Ainda Temos a Imensidão da Noite: a busca de uma musicista por seu lugar no mundo

Ainda Temos a Imensidão da Noite: a busca de uma musicista por seu lugar no mundo

Em “Ainda Temos a Imensidão da Noite“, Karen (Ayla Gresta) é uma jovem brasiliense que sonha em viver de música com sua banda, Animal Interior. Porém, a realidade é dura, e Brasília não vive mais aquele cenário artístico dos anos 80, onde muitas bandas punk prosperaram.

Nesta trama típica de filmes sobre músicos, cada membro da banda, retratada no longa de Gustavo Galvão, tem que se sustentar de outras maneiras. Um é funcionário público, algo comum na capital, outro recebeu indicação para trabalhar num mercado, e a própria Karen é designer freelancer, algo que claramente a desagrada. 

Quando Artur, par romântico e guitarrista da banda, resolve ir pra Berlim atrás de um amigo alemão, Karen começa a busca de um sentido em tudo ao seu redor, nessa cidade que só frustra seus planos. O que vemos é ela perdida, atirando para todos os lados, e indo para Berlim num ímpeto, atrás do namorado. Ela quer ter experiências novas e viver de forma diferente, só não sabe como.

Karen (Ayla Gresta)
Karen (Ayla Gresta) em “Ainda Temos a Imensidão da Noite”. Imagem: reprodução

Velhos retratos de jovens rebeldes

A busca de Karen é por um lugar em que seus sonhos possam prosperar, porém, ao chegar em Berlim e conhecer outros músicos, os encontra reclamando das mesmas coisas que ela achava frustrante no Brasil. Pelo fato do filme nunca se aprofundar realmente nas angústias existenciais de Karen, entretanto, sua revolta em não poder viver de música parece aquela velha rebeldia e ingenuidade adolescentes, já retratadas inúmeras vezes no cinema.

Ainda Temos a Imensidão da Noite - crítica
Cena de “Ainda Temos a Imensidão da Noite”. Imagem: reprodução

Essa sensação é reforçada pela forma caricatural com que os moradores de Brasília são retratados: pessoas “caretas” que reclamam a todo momento do barulho da banda. Parece um pouco pueril colocar na boca de vários personagens a fala de que a lei do silêncio na cidade é muito severa e as pessoas são pouco tolerantes com barulho na cidade.

Apesar de Brasília ser uma das cidades mais silenciosas do Brasil, principalmente em comparação com o caos de metrópoles desordenadas como São Paulo ou Rio de Janeiro, o projeto do Plano Piloto previu construção de zonas de comércio local para cada quadra residencial, onde acabaram se instalando bares e pubs, incomodando às vezes os residentes dos prédios próximos. Enquanto isso, o centro permanece abandonado à noite, salvo alguns poucos espaços que tentam revitalizá-lo.

Ainda Temos a Imensidão da Noite - crítica
Cena de “Ainda Temos a Imensidão da Noite”. Imagem: reprodução

Em vez de aludir para esse erro de projeto urbano (e na cidade existem até duas regiões muito pequenas chamadas “Setor de Diversões Norte” e “Setor de Diversões Sul”, mal utilizadas), o filme prefere retratar os artistas como os expoentes máximos da liberdade e da cultura, enquanto as pessoas que reclamam são vistas como ranzinzas e conservadoras.

Há uma hora em que a banda toca em uma área residencial, e a montagem intercala com planos dos prédios vizinhos, para mostrar que devem estar recebendo o som. O filme coloca isso como símbolo dos artistas desafiando a caretice da cidade, se rebelando contra as normas vigentes. Apesar de ser bem comum na arte a imagem de jovens colocando música no último volume como forma de transgressão, hoje esse parece ser um exemplo antiquado para representar essa rebeldia.

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Enquanto as cidades mundo afora estão cada vez mais barulhentas e afetando a saúde física e mental de seus habitantes das piores formas, igualar barulho a apreço pela liberdade artística parece algo um tanto ultrapassado e ingênuo. Muito embora alguns almofadinhas do Plano Piloto até mereçam mesmo ser incomodados de vez em quando, será que forçar quem não quer a ouvir seu som adiantará de alguma coisa para construir público para a banda? 

crítica
Cena de “Ainda Temos a Imensidão da Noite”. Imagem: reprodução

Tal tema poderia abrir espaço para muitas outras reflexões. Por exemplo, a do individualismo, algo agravado na cidade pela sua arquitetura voltada para automóveis, grandes avenidas e espaços vazios, pouco adensamento populacional forçando os habitantes a se deslocarem muito para chegarem a qualquer lugar, e a falta de espaços de convívio público adequados.

A devida relação de tudo isso poderia ser explorada com a intolerância daí gerada, a qualquer barulho que seja, já que é algo a denunciar a existência do outro. Nesse caso, a cena dos jovens músicos forçando o som da sua banda a adentrar as residências do Plano Piloto ganharia um forte sentido, talvez o pretendido pelo filme. É uma pena que a falta de desenvolvimento nos incômodos de Karen com a cidade façam a trama toda carecer de maior profundidade.

As qualidades de “Ainda Temos a Imensidão da Noite”

O que o filme tem de melhor é mostrar algumas particularidades da cidade, como o fato de Karen morar no Gama, um bairro periférico muito distante do Plano Piloto, parte central e de maior renda. Também estão lá as caronas até a Rodoviária central, onde Karen lancha caldo de cana e pastel.

Não fica claro se pessoas do resto do Brasil irão captar esses detalhes da cidade, mas para quem já morou lá (como essa que escreve a crítica) o filme parece fazer um retrato bastante autêntico de Brasília. Ou pelo menos como ela é percebida por uma parte da classe artística da cidade. A seca típica da região e cada vez pior, agravada pela crise climática global, também dá as caras, representada nos narizes que sangram.

Outro fato positivo é a naturalidade de como são mostradas as experimentações sexuais dos personagens, sem tabus e sem objetificação. E também sem ligar isso a um submundo perigoso, como é comum em filmes sobre artistas. As poucas cenas de sexo funcionam de forma saudável e natural.

Ainda Temos a Imensidão da Noite - filme
Cena de “Ainda Temos a Imensidão da Noite”. Imagem: reprodução

Nos aspectos técnicos, é notável o cuidado que o filme tem com a música e a trilha sonora. Com músicos reais e uma banda criada especialmente para o filme, há várias cenas dos ensaios e shows da Animal Interior, dando ênfase ao envolvimento dos personagens com o ofício, mesmo com as dificuldades em encontrar público que os ouça.

No quesito atuação, apesar de uma fala ou outra sair com um pouco de artificialidade, as performances no geral estão muito boas. Bidô Galvão está sempre excelente, aqui no papel da mãe de Karen, e Ayla, em especial, consegue segurar bem o filme no papel da protagonista.

Ainda Temos a Imensidão da Noite” é um filme interessante sobre o velho porém vivo sonho de viver como artista, e uma ode à Brasília, essa cidade tão esquisita e artificial, porém tão cativante no coração de alguns que já passaram por lá. O filme estreia nos cinemas dia 5 de dezembro


Edição e revisão realizada por Isabelle Simões.

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Cineasta, musicista e apaixonada por astronomia. Formada em Audiovisual, faz de tudo um pouco no cinema, mas sua paixão é direção de atores.
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