Na última sexta-feira, dia 19 de agosto, a Netflix surpreendeu a todos ao disponibilizar um episódio bônus de The Sandman, intitulado Sonho de mil gatos/Calíope, histórias presentes no arco Terra dos Sonhos e que focam em diferentes personagens fora da narrativa central do quadrinho.
Aviso: Parte 1 do texto livre de spoilers
O episódio bônus “Sonho de mil gatos/Calíope” não havia sido anunciado formalmente pela Netflix, no entanto, os fãs souberam da novidade por um vídeo em que as drags Trixie Mattel e Katya Zamolodchikova reagiam a alguns episódios de The Sandman e, em alguns momentos, cenas que não apareceram nos dez primeiros episódios da série foram divulgadas (trechos em que Morpheus – Tom Sturridge – contracenava com Calíope – Melissanthi Mahut –, e as imagens de alguns felinos, personagens de “Sonho de mil gatos”).
O vazamento da informação não tirou o brilho do episódio de número 11 da série: “Sonho de mil gatos/Calíope” encerra para valer a primeira temporada de The Sandman, apresentando duas histórias que saem da ordem cronológica das demais e do foco da narrativa em Morpheus, e cujos temas giram em torno do aprisionamento, seja ele físico ou psicológico, e das maldades que o ser humano é capaz de cometer.
A força felina em “Sonho de mil gatos”
“Sonho de mil gatos” é uma das histórias mais queridas de Sandman e, na série, ganha um novo e belo formato para ser contada: o episódio é inteiro em animação!
Na trama, uma gata (dublada por Sandra Oh) engravida e dá à luz aos seus filhotes, o que deixa seu dono (dublado por Michael Sheen) enfurecido. O homem decide se livrar dos gatinhos e ela, em meio à gigantesca tristeza que a tomou, e após ter um sonho revelador em que Morpheus, na forma de um grande gato preto, mostra a ela um universo alternativo em que o bichanos não mais sofreriam, foge de casa para visitar gatos de várias partes do mundo, a fim convencê-los daquilo que viu em sonho.
O estilo do episódio casa perfeitamente com a aura de fábula que a história nos quadrinhos tem, e funciona muito bem dentro do mosaico de estilos presentes tanto na HQ quanto na adaptação para as telas.
Um time de peso dubla os gatinhos, os humanos e as criaturas do Sonhar, alguns dos atores tendo feito parte de outras adaptações de obras de Neil Gaiman (que inclusive dubla um pássaro-esqueleto que conversa com A Profeta, a gata) e da amada série Doctor Who:
Gaiman é conhecido pelo seu amor pelos bichanos. No conto “The Price”, também adaptado para os quadrinhos em Criaturas da Noite e presente no volume 1 da Biblioteca Gaiman, obra lançada no Brasil pela editora Intrínseca, um escritor, que se assemelha muito ao próprio autor, recebe a visita de um gato preto muito machucado e decide adotá-lo. Intrigado com o estado do bichano, ele passa a observá-lo à noite nos arredores da casa – e acaba descobrindo algo terrível em relação ao seu valente guardião.
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Esta parte do episódio gerou muitas reações pela internet dos humanos e de seus felinos, que misteriosamente pararam para acompanhar o que A Profeta tinha para contar. Vem aí a revolução felina?
O encarceramento feminino em “Calíope”
“Calíope” é a história adaptada na segunda parte do episódio. Nela acompanhamos Richard Madoc (Arthur Darvill), um escritor com bloqueio criativo, ir ao encontro do famoso autor Erasmus Fry (Derek Jacobi), que já idoso e sem perspectivas de alcançar mais fama, decide se desfazer de Calíope, musa que ele mantinha aprisionada por mais de 60 anos, a submetendo aos mais cruéis níveis de violências físicas, sexuais e psicológicas em troca de inspiração para os seus livros.
Madoc, que a princípio acha a ideia de manter uma mulher aprisionada absurda, a leva para sua casa, e não demora muito para que Calíope volte a ser violentada a fim de suprir as necessidades de um autor mediano, mesmo suplicando para que fosse libertada.
Calíope é uma das nove musas gregas. Filha de Zeus e Mnemósine (a memória), na antiguidade foi cultuada como a musa da poesia épica, e também inspirava a criação das artes e das ciências. Em Sandman, ela foi aprisionada por Erasmus Fry através de um ritual no Monte Hélicon, fazendo com que ele se tornasse seu mestre e somente ele pudesse libertá-la.
Ao ser novamente aprisionada, agora por Richard Madoc, Calíope se reencontra com a infinita espiral de violências causadas por homens que se acham no direito de abusá-la em prol de uma arte de caráter, por vezes, questionável.
Cansada de seu sofrimento, ela evoca as Camenas, as musas romanas do bem, da primavera e das fontes, que aparecem na personificação d’As Três, personagens que ajudam Morpheus a recuperar seus objetos de poder no episódio “Anfitriões imperfeitos”, para que a libertem.
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Elas, no entanto, nada podem fazer, mas sugerem que ela chame por Morpheus, seu ex-marido, para que colocasse um fim em seu claustro. Calíope terá de decidir se enfrentar os fantasmas de seu passado é fácil o bastante para que finalmente a liberdade venha ao seu encontro e seu algoz receba uma punição.
Aviso: Parte 2 do texto contém spoilers
A musa é uma personagem forte, tanto no quadrinho quanto na série, e sintetiza o que muitas mulheres passam ao longo da vida. Poderosa desde o nascimento e tendo consciência do poder que ela e suas irmãs têm, Calíope vai aos poucos perdendo a vontade de viver e o brilho de outrora nas mãos de Erasmus e Richard. Sendo vista e tratada como um objeto, precisa clamar por Morpheus, que fora seu marido e pai de seu filho, Orfeu, esposo de Eurídice que acabou sendo morto na Trácia, para que finalmente fosse libertada, fazendo-a reviver outro período aterrador de sua vida – o luto e a ausência de seu grande amor.
As figuras odiosas de Erasmus e Richard traçam um paralelo com diversas histórias de escritores, sobretudo brancos e de meia-idade, que existem aos montes pelo mundo; homens superestimados pela crítica, com seus textos incrivelmente medianos, mas extremamente exaltados, se apropriam de mulheres – ou de suas histórias e ideias – para enriquecerem e se tornarem famosos.
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Em certo trecho do episódio, após ter abusado sexualmente de Calíope e terminado o livro que a agência aguardava há dois anos, Richard comenta em uma entrevista que algumas de suas autoras favoritas eram Margaret Atwood e Octavia Butler, autoras que questionavam e questionam em suas obras, entre outras coisas, os papéis de gênero na sociedade, e que, além disso, se considerava um autor feminista, o que contradiz o seu próprio tratamento para com Calíope e as demais mulheres de sua vida (vide a estudante de medicina que fornece o bezoar para que ele faça a troca pela musa com Erasmus; a mulher demonstrava claramente gostar dele, mas ele apenas a usou para conseguir o que queria).
A catarse vem quando, finalmente, Morpheus encontra Calíope e, para que Richard a liberte, permite ao escritor ter ideias sem cessar, o que o enlouquece e faz com que deixe a musa ir embora de sua casa.
Neste episódio há um gancho para o próximas histórias de The Sandman, caso ela seja renovada: Orfeu é um personagem importante no arco narrativo de Sonho, e a relação entre pai e filho ecoa por muitos dos próximos arcos, sendo a razão primordial para o clímax ir do último deles, Entes Queridos.
Mesmo sendo mencionado brevemente, o passado de Calíope e de Morpheus acrescenta mais uma camada à história do personagem e em seus demônios interiores, uma vez que ela deixa claro que os dois não prantearam adequadamente a morte de Orfeu, o que gerou um dos traumas profundos de Sonho, tornando-o a figura por vezes distante e inflexível que ele é.
Narrativas que se conectam em The Sandman
“Sonho de mil gatos” e “Calíope” acabam conversando entre si quando pensamos que um dos grandes temas de “Prelúdios e Noturnos” e “Casa de bonecas” é o aprisionamento, seja ele físico ou mental.
Tanto a gata, chamada na história de A Profeta, quanto Calíope sofrem com a prisão literal ou metafórica: de um lado, a personagem de “Sonho de mil gatos” se vê presa no luto pela morte dos seus filhotes e encarcerada em uma casa com o responsável pelo ato criminoso, seu tutor, e, do outro, além do luto pelo filho e pelas dores causadas pelos abusos sofridos, Calíope sofre com a saudade de casa e de suas irmãs, tanto que a aparição das Camenas apresenta uma transição para uma paisagem grega belíssima, possivelmente o antigo lar da musa.
Além disso, ambas as histórias falam sobre vingança e os aspectos aterradores intrínsecos à humanidade: a Profeta incentiva que os gatos sonhem com um mundo em que os seres humanos sejam suas presas e recebam o mesmo tratamento dado aos felinos após ter contato com a visão que Morpheus a mostra, e Morpheus faz com que Richard enlouqueça com aquilo que tanto almeja – as inúmeras ideias para suas histórias.
The Sandman finaliza seu ciclo com dois episódios que não seguem a narrativa principal, mas que somam muito ao que foi construído ao longo da primeira temporada. As duas partes de “Sonho de mil gatos/Calíope” passam uma mensagem de força, resistência e de que é possível transformar muitas situações ao nos permitirmos sonhar.
No arco Terra dos Sonhos há ainda duas histórias, “Sonho de uma noite de verão”, em que Morpheus reencontra Shakespeare com a comitiva da Terra das Fadas para assistirem a uma encenação da famosa peça do dramaturgo, e “Fachada”, em que a Morte visita Urania Blackwell, uma super-heroína em agonia com a própria existência. Esperamos vê-las em breve, seja como mais um episódio bônus surpresa ou no início de uma possível segunda temporada da série.