O Colecionador: misoginia, classe econômica e homens violentos

O Colecionador: misoginia, classe econômica e homens violentos

Existem clássicos que resistem ao tempo. São livros que tomam outras dimensões, oferecem novos caminhos e criam ideias que ultrapassam sua época e se mantém conectados com as novas gerações. No Brasil, temos “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, que escrito no século XIX, ainda é capaz de provocar epifanias contemporâneas ao descrever o interior da índole do brasileiro classe média. “The Handmaid’s Tale“, o romance de Margaret Atwood escrito nos anos 1970 que se assemelha de forma aterrorizante com a realidade de muitas mulheres na administração Trump, se tornou mais e mais profético ao longo dos anos. George Orwell provavelmente não previu que sua obra se tornaria cada vez mais próxima da realidade depois dos anos 80. O Colecionador, de John Fowles relata em forma de literatura casos reais de sequestro e aprisionamento de mulheres. É como ler uma reportagem de jornal sobre um assassinato horroroso em forma de livro.

Lançado em 1963, O Colecionador conta a história de Frederick, um homem solitário que ganha na loteria, planeja e executa o sequestro uma garota que ele acredita que ama. Essa história já foi repetida tanto como adaptação da obra, quanto com relatos de novas vítimas que, felizmente, conseguiram escapar. “O quarto de Jack“, “3036 dias”, entre outros, foram filmes que contavam histórias reais de mulheres que após décadas em confinamento, conseguiram se livrar de seus captores. Esse tipo de narrativa é até mesmo um gatilho para mulheres que já sofreram com violência masculina e relacionamentos abusivos, ainda mais quando focadas no sadismo e na perspectiva do captor.

O Colecionador
“O Colecionador” foi publicado pela editora DarkSide Books.

Um senso distorcido sobre moral e um narcisismo invejoso é o que guia as atitudes de Frederick: hoje em dia ele seria facilmente considerado um “incel” (celibato involuntário). Órfão, criado pelos tios, ele cresceu ressentido por pertencer à classe trabalhadora até que ganha na loteria, ganhando assim tempo e dinheiro para focar em seus desejos. Miranda. Uma estudante que recentemente ganhou uma bolsa de estudos para cursar Artes em Londres. Curiosa, bonita e inteligente, apesar de não ser rica, Miranda se torna o alvo dos desejos inseguros e sádicos de Frederick, quem ela conhece apenas por saber que ele foi o funcionário que ganhou na loteria.

Agora rico e bancando uma viagem para tia e prima visitarem parentes na Austrália, Frederick arquiteta seu plano de sequestro, dando detalhes dos procedimentos de segurança e prevenção a que deve se atentar para manter sua casa um perfeito confinamento. Seu relato é basicamente um manual para raptar uma mulher, tanto que o próprio Frederick diz em tom de modéstia que, “se mais homens tivessem tempo e dinheiro, fariam o mesmo”. Ele tem razão.

Desde 1963, diversos homens, na Inglaterra, EUA e no mundo, com tempo e dinheiro (e não necessariamente os dois) raptaram, confinaram e muitas vezes assassinaram mulheres, crianças, e outros homens. O quanto essas histórias na literatura e na realidade se influenciam é difícil de medir, mas é aterrorizante adentrar a literatura com o pensamento de que esses casos não só existem, como se multiplicam com o passar dos anos em diversas manifestações: tanto nos ataques terroristas dos incels às mulheres que os rejeitam, quanto na quantidade de homens que sequestram e confinam as mulheres que eles julgam que “os pertence”. Em uma cultura que frequentemente reafirma que mulheres são coisas, que seus corpos e sua presença são domínios masculinos, é natural que histórias sobre homens misóginos sejam cultuadas sem que a dimensão da violência real seja levada em conta.

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Em seu plano, Frederick quer possuí-la, mas não como uma pessoa, como um objeto. Colecioná-la, a ponto de destruir seu interior de subjetividade. Ele não gosta da Miranda real, com pensamentos e opiniões, vontades e desejos: não é a pessoa que ele ama, é a imagem. Frederick usa do seu suposto “amor” por Miranda para justificar seus atos. Ele a culpa por desejá-la, e nos mandamentos da misoginia, pratica todos. “Mulheres são responsáveis pelo que os homens fazem ou sentem“, como listou Andrea Dworkin, portanto, em seus próprios pensamentos, Frederick reafirma que Miranda causou seu próprio confinamento ao rejeitá-lo, mesmo sem conhecê-lo.

Miranda, em contrapartida, resiste por meio de seu diário e seu comportamento. Ela jamais vai pertencer à Frederick, ela odeia seu narcisismo, sua vontade de comprá-la, suas perversões. Miranda põe em palavras seu desprezo, que caem em ouvidos surdos. Para sobreviver e tentar escapar, ela tenta de tudo, até se prostituir. Seu diário revela o sujeito que Frederick ignora: ela reflete sobre o medo do cativeiro, sobre as intenções de seu captor e ao mesmo tempo expõe o sadismo a que é submetida. São suas palavras escritas que trazem de volta a consciência que Frederick tenta a todo custo controlar, e suas palavras gritadas que expressam a inexistência de qualquer possibilidade de que ele possa conhecê-la de verdade naquela situação.

É a própria Miranda quem dá as palavras que Frederick não consegue dizer: que o que ele quer dela é o exterior, o controle da imagem, o controle da presença. Jamais um ser humano. Mesmo que o autor não faça esse paralelo na fala dela, Miranda representa o grito seco de mulheres encarceradas, as violentadas e desprovidas, as que perdem o controle de sua existência por conta de ações externas de controle e repressão. Frederick é o patriarcado e luta com suas armas.

Miranda sobrevive por um tempo por meio de seus pensamentos, da leitura, escrita e pintura. A assepsia de Frederick também o deixa oco para a apreciação do sentimento expresso na arte que Miranda admira e aspira concretizar. Sua resistência é apagada da mesma forma como a história de mulheres foi ao longo do séculos: na fogueira silenciosa do sadismo. Mas Frederick é incapaz de se envolver com algo se assemelhe a uma conexão real, ele quer fotos, pornografia. Em um certo momento da história vemos algo muito parecido com as imagens de violência da pornografia que habitam a internet atualmente. O que dizer sobre a geração de homens que cresceu aprendendo a tolerar, normalizar a crueldade contra mulheres com homens como Frederick? 

Boa parte dos pensamentos de liberdade de Miranda também são direcionados a outro homem do lado de fora, GP, que também não consegue acessar seu subjetivo, que a toma por sua imagem e projeta nela seus próprios fascínios. Um homem mais velho que a envolve em seus caprichos e ocupa seus pensamentos no cativeiro. Miranda é tirada de sua vida e reconhece que passou a representar uma borboleta morta, colecionada em um livro antigo, presa a um porão sem luz. Pensar na possibilidade real de se tornar arquivo encerrado, sem pistas, nas últimas páginas de jornal, faz qualquer mulher sentir um aperto agudo no peito. Poucos homens serão Miranda. A maioria deles pode ser Frederick.

O Colecionador
Detalhes da capa de “O Colecionador”.

O Colecionador é uma leitura que busca refletir que esses homens vencem e eles irão continuar colecionando mulheres como objetos. A cultura permite e se regozija com o pensamento do total controle sobre uma mulher, sobre garotas jovens. A obra  dialoga profundamente com sentimentos incutidos em homens misóginos criados pela nossa sociedade e reflete uma realidade que se tornou bem mais frequente depois de ser escrita por Fowley, apesar de não oferecer nenhuma saída provável ou sugerir qualquer proposta de justiça.


O ColecionadorO Colecionador

John Fowles

DarkSide Books

256 páginas

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Feminista Raíz
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