Eduardo e Mônica: reflexão a respeito das idealizações dos relacionamentos

Eduardo e Mônica: reflexão a respeito das idealizações dos relacionamentos

Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração e quem irá dizer que não existe razão… Pode parecer previsível, mas começar um texto que vai falar da adaptação cinematográfica de “Eduardo e Mônica”, uma das músicas mais icônicas e famosas da banda Legião Urbana, não parece correto de outra forma.

Eduardo e Mônica tornaram-se um dos casais mais conhecidos da cultura popular brasileira ao terem sua história narrada na canção que ficou eternizada na voz de Renato Russo. O saudoso cantor transformou em música a história (com algumas modificações) de um casal de amigos. Lançada em 1986 no álbum “Dois”, é estranho pensar que levaram tanto tempo para produzir um filme a respeito. Embora tenha sido lançado em 2011 um curta/clipe muito bom com a música, como campanha publicitária para o dia dos namorados da empresa de telefonia Vivo, a canção também já fez parte de outras peças publicitárias, mas é a primeira vez que a história foi levada às salas de cinema.

A obra se trata da segunda incursão do diretor René Sampaio ao universo das canções da Legião Urbana. Antes disso ele também foi o responsável pela direção de Faroeste Caboclo (2013), adaptação de outra famosa canção da banda, que narra a história de João de Santo Cristo.

René Sampaio, Alice Braga, Gabriel Leone e membros da equipe técnica no set de filmagem de "Eduardo e Mônica".
René Sampaio, Alice Braga, Gabriel Leone e membros da equipe técnica no set de filmagem. (reprodução)
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Por conta disso, alguns fãs estão arriscando dizer que temos aqui a criação de um “Legiãoverso”. E pode-se até dizer que com direito a crossover, pois em uma rápida cena de Eduardo e Mônica, um personagem que em nenhum momento sabemos o nome, mas que é interpretado por Fabrício Boliveira (mesmo ator que atua como o protagonista de Faroeste Caboclo), flerta com Mônica (Alice Braga) em uma balada. Talvez essa seja uma dica de que os filmes se passam no mesmo universo, afinal ambos estão atravessando os anos 1980 e acontecem quase que inteiramente em Brasília.

Mas com o “Legiãoverso” existindo ou não, Eduardo e Mônica alcançou e emocionou muitos fãs. A obra que teve suas filmagens finalizadas em 2019, tinha previsão de lançamento para 2020, mas devido a pandemia só estreou nos cinemas em janeiro de 2022. E como muitas já sabem, os acontecimentos da narrativa se desenrolam em volta do relacionamento de Eduardo (Gabriel Leone) e Mônica, que se conhecem em uma “festa estranha com gente esquisita” e têm seu namoro pautado em cima do clássico “os opostos se atraem”.

O longa é bem fiel a música, e ainda que insira alguns novos elementos, em momento algum se contrapõe a obra que o inspirou. O roteiro conseguiu desenvolver mais camadas para os protagonistas, mas sem deixar de inserir referências que vão fazer espectadoras ficarem felizes ao reconhecê-las.

O personagem de Fabrício Boliveira flertando com Mônica (Alice Braga).
O personagem de Fabrício Boliveira flertando com Mônica. (reprodução)
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O filme começa, assim como a canção: Eduardo abre os olhos, mas resiste em sair da cama. Enquanto Mônica toma seu conhaque em algum bar em outro canto da cidade. O longa traz como motivo para Mônica estar bebendo tão cedo, o fato de ela ter acabado de perder o pai. Sendo aquele o dia no qual ela e sua família vão se despedir de suas cinzas. Uma carga dramática já vai sendo inserida, para nos introduzir ao mundo dos personagens-títulos. E em menos de cinco minutos já somos apresentadas ao avô de Eduardo, que é quem o acorda. E à mãe e a irmã de Mônica que estão juntas com ela no momento da despedida, que acontece de uma forma inusitada, graças a protagonista.

De forma geral, não existem grandes novidades em relação à estrutura da narrativa fílmica. Contudo, como se trata de um longa com cerca de duas horas de duração, a trama precisa ser melhor contextualizada e seus personagens acabam por exigir mais profundidade. Momentos e situações que não são retratados na canção e que ficam a cargo da imaginação de quem a escuta, em uma produção audiovisual precisam ganhar forma. E ainda que o roteiro do filme cumpra a fidelidade com a canção, a direção busca conservar uma proposta que funcionou muito bem em Faroeste Caboclo, a de estampar atualidade nessas histórias, em especial quando se trata do contexto político.

Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer…

Algumas coincidências levam Eduardo e Mônica a se conhecerem na tal “festa estranha”. Assim, acompanhamos as investidas desajeitadas de um garoto de 16 anos a uma graduanda de medicina, já quase formada, de vinte e poucos anos. E mesmo um tanto abalada com a morte do pai, Mônica dá abertura para um estranho que não consegue parar de falar e que lhe oferece jujubas. E após passarem parte da noite conversando, uma conexão é criada.

As influências culturais em "Eduardo e Mônica"
Pôster da banda Bauhaus, que segunda a música é uma banda que Mônica gosta, colado em um muro. (reprodução)

Eduardo é um adolescente de classe média, que foi abandonado pelo pai e perdeu a mãe ainda criança. Devido a isso, foi criado pelo avô Bira (Otávio Augusto), um militar que buscou criar o neto dentro dos bons costumes da família tradicional brasileira e da moral cristã. Já a família de Mônica faz parte da elite progressista. Com a mãe médica e o pai artista, a garota se envolveu com esses dois mundos, pois além de estudar medicina, abraça a arte através de manifestações/instalações artísticas que ela expõe em eventos. Mônica vê na arte uma forma de melhor se expressar.

Também é interessante observar que o fato de a futura médica ser uma mulher que possui uma bagagem cultural muito mais além, não ser algo que intimida Eduardo, mesmo ele dando inúmeras bolas fora. Por exemplo, quando Mônica sugere de assistirem a filmes da Nouvelle Vague em uma mostra, Eduardo questiona se estão passando novela no cinema. Ou quando ele fala que não entende o pessoal que medita e descobre que Mônica pratica meditação, ou ainda quando ele vê uma manifestação pacífica e pergunta se aquele povo não trabalha e logo em seguida vê que são conhecidos de Mônica e ela se junta a eles.

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As situações são colocadas de formas engraçadas, mas algumas delas fazem crítica à visão um tanto limitada de mundo que Eduardo tem. Ainda que jovem e um pouco mais mente aberta, o garoto foi criado por um avô militar que não enxerga com bons olhos as manifestações pacíficas de pessoas lutando para consertar o Brasil. No momento em que Eduardo vê Mônica se unido à manifestação, dá a entender que é a primeira vez que ele para pra pensar que aquilo não é simplesmente coisa de gente desocupada. Ainda que fique frustrado por perder a atenção da crush.

Mônica (Alice Braga) participando da manifestação.
Mônica participando da manifestação pacífica. (reprodução)

E mesmo que Eduardo não possua tantos conhecimentos na vida, ele vai ajudando Mônica a levar a vida de uma forma mais leve. Enquanto um apresenta seu mundo para o outro, vamos observando o quanto são diferentes em quase tudo. Nem mesmo nas músicas eles combinam. Enquanto Mônica diz gostar muito de rock inglês citando nomes como David Bowie, The Cure e Joy Division, Eduardo diz que escuta o que estiver tocando na rádio e que a música que está na cabeça dele no momento é Total Eclipse of the Heart, de Bonnie Tyler. E, por incrível que pareça, é cantando essa música em um karaokê (em uma das melhores cenas do filme) que ele conquista Mônica de vez e os dois engatam um romance.

Atualidades políticas

Apesar de o longa se passar nos anos 1980 é trabalhado uma crítica à fase política que o Brasil se encontrava que é muito semelhante ao nosso momento atual. Eduardo mora com o avô que legitima o regime militar como salvação do país. Quando Mônica é apresentada ao seu Bira no jantar de natal idealizado por Eduardo, não demora muito para que o garoto veja a namorada e o avô batendo de frente. Seu Bira faz críticas à juventude, sobretudo a respeito de casais homoafetivos e faz pouco caso do exílio sofrido pelo pai de Mônica.

O avô de Eduardo representa inúmeros brasileiros e brasileiras que realmente acreditam que o período militar foi algo bom. É triste olharmos para aquele personagem e vermos que é a personificação de muitos dos nossos cidadãos. Transferindo essa personalidade para seu Bira, a obra traz uma outra situação que também vem sendo comum nos lares brasileiros. As dificuldades em lidar com um familiar que você ama e é importante na sua vida, mas que tem uma visão de mundo que vai totalmente contra seus princípios.

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Cena do filme "Eduardo e Mônica"
Jantar de Natal, no qual Mônica se desentende com o avô de Eduardo. (reprodução)

Embora tenha sido criado pelo avô, Eduardo desenvolveu senso crítico, social e político suficiente para não concordar com ele em tudo, principalmente depois que conheceu Mônica. Mas não tem como simplesmente ele se afastar do avô. Não só pelo fato de depender financeiramente e de morar na casa dele, mas pela ligação afetiva. Não é tão simples você se afastar de alguém que é importante na sua vida. E essa vem sendo uma situação muito recorrente no Brasil. E se você não passou por algo parecido, provavelmente conhece alguém que passou/passa por tal situação. Então, é bem interessante a obra abordar isso, trazendo uma circunstância reflexiva a respeito.

Eduardo e Mônica e as referências da canção

Um dos pontos enriquecedores da trama são as referências da música que vão aparecendo. Em alguns momentos é inserido de forma que chama mais atenção, em outros de forma mais orgânica e discreta. Por exemplo, Mônica tem uma moto e Eduardo uma bicicleta; ela tem Bandeira como escritor favorito e ele gosta de assistir novelas.

Porém, uma das referências mais sutis, mas que é muito interessante, é quando Eduardo canta London London, de Caetano Veloso, a fim de fazer as pazes com Mônica após um desentendimento. Na música da Legião ouvimos que ela gosta de Caetano, então quando Eduardo escolhe uma canção dele para cantar para namorada, já entendemos o motivo.

Contudo, a escolha da canção provavelmente tem um significado maior. London London reflete a experiência de Caetano Veloso quando foi exilado em Londres. Em 1968, ele e Gilberto Gil foram presos e depois forçados a um exílio que durou dois anos e meio. A canção expressa toda a solidão que o músico sentia em um país desconhecido. A situação se assemelha também a do pai de Mônica e tantas outras pessoas que foram exiladas durante o período militar.

As referências da canção de Legião Urbana.
Eduardo cantando London London para Mônica. (reprodução)

Uma carta de amor a Brasília

Renato Russo sempre fez questão de mencionar Brasília em algumas de suas composições. Ainda que tenha nascido no Rio de Janeiro, o cantor se mudou para a capital do país ainda adolescente e pôde compartilhar sua paixão pela música com a juventude brasiliense apaixonada por rock n’ roll.

A canção fala que Eduardo e Mônica se encontraram no Parque da Cidade, referenciando um dos parques mais amados entre os brasilienses, que é famoso por servir de point de encontro da galera, e atualmente expõe entre suas imediações uma estátua de Renato. No longa, o Parque aparece algumas vezes, em especial para ilustrar os momentos felizes do casal.

E já que a canção não faz nenhuma outra menção direta a algum lugar específico da cidade, René Sampaio contou com a ajuda de Matheus Souza (roteirista), que é natural de Brasília para trazer outras locações importantes. Desse jeito, ganhamos cenas como a que foi filmada no Congresso Nacional, um dos maiores símbolos de Brasília. Nesse momento, vemos Eduardo e Mônica brincando de fazerem sombras na cúpula. É uma cena que esbanja a naturalidade de quem vive pelas redondezas. Afinal, se você vai lá como turista dificilmente vai parar pra fazer esse tipo de brincadeira.

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Contamos ainda com monumentos como o Setor Militar Urbano, no qual o casal passeia de moto. E o Teatro Nacional, assinado por Oscar Niemeyer, que já serviu como palco de apresentações da Legião Urbana e que é famoso também por sua área externa ser revestida por um painel formado de blocos de concreto nas fachadas laterais, criado por Athos Bulcão, que aparece no filme.

O filme é uma carta de amor a Brasília
A esquerda, a banda Legião Urbana entre os blocos de concreto do Teatro Nacional; a direita, cena do filme no mesmo local. (reprodução)

Dessa forma, a maneira como Brasília é usada como cenário dos acontecimentos da história de Eduardo e Mônica colabora com a forma sensível da narrativa em trabalhar com os jogos de controle envolvidos em um relacionamento tão heterogêneo. A cidade que para muitos parece assustadora, em especial por ser a Sede de Governo do Distrito Federal, se mostra como um palco acolhedor, que abraça os momentos de felicidade e angústia dos nossos protagonistas.

Um outro fator que chama a atenção foi o acesso que os protagonistas ganharam para terem seus momentos sozinhos. Assim, recebemos passagem para entender melhor seus apegos emocionais e aflições. É na companhia do amigo Inácio (Victor Lamoglia), que Eduardo desabafa seus anseios e o quanto é difícil manter uma relação sendo um casal tão díspar. Já Mônica, em seus momentos só, traz seus anseios em relação ao futuro, o que acarreta em uma relação um pouco conturbada com sua mãe. Enquanto um está a caminho de sair da adolescência para encarar a vida adulta, a outra precisa dar os próximos passos e fazer escolhas, sair ainda mais da zona de conforto.

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Diferença de idade, posicionamento político, bagagem cultural, vivências. Tudo isso acaba influenciando no namoro, e enquanto acompanhamos os desdobramentos da relação, observamos o quanto esses componentes pessoais dialogam com a configuração social e, quando se reúnem, não tem como não influenciar no relacionamento.

Alice Braga e Gabriel Leone contracenando na adaptação.
Mônica & Eduardo (reprodução)

Assim sendo, a música na qual o longa se baseia é um forte alicerce, mas são as ramificações desenvolvidas para os personagens do filme que dão mais potência para a obra. É uma pena não terem se aprofundado um pouco mais nos coadjuvantes. A família e os amigos de Mônica são personagens que poderiam ter ganho mais espaço, assim como Inácio e seu Bira, que acabam ficando muito à margem da obra, mas ainda assim o elenco entrega ótimas performances.

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E no fim das contas, a história de Eduardo e Mônica transcorre tão próxima de nós que nem nos damos conta. A narrativa do casal, que é classificada por muitos como um conto de fadas urbano, que fala a respeito de opostos que se atraem, se mostra na prática como é o encarar ser adulto: exaustão mental, trabalhos cansativos, familiares preconceituosos, amigos e amigas com as mais variadas personalidades e afastamentos que se mostram muito atormentadores e difíceis de suportar.

Eduardo e Mônica expressa que quando se coloca em prática, nada é tão simples. Mas assim como na canção, a obra faz seu fechamento de forma positiva. Assim, o casal que tinha tudo para não dar certo finaliza a trama idealizando gêmeos para um futuro no qual querem estar juntos. E ainda que Renato Russo tenha trazido muitas músicas que descreviam a triste realidade do cenário político brasileiro (vide canções como Índios, Que País é este? e Perfeição), ele ainda criava músicas sobre as peculiaridades de estar apaixonado e de como a esperança no amor pode te ajudar a atravessar as adversidades da vida. E é essa a mensagem que René Sampaio tenta passar através de sua adaptação. Porém, uma dúvida permanece: existe ou não razão nas coisas feitas pelo coração?

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Denise é bacharela em cinema e tem amor incondicional por tal arte. Pesquisa e escreve sobre feminismo e a representação das mulheres na área do audiovisual. É colecionadora de DVDs, fã da Audrey Hepburn, apaixonada por Rock n' Roll e cultura pop. Adora os agitos dos shows de rock, mas tem nas salas de cinema seu local de refúgio e aconchego.
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