Os Ecos de Cassandra: a profetisa amaldiçoada cuja história ressoa na luta contemporânea das mulheres

Os Ecos de Cassandra: a profetisa amaldiçoada cuja história ressoa na luta contemporânea das mulheres

Cassandra de Tróia, uma personagem da mitologia grega, é conhecida por sua imensa beleza e, acima de tudo, pelo seu dom amaldiçoado da profecia. Ela aparece pela primeira vez na Ilíada de Homero como uma princesa que recebeu o dom da previsão do deus Apolo. No entanto, Apolo a amaldiçoou, fazendo com que ninguém acreditasse em suas previsões.

Filha do rei Príamo e da rainha Hécuba de Tróia, Cassandra teve a capacidade de antever eventos significativos, como a queda de Tróia e a morte de Agamenon. Sua história é permeada por temas comuns na literatura antiga: guerra, oráculos, maldições familiares e as trágicas consequências de previsões ignoradas.

Esses temas ainda são muito atuais para a mulher contemporânea. Eles incluem assédio sexual, a situação da mulher em períodos de guerra e conflito, além da descrença na palavra das mulheres. Isso se aplica tanto às suas próprias experiências quanto em ambientes políticos e acadêmicos.

A história de Cassandra de Tróia serve como um fio narrativo protofeminista que atravessa séculos. Sua tragédia é uma lente crítica valiosa para examinar os ecos silenciosos das verdades não ouvidas das mulheres ao longo da história.

Cassandra, interpretada pro Aimee-Ffion Edwards em "Troia: Queda de Uma Cidade" da BBC One
Cassandra, interpretada pro Aimee-Ffion Edwards em “Troia: Queda de Uma Cidade” da BBC One

Quem é Cassandra de Tróia?

O termo “Cassandra” se tornou sinônimo de “indivíduo cujos avisos e previsões corretos são ignorados“. Embora aplicado em diversos contextos, é impossível negar que grande parte das Cassandras do mundo são mulheres. O silenciamento dessas mulheres, como o de Cassandra, reflete implicações sociais e culturais mais amplas, afetando não apenas elas, mas frequentemente a sociedade como um todo.

As discussões sobre o papel das mulheres na mitologia grega continuam, conectando-se através de inúmeros trabalhos acadêmicos e de ficção com debates sobre a condição da mulher na contemporaneidade. Cassandra de Tróia se torna cada dia mais uma figura monumental na exploração das dinâmicas de credibilidade, crença, poder e a tragédia daqueles que não são ouvidos.

O mito de Cassandra começa quando a princesa chama a atenção do deus Apolo, deus da profecia entre outras coisas. Apolo a deseja como amante e a presenteia com o dom da previsão. Quando ela o rejeita, Apolo lança uma maldição sobre ela.

Cassandra, então, consegue ver que todas as escolhas feitas pelas pessoas ao seu redor levarão à destruição de Tróia e à morte ou escravização de seu povo, sua família e dela própria. No entanto, nenhum de seus avisos é ouvido. Assim, resta à princesa a tragédia de observar os horrores do futuro se desenrolarem diante dela, sabendo seu destino e sendo incapaz de fazer qualquer coisa para evitá-lo.

Após a queda de Tróia, Cassandra busca refúgio no templo de Atena, onde é brutalmente violada por Ajax. Depois, ela é feita escrava e concubina do rei grego Agamenon. Este relacionamento acaba resultando em sua morte: Cassandra é assassinada junto com Agamenon pela esposa dele, Clitemnestra. Clitemnestra mata o marido para vingar sua filha, Ifigênia, sacrificada para garantir o sucesso da campanha grega contra Tróia.

O seu legado

O fim de Cassandra evidencia as terríveis consequências da guerra para as mulheres. No contexto em que foi escrito, também serve como comentário sobre a vulnerabilidade das mulheres na Antiguidade. Discutir Cassandra como uma representação das mulheres cujas versões da história são silenciadas em casos de estupro e assédio sexual é essencial.

É importante, para a discussão de Cassandra enquanto representação de mulheres que têm suas versões da história silenciadas em casos de estupro e assédio sexual, mencionar aqui o significado do nome “Cassandra” – “aquela que enreda homens” –, uma escolha particularmente significativa.

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O legado de Cassandra, entretanto, não pode ser resumido ao seu fim trágico. Ela serve como um símbolo marcante da invisibilidade das mulheres e da falta de credibilidade dada às suas opiniões e vivências, sobretudo em relação ao assédio sexual, do qual é vítima em mais de uma ocasião.

O complexo de Cassandra

Cassandra deu origem ao termo “Complexo de Cassandra”, que descreve cenários onde avisos válidos são ignorados, particularmente em contextos de disparidades de poder e descrença por motivos identitários.

Sua história, ricamente contada na arte e literatura da Antiguidade, é recuperada por diversos autores, acadêmicos e artistas contemporâneos.

Ela continua a ilustrar a relevância atemporal de suas experiências como representação das vozes daqueles que são deixados à margem de discussões importantes, descreditados em função de seu gênero, etnia, sexualidade ou passado. Portanto, Cassandra figura de maneira proeminente em discussões culturais e psicológicas.

O conceito do Complexo de Cassandra é de extrema importância para a compreensão do significado cultural do mito de Cassandra. Esse conceito é particularmente relevante no contexto de vozes de mulheres sendo desacreditadas ou ignoradas por completo, com consequências graves para elas e para outros.

Na psicologia, essa metáfora se estende a indivíduos que sentem que suas percepções e sofrimentos pessoais são ignorados, aumentando seu sofrimento.

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Influência na cultura

Melanie Klein, famosa psicanalista austríaca na primeira metade do século XX, e Laurie Layton Schapira, psicanalista, professora, escritora, produtora e diretora, fascinada por mitologia grega e criadora de uma série de filmes, livros e palestras sobre psicologia feminina, exploraram profundamente a metáfora de Cassandra.

Klein viu Cassandra como uma representação da consciência moral humana, avisando sobre as repercussões de violações morais. Enquanto isso, Schapira identifica um “complexo de Cassandra” em relações disfuncionais, caracterizadas por sofrimento emocional ou físico e descrença.

Por outro lado, a psicanalista Jean Shinoda Bolen discute, através do conceito da “mulher Cassandra”, os relacionamentos disfuncionais dessas mulheres com o “homem Apolo” – relações onde preocupações legítimas são tratadas quase como manifestações histéricas.

O Complexo de Cassandra tem relevância em uma série de espaços, incluindo movimentos sociais, ambientes corporativos, discussões políticas e experiências diárias de mulheres cujas palavras pouco valem frente às de um homem. Ele se aplica, enfim, a qualquer ocasião onde os avisos de indivíduos com conhecimento técnico ou que estão “do lado certo” da história são ignorados até que seja tarde demais.

Essa metáfora também permeou a cultura pop, influenciando músicas, filmes e livros. Em exemplos recentes, os livros O Silêncio das Mulheres e Mulheres de Troia de Pat Barker, Mil navios para Troia, de Natalie Haynes, o filme Tróia (2004), a série Tróia: Queda de Uma Cidade, e músicas de Florence + The Machine e Taylor Swift, ambas intituladas “Cassandra”, atestam sua relevância duradoura como maneira de expressar as frustrações e consequências de ser desacreditada.

A importância da história de Cassandra para as mulheres

O mito de Cassandra, assim, não se limita a refletir preocupações da Antiguidade, mas também ressoa com uma série de questões contemporâneas, particularmente a crítica feminista da maneira como as verdades de mulheres são, com frequência, colocadas de escanteio em discussões sociais.

Mesmo mulheres em posições de senioridade encontram ceticismo quando preveem resultados negativos ou fazem avisos sobre potenciais ameaças. Esse eco moderno do sofrimento de Cassandra ilustra a forma como mulheres, mesmo com poder, são frequentemente questionadas e ignoradas.

Assim, a narrativa da princesa de Tróia encontra contrapartes contemporâneas mais felizes em mulheres ao redor do mundo que, num mundo “pós-Me-Too”, estão transformando suas experiências de medo e vergonha em poder. Ao falar abertamente, essas mulheres abandonam o papel de vítima passiva e tomam o lugar de resistência, em uma mudança crucial para a alteração da percepção e resposta públicas às vozes femininas.

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Influência na literatura

Trabalhos literários recentes escritos por mulheres – como Free Cyntoia de Cyntoia Brown, Know My Name de Chanel Miller, Brave de Rose McGowan e Born Still de Janet Fraser – não apenas recontam as experiências pessoais das autoras com injustiças com base de gênero, mas também criticam instituições que protegem perpetradores e desacreditam vítimas.

É interessante observar que trabalhos literários de ficção que repensam a história de Cassandra, dando mais agência à essa personagem que é escrita por Homero como primariamente trágica, vem surgindo no mesmo momento, refletindo a relevância da história de Cassandra em discussões sobre traição institucional e silenciamento de vítimas.

Na mídia contemporânea, o estereótipo de Cassandra é representado de maneira vívida, iluminando tendências sociais que frequentemente levam à não legitimação de certas vozes e, em uma linguagem atual, à prática de gaslighting.

A Cassandra da mídia moderna – assim como do mundo moderno – é, com frequência, uma mulher vítima de violência doméstica ou abuso sexual. No entanto, também pode tomar a forma de cientistas, profissionais e ativistas, tanto homens quanto mulheres. Suas opiniões profissionais sobre assuntos sérios são vistas com ceticismo, ignoradas ou, às vezes, negadas por completo, até que seja tarde demais.

Quem são as Cassandras da atualidade?

Cassandra, desde sua gênese até os dias de hoje, é utilizada como símbolo dos desafios enfrentados por muitos para serem ouvidos e, sobretudo, acreditados. A princesa amaldiçoada de Tróia, como as muitas Cassandras da atualidade, é vítima de dinâmicas de poder injustas.

Em seu caso, enfrenta o poder de um Deus contra as possibilidades de uma simples mortal, o que impede que suas previsões e avisos sejam levados a sério. Através do prisma dessa forte narrativa, as dificuldades de muitos, especialmente de mulheres, em ter suas verdades ouvidas e reconhecidas são expostas.

Traçar a jornada de Cassandra desde a mitologia grega até suas reencarnações contemporâneas é sublinhar uma tragédia cíclica de vozes silenciadas, iluminando as profundas implicações disso para indivíduos e sociedades.

A exploração de seu legado, desde artefatos antigos que carregam sua imagem até representações contemporâneas, seja literárias, musicais ou nas telas e palcos, demonstra a persistente relevância de sua história para emoldurar discussões sobre as dimensões culturais e psicológicas da descrença.

Essas reflexões buscam, por fim, construir um mundo onde os ecos dos avisos de Cassandra encontram não o silêncio, mas a ressonância e o reconhecimento.

Escrito por:

Estudante de História na Universidade Federal do Amazonas e dona do instagram @behindherglasses_
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