Gauthier: “Escrevo sobre coisas que eu gostaria de ler quando era mais jovem”

Gauthier: “Escrevo sobre coisas que eu gostaria de ler quando era mais jovem”

Anne-Charlotte Gauthier é uma quadrinista francesa formada pela na École des Arts Décoratifs de Strasbourg, trabalha como ilustradora para a imprensa e editoras infantojuvenis, e realiza, paralelamente, diferentes projetos de histórias em quadrinho. No início do ano, Gauthier veio ao Brasil participar da Feira Internacional de Quadrinhos – FIQ, em Belo Horizonte/MG. O evento aconteceu de 30 de maio a 3 de junho de 2018 e recebeu grandes nomes da produção dos quadrinhos nacionais e internacionais. Agora, em setembro, ela veio curtir suas férias no Brasil e retornou a Belo Horizonte para participar de uma conversa sobre a produção de quadrinhos, o mercado francês e brasileiro e sobre sua obra. O evento, aberto ao público, aconteceu no dia 27 de setembro no Sesc Palladium como parte da programação do projeto FIQ Jovem, parceria da Prefeitura de BH e organizações ligadas à cultura, que tem como objetivo desmistificar e estimular a produção das HQs.

Anne-Charlotte Gauthier, ou como assina em seus livros, apenas Gauthier, contou que começou a ler quadrinhos quando era criança, através de produções franco-belgas que tinha em casa. Ela nasceu com dislexia e teve muitas dificuldades para aprender a ler, por isso, quando conheceu os quadrinhos pensou “é isso!”, ela havia encontrado a solução de seus problemas de leitura e se tornou uma leitora ávida. Gostou tanto que decidiu que queria seguir aquela profissão, mas lhe disseram que essa não era uma profissão de verdade e que ela deveria tentar encontrar outra coisa – quem aí se identifica?

Gauthier conta que até tentou fazer outras coisas, mas não gostou de mais nada. Foi sua mãe que, vendo que aquela era uma batalha perdida, decidiu a matricular em um curso de desenho. Um se tornaram vários e ela conta que, em uma das formações, deveria ter aprendido ilustração e produção de quadrinhos, mas quando foi se inscrever as aulas já haviam começado e só pode realizar o exame final para obter o diploma. Então, apesar de ter a certificação, ela só foi aprender a realmente fazer quadrinhos algum tempo depois.

Gauthier
Gauthier no Sesc Palladium, em Belo Horizonte, 27 de setembro. Foto por Bruna Batista.

O primeiro quadrinho de Gauthier é o Peaul de lapin (Pele de coelho, tradução livre), que não foi publicado no Brasil. O quadrinho conta a história de um menino, vítima de violência doméstica, que usa um chapéu de coelho para fugir da sua realidade. Ela disse que passou três semanas trancada no quarto, apenas desenhando e dormindo, cercada de páginas e desenhos. Quando terminou, enviou para um editor que achou tudo horrível. “Mas alguns amigos editores acharam genial e resolveram publicar”, ela conta. Gauthier disse que fez todos os desenhos à lápis, porque era a única forma que ela sabia desenhar e até hoje prefere a técnica analógica, apesar de reconhecer que o desenho digital é mais prático. “Eu nasci nos anos 80 e tinha 23 anos quando ganhei meu primeiro computador, ai já era tarde demais”, brinca a autora, “talvez, daqui uns 10 anos, eu use outra técnica”.

As histórias de Gauthier falam muito sobre a vida cotidiana e os preconceitos e problemas que eu e você poderíamos nos identificar. “Eu escrevo sobre coisas que eu gostaria de ler quando era mais jovem, não ligo se vão ser publicados ou não, eu escrevo sobre o que quero escrever”. Ela define as obras como uma autoficção, misturando histórias suas com histórias de amigos e coisas que ela gostaria de contar.

Sobre a sua segunda obra O Enterro das Minhas Ex, conta a história de Charlotte, uma adolescente que se descobre lésbica e como ela lida com isso e seus primeiros relacionamentos. Disse que algumas ex-namoradas leram a história, mas nenhuma das que foram citadas lá, “não que eu saiba”, complementa. Gauthier conta que assinou a produção do segundo quadrinho sem existir história finalizada, e sempre que o produtor perguntava sobre o final, ela fazia um ar de misteriosa, “eu não sabia como terminar, então fazia ele acreditar que não podia contar”. Ela sequer sabia quantas páginas o quadrinho teria e disse que se fosse preciso fazer esse planejamento ficaria muito entediada. Confessa, por fim, ser a primeira a se espantar que esse seu sistema, no final, tenha dado certo.

Trecho de “O Enterro das Minhas Ex”, 2016, Editora Nemo
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O Enterro das Minhas Ex foi publicado no Brasil em 2015, e ela foi responsável por mediar contato entre as editoras francesa e brasileira. Conta que recebeu um e-mail da editora brasileira, dizendo que tinham interesse em publicar seu quadrinho no Brasil, mas que entraram em contato com a editora francesa e não tiveram resposta. Quando conversou com seus editores, eles disseram ser comum receber e-mails interessados em publicação no exterior, mas que o projeto quase sempre acaba morrendo, por isso nem respondem mais. “Mas eu quero ser publicada no Brasil!” ela teimou, e foi assim que a publicação se tornou possível.

Entretanto, não recebeu nada por essa publicação, foi tudo para os editores. Ela diz que ficou bastante irritada e enviou alguns e-mails raivosos por isso. Inclusive, quando foi convidada pra a FIQ, os produtores disseram que ela não deveria reclamar por não ter sido paga, que estava sendo convidada ir ao Brasil e isso era ótimo, “mas o dono do meu apartamento não quer saber disso, eu ainda preciso pagar meu aluguel”. Ainda sobre a participação da FIQ, Gauthier contou que, quando é convidada para Festivais, eles se oferecem para pagar apenas a passagem de metrô e, por morar quase na divisa com a Alemanha, bem afastada de Paris, onde a maioria dos eventos acontecem, quando os organizadores descobrem que vão ter mais custos, os e-mails param de ser respondidos. Então, quando recebeu o convite do Festival brasileiro, disse ter pensado ser mais um desses casos, mas ficou muito feliz quando viu que era uma proposta para vir ao Brasil.

Gauthier diz ser uma pessoa tímida, mas que não sofre com a exposição, principalmente sobre as histórias. São poucas as pessoas que reconhecem o que é biográfico, no máximo alguns familiares, então ela não se incomoda em contar as histórias. No Brasil, ela conta, é o lugar onde mais pessoas a reconhecem pelo seu trabalho. No caso do seu terceiro quadrinho, Justin, disse ter sido a primeira vez que recebeu e-mails de pessoas dizendo que a obra havia salvado a vida delas, e que isso foi muito forte.

Justin conta a história de uma criança que não se sente confortável com o gênero que as pessoas que ela conhece, insistem em lhe atribuir. É uma história de descoberta, e assim como O Enterro das Minhas Ex, trata a temática LGBT com muita sutileza. Gauthier considera muito importante o aumento da produção voltada para esse nicho, tanto nos quadrinhos quanto na cultura pop, e considera que no Brasil essa produção é muito maior que na França. Quando perguntada sobre a relação de marketing nesse aumento, o famigerado “pink money”, disse achar estranho, por exemplo, a insistência em dividir obras que abordem essas questões em prateleiras “LGBT” ou “MULHERES”, como se isso fosse um gênero específico.

Gauthier
Trecho de “Justin”, 2018, Editora Nemo.

A respeito das críticas, ela diz ter lido alguém comentar sobre seu quadrinho algo como, “as páginas se passavam”, como se essa fosse a única qualidade. Outra crítica que já recebeu é a de que seu traço é “infantil demais”, e confessou que por um tempo não gostava da forma como desenhava e que aos poucos aceitou que aquele era o seu traço, “fazer o que, é assim que eu desenho”. Carol Rossetti, ilustradora brasileira, que também esteve no evento, disse que esses comentários sobre o traço infantil são muito mais comuns para os desenhos de mulheres e é uma expressão clara de machismo, como se o traço arredondado ou mais delicado fosse de alguma forma inferior, sempre “fofo”.

Por fim, Gauthier falou sobre suas produções futuras e disse estar pensando em produzir algo sobre as Testemunhas de Jeová, em parceria com um amigo. Os dois são filhos de pais praticantes da religião e ela acredita que esse é um tema que mexe com a paixão das pessoas, então, talvez seja algo interessante de ser trabalhado.

Os quadrinhos de Gauthier publicados no Brasil, O Enterro das Minhas Ex e Justin, foram lançados pela Editora Nemo e podem ser adquiridos aqui e aqui.

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Formada em Direito e estudando Jornalismo, já esteve muito perdida na vida, agora talvez esteja um pouco menos. Metade Frankie e metade Grace, segue escrevendo, tentando cumprir as metas de leitura e ouvindo podcast. Acredita fortemente que um dia vai tomar rumo nessa vida.
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