Amores expressos: o prazo de validade de um sonho

Amores expressos: o prazo de validade de um sonho

Os primeiros dois minutos de Amores expressos (1994), de Wong Kar-Wai, adiantam o estado quase constante dos personagens que conheceremos ao longo de 1h 42m de filme: uma corrida desenfreada, alucinante, repleta de vultos indistintos em que só reconhecemos o perseguidor, mas o perseguido segue oculto. Ou, ao menos, parece trocar de rosto o tempo inteiro.

Wong Kar-Wai e o reflexo das condições contemporâneas

Há um certo consenso de que esta e outras obras do cineasta de Hong Kong, como Anjos Caídos (1995) e Amor à Flor da Pele (2000), ecoam as tendências da Nouvelle Vague¹ francesa, um movimento artístico das décadas de 1950 e 1960 que rompia com convenções hollywoodianas, como a rígida linearidade narrativa, além de explorar novas formas de montagem e planos.

De fato, Wong Kar-Wai se encaixa nesses critérios, mas seu olhar não está limitado apenas às tendências cinematográficas de três décadas antes, estando também profundamente ligado às condições materiais de seu próprio tempo — como ocorre com qualquer artista.

Faye (Faye Wong) em Amores Expressos
Faye (Faye Wong) em Amores Expressos

Essas mesmas condições expostas há mais de 30 anos ainda encontram reflexos no presente. Um indício disso é que seus filmes estão sendo revisitados por pessoas mais jovens, impulsionados principalmente pelos serviços de streaming, que recentemente adicionaram essas obras aos seus catálogos, e pelo crescente interesse em produções asiáticas.

Estética e melancolia: a influência visual de Amores Expressos

As imagens melancólicas dos personagens em cenários decadentes, sob a luz néon da noite nas grandes cidades, estão por toda parte no Pinterest e em páginas aesthetic no Instagram e no falecido X. Embora hoje tenhamos celulares e outras telas muito mais sofisticadas do que os “tijolões” de Amores Expressos, ainda é possível olhar para essas cenas e pensar: “Sim, eu entendo.”

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É claro que clássicos são clássicos porque nunca morrem. Conflitos amorosos, rompimentos, a busca por sentido e outros dilemas humanos são explorados desde a Antiguidade por poetas, dramaturgos, escultores e artistas plásticos.

No entanto, há um senso de urgência tão típico da modernidade que torna Amores Expressos relevante para espectadores de décadas posteriores, pois as coisas não mudaram tanto assim de lá para cá. Talvez só tenham piorado mesmo.

Sonhando com a Califórnia

Todas as folhas estão marrons (todas as folhas estão marrons)

E o céu está cinza (e o céu está cinza)

Eu saí para uma caminhada (eu saí para uma caminhada)

Num dia de inverno (num dia de inverno)

Eu estaria protegido e aquecido (eu estaria protegido e aquecido)

Se estivesse em L.A (se estivesse em L.A)

Sonhando com a Califórnia (sonhando com a Califórnia)

Num dia assim de inverno” ²

California dreamin’ – The Mamas & The Papas (1965)

No primeiro ato de Amores Expressos, com cerca de 40 minutos, somos apresentados a He (Takeshi Kaneshiro), um policial prestes a completar 25 anos que não aceita o término com sua ex-namorada, May.

Em seu estado de negação, He passa as noites em Hong Kong perseguindo criminosos e comprando abacaxis enlatados (a fruta favorita de sua ex). Quando, finalmente, o dia de seu aniversário chega, ele alcança uma triste conclusão: tudo tem prazo de validade, desde enlatados até o amor.

Mulher da peruca loira (Brigitte Lin) e He (Takeshi Kaneshiro) em Amores Expressos
Mulher da peruca loira (Brigitte Lin) e He (Takeshi Kaneshiro) em Amores Expressos

Na mesma madrugada de seus recém-completados 25 anos, ele conhece uma mulher misteriosa de peruca loira (Brigitte Lin). Tão rápido quanto um raio, ele se apaixona. Mais rápido ainda, ela some, deixando apenas um “feliz aniversário” por telefone.

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Então chega o segundo ato. Acompanhamos o término de mais um policial, identificado apenas por seu número de registro: 663 (Tony Leung Chiu-wai). Sua agora ex-namorada (Valerie Chow) é uma aeromoça, também sem nome, que decidiu que queria experimentar “outros jantares”, como ele mesmo descreve.

Enquanto desabafa no balcão de uma lanchonete, a recém-contratada Faye (Faye Wong) se apaixona por ele. Em um incidente, ela consegue a chave do apartamento do policial e começa a invadir a residência, trocando coisas de lugar e descobrindo a intimidade de seu afeto.

A idealidade nos filmes de Wong Kar-Wai

Assim como nos outros dois longas citados de Wong Kar-Wai, os romances são quase-romances. Talvez não-romances. Os afetos são alimentados pelo desejo não concretizado, pela busca do que é imaginário, um ideal. He não tinha ideia de quem era a mulher de peruca loira, e talvez não se encantasse por ela se soubesse que ela era uma traficante e assassina.

O policial 663 não conhecia as músicas e os pratos favoritos de sua ex-namorada. Faye, embora tivesse acesso à casa de 663, não tinha coragem de conversar com ele e, no final das contas, sua busca a leva a uma nova profissão, não a um relacionamento.

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A jornada de Faye: entre a fuga e a autodescoberta

Aliás, mesmo que todos os personagens tenham seu valor e carisma, Faye se destaca (mérito também da atuação divertida da atriz). Após tanto escutar em looping e sempre no volume máximo a canção California Dreamin’, ela de fato vai em busca de sua Califórnia.

Tudo isso acontece quando finalmente surge a oportunidade que parecia ser o que ela desejava: um convite para um encontro com 663. Paradoxalmente, suas escolhas — não ir ao encontro, viajar para outro país e se tornar aeromoça — podem ser tanto uma fuga de uma relação real quanto uma descoberta de que ela não queria um amor.

Policial 663 (Tony Leung Chiu-wai) em Amores Expressos
Policial 663 (Tony Leung Chiu-wai)

Sua jornada é um exemplo do que é viver em uma selva de pedra, com um trabalho mal remunerado e sem muitas perspectivas de mudança.

A imprevisibilidade das relações e do futuro

O medo da imprevisibilidade do amanhã retroalimenta o medo da imprevisibilidade inerente de uma relação, como diz a personagem anônima do primeiro ato: “Na verdade, conhecer realmente alguém não significa nada. Pessoas mudam. Uma pessoa pode gostar de abacaxi hoje, e depois gostar de qualquer outra coisa amanhã.”

Todos esses dilemas modernos são acompanhados por uma montagem que não permite que os olhos e a mente do espectador contemplem e processem plenamente o que estão vendo. Muitos rostos não passam de borrões indistintos, como os que vemos todos os dias nas correrias cotidianas das ruas.

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Após assistir ao filme pela segunda ou terceira vez, percebe-se, por exemplo, que todos os personagens principais do longa — inclusive os que só são apresentados no segundo ato — já estavam presentes nos primeiros minutos. No entanto, eles aparecem tão rapidamente, em enquadramentos tão distantes, que é impossível distingui-los de figurantes qualquer.

A fagulha de esperança

Surpreendentemente, embora Amores Expressos se conclua sem concretizações e com um núcleo melancólico e solitário, há também uma fagulha de esperança. He, após sua dose de amor expresso, entende que uma relação pode não durar, mas percebe o valor delicado — e talvez eterno — da gentileza de um “feliz aniversário”.

O policial 663 decide iniciar um novo e improvável empreendimento. Faye, por fim, escolhe ouvir seus próprios pensamentos depois de tanto sufocá-los com música alta. À sua maneira, cada um segue sonhando com o sol em meio a um dia de inverno.

Parei em uma igreja

Pela qual eu passei ao longo do caminho

Bem, eu fiquei de joelhos (fiquei de joelhos)

E finjo rezar (eu finjo rezar)

Você sabe que o pregador gosta do frio (o pregador gosta do frio)

Ele sabe que eu vou ficar (sabe que eu vou ficar)

Sonhando com a Califórnia (sonhando com a Califórnia)

Num dia assim de inverno“³

– California dreamin’ – The Mamas & The Papas (1965)

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Notas:

1. “Nova onda”, em uma tradução literal

2. “All the leaves are brown (all the leaves are brown)

And the sky is gray (and the sky is gray)

I’ve been for a walk (I’ve been for a walk)

On a winter’s day (on a winter’s day)

I’d be safe and warm (I’d be safe and warm)

If I was in L.A. (if I was in L.A.)

California dreamin’ (California dreamin’)

On such a winter’s day”

3. “Stopped into a church

I passed along the way

Well, I got down on my knees (got down on my knees)

And I pretend to pray (I pretend to pray)

You know the preacher like the cold (preacher like the cold)

He knows I’m gonna stay (knows I’m gonna stay)

California dreamin’ (California dreamin’)

On such a winter’s day”

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5 Textos

Criança dos anos 2000, filha do cerrado mato-grossense, estudante de História(s) e pesquisadora da cultura. Aspirante a crítica.
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