Entre orquestras e sintetizadores, Wendy Carlos é a matriarca da música eletrônica

Entre orquestras e sintetizadores, Wendy Carlos é a matriarca da música eletrônica

Cultuada por cinéfilos por assinar trilhas de filmes clássicos de Stanley Kubrick e famosa por seu álbum “Switched-On Bach” – uma rendição ao músico erudito entre o barroco o sintetizador, Wendy Carlos é a matriarca da música eletrônica. Antes mesmo que as técnicas fossem dominadas, ela apresentou ao mundo novas possibilidades e roupagens não somente sonoras, mas para a vida.

O começo de Wendy Carlos

Nascida em Rhode Island em 1939, Wendy começa aulas de piano aos seis anos de idade por influência da mãe, que também dominava as teclas. Para além da influência direta, quase toda a família que a cercava dominava algum instrumento. Aos dez anos sai sua primeira composição, “A Trio for Clarinet, Accordion, and Piano”.

Em 1953, com catorze anos, Wendy ganha uma bolsa de estudos ao participar de um concurso de ciências para estudantes do ensino médio, quando apresenta um computador construído em casa. Ela, então, de 1958 a 1962, frequenta a Brown University, graduando-se duplamente em física e música. Durante esse período, ela leciona aulas de música eletrônica.

Cultuada por cinéfilos por assinar trilhas de filmes clássicos de Stanley Kubrick e famosa por seu álbum “Switched-On Bach”, Wendy Carlos é pioneira da música eletrônica.
Wendy Carlos, pioneira da música eletrônica (Foto: reprodução)

Em seguida, Wendy vai para a Columbia University em busca de um diploma de mestre em composição musical. Lá, ela assiste Leonard Bernstein apresentar uma sessão de música eletrônica no Philharmonic Hall. Além disso, estuda ao lado de Vladimir Ussachecsky e Otto Luening – outros dois grandes nomes pioneiros da música eletrônica em 1965. Os quatro participam do, então, Columbia-Princeton Eletronic Music Center – o primeiro centro de pesquisa em música eletrônica e computacional dos Estados Unidos.

É durante sua passagem por Columbia que Wendy é apresentada a Robert Moog no show anual da Audio Engineering Society. Aqui, parceria que a tornaria famosa tem início. Com troca de conselhos e sugestões de Wendy, Robert apresenta o sintetizador Moog, um novo teclado sintetizador eletrônico sensível ao toque e dificílimo de dominar a princípio.

A fama de “Switched-On Bach”

Por volta de 1967, Wendy conhece a ex-cantora Rachel Elkind, e as duas começam a dividir um pequeno estúdio em casa num prédio de Manhattan. É a Elkind que Carlos primeiro apresenta o protótipo do que se tornaria seu disco de sucesso – uma composição feita na universidade a partir da “Two-Part Invention in F Major” de Johann Sebastian Bach. Com o incentivo, Wendy passa o ano de 1967 trabalhando em planos de novas rendições às composições de Bach. Inclusive, ela consegue um contrato com a gravadora Columbia Masterworks, com liberdade artística para Carlos e Elkind.

As gravações se tornaram, então, um processo longo de cansaço e paciência. A causa dessa situação é o sintetizador, que só poderia ser tocado uma nota por vez a cada composição, e é apenas no final de 1968 que o disco é lançado. “Switched-On Bach” chega inesperadamente como um grande sucesso comercial e crítico – como uma rendição à música erudita mesclando notas barrocas à nuances eletrônicas se tornou tão popular?

Capa de Switched-On Bach, de Wendy Carlos
Capa de “Switched-On Bach”. (Foto: divulgação)

A entrada nas trilhas sonoras clássicas

Após o sucesso de seu primeiro disco e da boa recepção do seguinte, “The Well-Tempered Synthesizer”, Wendy Carlos alavancou outros convites e parcerias de peso para sua carreira. O primeiro vem do diretor John Sturges, para compor a trilha sonora de “Marooned” (1969). Contudo, no meio da produção, quando a direção muda sua opinião sobre uma trilha sonora específica para o filme, Carlos decide aceitar o segundo convite que lhe havia chegado: pensar a trilha sonora de “Laranja Mecânica” (1971), do aclamado Stanley Kubrick.

Kubrick acaba por não utilizar a íntegra da produção de Carlos para o filme. “Laranja Mecânica” conta, então, com dois lançamentos de trilhas sonoras: “Stanley Kubrick’s Clockwork Orange”, com os cortes finais apresentados no filme, e “Walter Carlos’ Clockwork Orange”, com os cortes não incluídos na produção. Ambas as produções com a marca de Wendy, a mistura impensável e impecável de notas clássicas com sintetizadores e nuances eletrônicas.

Walter Carlos' Clockwork Orange
Capa da obra “Walter Carlos’ Clockwork Orange”. (Foto: divulgação)

Ainda na década de 1970, Wendy Carlos permanece em sua mesma linha de produção, que consiste em revisitar clássicos da música trazendo novas roupagens. Além disso, ela também decide gastar mais de sua energia em composições próprias e retrabalhar antigas produções que havia abandonado.

Pelo meio da década, em 1975, é lançado “By Request”, uma mescla de toda a essência do que Carlos trazia: novas rendições à clássicos como Bach, Wagner e Tchaikovski, releituras, por exemplo, de “Eleanor Rigby” dos Beatles, e pelo menos duas composições próprias da artista. Todas as faixas trabalhadas com o mesmo Moog que ajudara a criar e se tornou seu principal instrumento.

Novas produções e chegada à Disney

Wendy Carlos é a matriarca da música eletrônica
Wendy Carlos. (Foto: reprodução)

Wendy chegou a ser chamada para mais uma produção de Kubrick, o aclamado “O Iluminado” (1980), mas o diretor preferiu incluir músicas já existentes de artistas da avant-garde. Ainda assim, a versão final da trilha tem duas músicas creditadas à Wendy e Elkind. O trabalho também marca o encerramento das colaborações entre a dupla – após a breve produção para o filme, Rachel Elkind muda-se para a França com o marido.

Apesar das reviravoltas, a década de oitenta mantém Carlos próxima às produções de trilhas sonoras cada vez mais complexas. Agora, mantendo uma relação de parceria e moradia com Annemarie Franklin, Wendy é convidada pela Walt Disney Company para pensar na trilha sonora que se tornaria mais um clássico da ficção científica: “Tron” (1982).

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A produção trouxe novas possibilidades para o trabalho de Wendy, que havia decidido sair da linha estritamente eletrônica. A trilha sonora de “Tron”, lançada em 1982, incorporou os sintetizadores de Wendy junto à Orquestra Filarmônica de Londres, a UCLA Chorus e o Royal Albert Hall Organ.

Três álbuns da artista são lançados depois disso: “Digital Moonscapes”, “Beauty in the Beast” e “Secrets of Synthesis”. Na mesma década, ainda, Carlos participa da produção da releitura da história musical infantil “Pedro e o Lobo”, originalmente escrita por Sergei Prokofiev: a versão final, contando também com uma paródia de “O Carnaval dos Animais”, lançada sob o nome “Peter and the Wolf/Carnival of the Animals – Part II” chegou a ser nomeada para o Grammy de Melhor Álbum Infantil de 1989.

Década de 90 e presente

Wendy Carlos nos anos 90
Wendy Carlos nos anos 90. (Foto: reprodução)

Com os 25 anos do lançamento de “Switched-On Bach”, Wendy trabalha no início da década de 90 na versão “Switched-On Bach 2000”. Este é o primeiro em que Wendy trabalha com mixagem em Dolby Surround e com diversas estações de trabalho digitais para produção de áudio, além de utilizar 13 diferentes sintetizadores no processo.

É no final desta década também que recebemos o disco mais recente de Wendy Carlos, em 1998, com o título de “Tales from Heaven and Hell”. No mesmo ano, também vem sua última contribuição numa trilha sonora original, para o filme britânico “Brand New World”, dirigido por Roberta Hanley.

A identidade de Wendy Carlos

Para além de sua identidade e legado como a matriarca da música eletrônica e das produções com sintetizadores incorporados na indústria musical em si, Wendy Carlos traz um significado ainda maior em sua trajetória. A sua consciência de que havia algo errado com o seu gênero que lhe fora assinalado é apontada por ela desde muito cedo, por volta dos cinco ou seis anos, e foi se tornando mais sólido e palpável com o tempo. Em uma entrevista, Wendy recorda uma vez em que foi a um encontro com uma garota e, na verdade, sentia que gostaria de ser como ela.

Foi apenas com a mudança para Nova York, na década de 1960, já iniciando sua carreira, que teve contato com o sexólogo Harry Benjamin. Com ele, aprendeu sobre transgeneridade e os processos que sentia consigo mesma. Somente após o lançamento e sucesso de “Switched-On Bach”, em 1968, é que ela começa o tratamento hormonal. É nesta época também que as questões com sua aparência e identidade se intensificam, e Wendy se afasta de apresentações ao vivo pela infelicidade provocada.

Wendy Carlos
Wendy Carlos em 1999. (Foto: reprodução)

Em 1972, Wendy passa pela cirurgia de redesignação de sexo. Contudo, acaba lançando, por questões de marketing, mais dois discos ainda sob seu nome morte – Walter Carlos. Publicamente, Wendy só se abre sobre sua nova identidade para o público em uma entrevista, publicada em 1979, para a Playboy Magazine. Nela, fala sobre como a ansiedade, aceitação e o medo de sofrer intolerância, a fizeram “perder anos da vida”, como ela mesma diz.

Quando fala sobre isso, Wendy Carlos deixa nítida como essa passagem de sua vida não é a parte mais importante da sua identidade ou legado. Hoje, com 80 anos, Wendy é irrevogavelmente uma pioneira, a matriarca de um tipo de música que nos parece tão comum e ainda tão intrigante atualmente – mas que não existiria se não tivesse passado por suas mãos.


Edição por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.

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Jornalista, fotógrafa, feminista e lésbica cearense. Ariana torta e viciada em qualquer série, filme ou livro que tenha mulheres amando mulheres, tem voltado sua atuação à defesa dos direitos humanos e à luta por visibilidade e representatividade lésbica. Não dispensa uma pizza ou uma balinha de gengibre das que vendem no ônibus. Nas horas vagas se atreve a escrever ficção científica.
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