas – paranormais ou criminosas –, praticando rituais e perseguindo pessoas. Em cada clipe, as idols assumem o papel de anti-heroínas, e o público torce por elas, já que isso também envolve o mercado pop: apoiar um ídolo, mesmo em situações de brincadeira.

Entretanto, cada grupo possui suas particularidades. Enquanto Dreamcatcher utiliza elementos do pop rock e letras fiéis às narrativas dos clipes, Red Velvet transita entre pop e R&B com letras sobre amor e sofrimento. As produções visuais de Red Velvet frequentemente servem como metáforas para as canções.

Outra diferença é o uso de elementos fantásticos. Red Velvet utiliza elementos fantásticos em certos vídeos, como gatos gigantes, monstros e assombrações, mas não em vídeos com narrativas de suspense. Em Peek-A-Boo e Chill Kill, é apenas o comportamento das personagens que causa estranhamento.

Por outro lado, Dreamcatcher integra elementos fantasmagóricos tanto em suas letras quanto em seus clipes. O terror, o horror e a fantasia são essenciais para a identidade do grupo. Apesar dos temas peculiares, isso não impediu o sucesso de Dreamcatcher, que encontrou um público fiel.

É possível perceber como os dois grupos se apropriam da literatura, da fotografia e da produção audiovisual para construir narrativas. Ambos organizam minuciosamente os detalhes da produção e do lançamento de cada álbum, garantindo que tudo esteja em diálogo. Isso dá um toque especial ao k-pop e o diferencia das produções europeias e americanas, que lentamente abandonam os chamados álbuns conceituais.

Escrito por:

Estudante de Russo na USP, fã de Red Velvet e degustadora profissional de refrigerante de cereja. Acredita piamente que assistir Trainspotting e ler Gógol são as curas para os males do mundo.
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