A representatividade feminina em Mr. Robot: mulheres inteligentes e destemidas

A representatividade feminina em Mr. Robot: mulheres inteligentes e destemidas

Mr. Robot” é uma série criada por Sam Esmail que explora a história do jovem Elliot Alderson (Rami Malek), um gênio hacker com planos para mudar a sociedade completamente. Durante a sua jornada para derrubar o maior conglomerado da história da civilização, a E Corp, a série aprofunda questões da vida pessoal de Elliot.

Através de um caminho de críticas sociais, perdas e descobertas, o público acompanha a jornada de Elliot para entender sua relação com Mr. Robot (Christian Slater), um hacker misterioso que futuramente revelará ser uma das personalidades do protagonista que se manifesta na aparência de seu falecido pai. Debatendo temas como capitalismo, exploração, alienação e abuso sexual, a série constrói um universo que prende a espectadora a cada episódio.

Além das críticas sociais, a fotografia, a trilha sonora e as inúmeras referências à filmes, séries e livros acabam construindo um prato cheio para amantes de séries de televisão. Dessa forma, a espectadora pode desfrutar tanto da composição primorosa de elementos quanto do roteiro igualmente estimulante e desconfortável, que instiga debates certeiros e necessários.

AVISO: o texto a seguir contém spoilers

Rami Malek em "Mr. Robot"
Rami Malek em “Mr. Robot” (Imagem: reprodução)

A representatividade feminina em “Mr. Robot”

Uma das primeiras personagens femininas a ser apresentada na série é Angela Moss (Portia Doubleday). Ela é uma empregada da empresa de cibersegurança All Safe, amiga de infância de Elliot e de sua irmã Darlene (Carly Chaikin) e interesse amoroso de longa data do rapaz.

Angela é uma mulher gentil, inteligente, profissional e que busca por reconhecimento. Ela perdeu sua mãe nas mesmas circunstâncias em que o pai de Elliot faleceu, por conta de um vazamento de resíduos tóxicos em Washington Township. A E Corp consegue escapar das consequências judiciais do acontecimento na década de 90. Entretanto, após Angela decidir retomar o processo anos depois, a empresa é novamente confrontada com sua responsabilidade na tragédia que matou 26 funcionários.

Angela perde o emprego na All Safe em troca de um depoimento que pode ajudar as famílias das vítimas a vencerem o processo. Em seguida ela receberá uma proposta de emprego na E Corp, onde será mentorada por Phillip Price (Michael Cristofer) ー homem que revelará a Angela que é seu pai biológico minutos antes de ela ser assassinada.

A representatividade feminina
Portia Doubleday em Mr. Robot (Imagem: USA Network)

Desde o momento em que passa a trabalhar na E Corp, Angela enfrenta um dilema entre a vida luxuosa que a empresa lhe oferece, o sentimento de valorização e reconhecimento e a sensação de estar abandonando a luta pelo que é correto. Esse emprego posteriormente se revelará como uma tentativa de Price de fazer com que Angela desistisse das exigências que assegurariam a segurança dos trabalhadores.

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Ademais, o dilema de Angela pode ser identificado na vida de inúmeras pessoas na atualidade. Embora ela possuísse um grande senso de justiça, por um breve momento ela dá as costas à revolução e abraça o mundo do sucesso corporativo. Angela é constantemente assediada e desrespeitada de formas sexistas por conta de seu novo emprego. Ela é inteligente e competente, e ainda assim é constantemente desprezada e reduzida.

A personagem lentamente se transforma de uma menina doce e gentil para uma mulher capaz de assumir riscos para fazer o que acha certo. Ainda assim, a dor de ter perdido a mãe a leva a confiar na pessoa errada, o que afeta gravemente sua saúde mental ao lidar com a culpa por um atentado que matou mais de 4.000 pessoas.

Apesar de seu potencial e de sua grande influência na maioria dos acontecimentos da série, Angela tem um final trágico e solitário, sendo executada pelo Dark Army (exército hacker liderado pela mulher em quem Angela cometeu o erro de confiar). Por outro lado, mesmo no momento de sua morte, a personagem se despede do público mostrando coragem e encarando seu fim de forma resignada e firme, sem voltar atrás naquilo que acreditava apenas para se proteger.

Portia Doubleday em "Mr. Robot"
Portia Doubleday em “Mr. Robot”. (Imagem: reprodução)

Além de Angela, outra personagem que enfrenta um dilema em “Mr. Robot” é Dominique DiPierro (Grace Gummer), uma agente do FBI que é coagida a atuar como agente dupla para o Dark Army no intuito de proteger sua família. Ela é uma profissional talentosa, inteligente e corajosa, que muitas vezes durante a trama foi a única a perceber detalhes essenciais. Essa percepção foi o que acabou salvando sua família na quarta e última temporada da série.

Dominique é uma mulher lésbica e acaba tendo um envolvimento romântico com Darlene. Apesar de não ficarem juntas no final da série, os sentimentos que nutriam uma pela outra resultaram em um aprendizado mútuo. Foi através de Dominique que Darlene passou a confiar mais em si mesma e entendeu que conseguia se cuidar sozinha. E foi através de Darlene que Dominique entendeu que precisava descansar e dedicar tempo para cuidar de si mesma.

Além disso, Darlene também tem um papel importante no desenvolvimento de Dominique ao quebrar o dispositivo de assistência virtual Alexa, com quem a mulher continha um relacionamento quase emocional. Essa ‘’amizade’’ com a máquina era uma das demonstrações da solidão de Dominique, que tentava constantemente ignorar o exílio social em que vivia apegando-se a relações intermediadas apenas por tecnologias.

Grace Gummer em "Mr. Robot"
Grace Gummer em “Mr. Robot”. (Imagem: reprodução)

Embora na primeira temporada da série o antagonista central da trama seja a E Corp (que funciona como uma concretização do ideal capitalista), o enredo lentamente redireciona a atenção do público ao perigo do Dark Army. O grupo secreto de hackers terroristas realiza atentados e genocídios sem pudor, apenas para que sua líder, Whiterose (BD Wong), atinja seus objetivos.

Whiterose é uma personagem com um passado trágico. Seu grande amor cometeu suicídio por ser obrigado a casar-se com uma mulher que ele não amava. Tendo ascendido como líder muito cedo, ela escondeu o fato de ser transgênero, vivendo sob a identidade do ministro da segurança da China, Zhi Zang.

Além disso, Whiterose é a fundadora do Grupo Deus, uma comunidade composta pelos líderes mais ricos e influentes do mundo, dos quais a maioria da população mal sabe da existência. Através desse grupo, ela e outros indivíduos governam o mundo. Assim, os grandes eventos da sociedade moderna são orquestrados conforme a vontade de Whiterose. Portanto, todas as suas ações são em prol do sucesso de seus objetivos.

Embora referir-se a Whiterose como uma vilã seja uma afirmação um tanto maniqueísta, que não combina com o teor de “Mr. Robot”, é inegável que seu império se torna a ameaça a ser combatida. Sob suas ordens, seu exército executará pessoas sem hesitar, e cometerá suicídio se não conseguir fugir em tempo hábil.

Todavia, a grande motivação de Whiterose é centrada em uma máquina misteriosa, que promete mudar o mundo todo, transformando-o em um lugar melhor. Esse projeto é tão importante para a personagem que ela está disposta a morrer por ele, colocando fim a sua própria vida em nome da execução da máquina. Embora seu real propósito não seja revelado, pois Elliot impede a máquina de funcionar (por conta da grande chance de causar um colapso na cidade onde estava localizada) ela cumpre seu intuito narrativo, estabelecendo um paralelo entre o mundo ideal da mente de Elliot e o sonho de Whiterose.

BD Wong em "Mr. Robot"
BD Wong em “Mr. Robot”. (Imagem: reprodução)

Entretanto, Whiterose não é a única mulher que faz de tudo para atingir seus objetivos. Joanna Wellick (Stephanie Corneliussen) é uma estrategista cujo único intuito é o sucesso de sua família. Após o desaparecimento de seu esposo Tyrell Wellick (Martin Wallström), ela se encontra a beira da falência com seu filho recém nascido. A espectadora é então guiada pela rotina sombria de Joanna, que envolve ordens de homicídio executadas por seu empregado até sua morte trágica pelas mãos de um amante que não aceita o fim da relação.

Um dos pontos centrais de “Mr. Robot” é o controle como uma ilusão, e a vida de Joanna é uma concretização dessa mensagem. Logo após o nascimento de seu filho, a personagem revela com pesar que aos 15 anos ela também teve um bebê que entregou para a adoção. Após todos os esforços para conquistar controle e poder, Joanna é assassinada antes que seu marido desaparecido retorne, e seu bebê é enviado para um lar adotivo.

Stephanie Corneliussen em "Mr. Robot"
Stephanie Corneliussen em “Mr. Robot”. (Imagem: reprodução)

Ademais, a sociedade hacker idealizada por Elliot conta com duas mulheres, sua irmã Darlene e a jovem Shama Biswas (Sunita Mani), conhecida pelo codinome hacker Trenton. Ela é uma jovem iraniana quieta que se juntou a Fsociety justamente pensando em sua família e na carga horária de trabalho de seu pai. É ela quem descobre uma forma de reverter o ataque contra a E Corp, que desencadeia todo o caos com o qual os personagens lidam a partir da segunda temporada.

Shama acaba sendo assassinada pelo Dark Army junto ao seu amigo e membro da Fsociety Mobley (Azhar Khan). A cena é composta para parecer um suicídio, com elementos que sugerem um ataque terrorista envolvendo aviões e a bandeira do Irã ao fundo.

Sunita Mani em "Mr. Robot"
Sunita Mani em “Mr. Robot”. (Imagem: reprodução)

Krista Gordon (Gloria Reuben) é a terapeuta de Elliot. É ela quem ajuda ele a descobrir a verdade sobre sua infância e sobre a memória que ele havia bloqueado dos eventos traumáticos com seu pai que o abusou. Ela está passando por uma situação difícil após um divórcio, e se envolve com um homem casado, que mente para ela a respeito de tudo, desde seu estado civil até seu próprio nome.

Ainda sob a personalidade de hacker vigilante, Elliot chantageia o homem para que ele pare de ver Krista. Ele confia plenamente nela, e por isso tenta protegê-la. Esse é um ponto importante da série, pois a terapia é verdadeiramente importante para Elliot, e no fim é essencial para que ele entenda o que estava acontecendo com sua vida. Dessa maneira, a confiança que ele deposita em sua terapeuta se mostra um aspecto-chave da história.

Entretanto, nada impede Krista de se sentir abalada, de tentar fugir do mundo de Elliot e viver uma vida segura. Seus medos e incertezas não são ignorados. Bem como sua força para agir e assassinar o traficante Fernando Vera (Elliot Villar) que havia feito ela e Elliot como reféns.

Gloria Reuben em "Mr. Robot"
Gloria Reuben em “Mr. Robot”. (Imagem: USA Network)

‘’Brincar de Deus’’ e a ilusão do controle

Quando Elliot apresenta ao público (com quem ele conversa frequentemente, de certa forma, quebrando a quarta parede ao conversar com um ‘’amigo imaginário’’ que o assiste) sua atividade como hacker, ele fala sobre o 1% do 1% dos indivíduos mais poderosos do mundo, aqueles que ‘’brincam de deus sem permissão’’. São essas pessoas que a Fsociety acaba expondo ao hackear e derrubar o Grupo Deus. A ilusão de controle deles é destruída, mudando o mundo e gerando o maior evento de redistribuição de renda da história.

Entretanto, esse feito está confinado à série. Os membros do Grupo Deus da vida real permanecem intocados, exercendo seu poder através da exploração e opressão. Em “Mr. Robot”, o maior conglomerado da história da civilização é derrubado, gerando um colapso na sociedade. Portanto, a situação de crise nos bancos afeta a vida financeira de todas as pessoas e empresas. Assim, uma verdadeira distopia é gerada com o ataque à E Corp.

Christian Slater, Rami Malek e Martin Wallström na série de Sam Esmail
Christian Slater, Rami Malek e Martin Wallström em “Mr. Robot”. (Imagem: reprodução)

Essa situação caótica pode e deve ser pensada nos parâmetros da realidade. “Mr. Robot” alerta para a dependência da sociedade com relação às grandes corporações, para o fato de que os indivíduos constantemente cedem sua liberdade em troca de segurança. Dessa maneira, quando vidas inteiras são vendidas para diferentes instituições na forma de informação, o controle é uma ilusão.

“Mr. Robot” deixa o público nu, confrontando a realidade de sua vulnerabilidade na era da informação. Se encarada por esse prisma, a série é muito mais do que uma crítica, ela é um retrato fidedigno do terror tecnológico no mundo contemporâneo. As relações humanas aparecem como elo de salvação do caráter humano em meio à sociedade deturpada pela busca frenética por poder.

O fim de Elliot consagra a mensagem da ilusão do controle quando os espectadores descobrem que ele era apenas mais uma personalidade do verdadeiro Elliot Alderson, tão real quanto o próprio Mr. Robot. O personagem que o público acompanhou desde o primeiro episódio é então confrontado com a realidade de sua própria existência, e precisa enfim abandonar o controle que nunca foi seu, destinando-se a viver apenas como uma parte do todo que é o Elliot real.

Darlene: o elo de ligação com a realidade

As personalidades de Elliot passam a surgir no momento de sua infância em que ele se joga da janela de seu quarto, tentando fugir do pai que o abusava sexualmente. Portanto, Mr. Robot surge como o pai que Elliot precisava, um homem amoroso que está pronto para protegê-lo. Dessa maneira, todas as personalidades do protagonista são advindas do sofrimento de sua infância, que é potencializado com as injustiças da vida adulta.

Carly Chaikin em "Mr. Robot"
Carly Chaikin em “Mr. Robot”. (Imagem: reprodução)

Assim, sua irmã Darlene é a única parte de sua família que vale a pena lembrar. A mente de Elliot a entende como seu único elo de ligação com a realidade. A personagem não está presente no mundo irreal que ele mesmo criou. Ela é parte da família que realmente o ama e que está sempre pronta para protegê-lo. Alguém que Elliot não precisa que mude para que a vida se torne tolerável.

Entretanto, o papel essencial de Darlene na vida de Elliot não é tudo sobre ela. A sua existência não se resume ao seu irmão. Ao contrário, tem personalidade, problemas, desejos e uma vida completamente independente de Elliot.

Carly Chaikin e Rami Malek
Carly Chaikin e Rami Malek em “Mr. Robot”. (Imagem: reprodução)

Quando seu irmão está preso, é Darlene quem continua não apenas executando como também idealizando os planos para a Fsociety. A personagem aparece constantemente por trás de empreitadas importantes para o desenvolvimento da série. Muitas vezes é ela quem salva Elliot de situações difíceis e assegura a continuidade dos projetos.

Darlene também é uma personagem que se relaciona com as mulheres ao seu redor, se preocupa e faz amizade com elas. É ela quem mais sofre o impacto da morte de Angela, sua melhor amiga e com quem tinha uma relação de carinho e respeito dificilmente abordada quando se trata da representação feminina.

Carly Chaikin e Portia Doubleday
Carly Chaikin e Portia Doubleday “Mr. Robot”. (Imagem: reprodução)

Além disso, ela lida com ataques de pânico, enfrenta seus medos, dores e perdas sozinha, na maioria das vezes sem que ninguém demonstre preocupação. Darlene é incrivelmente humana, e é apresentada ao público como uma mulher resiliente e inteligente, sem disfarces sobre as dificuldades que ela enfrenta.

Darlene, assim, funciona para a espectadora como a única fonte de informação a respeito da continuidade de alguns núcleos da série. Porém, mais do que isso, em alguns momentos ela é a única janela que o público tem para o impacto real, completo e cru que toda a revolução arquitetada na primeira temporada teve sobre a vida de todos os envolvidos. Ela é tão protagonista quanto Elliot, e sua importância é desenvolvida sem medo do impacto de uma personagem feminina forte, tornando “Mr. Robot” uma série essencial, tanto nos temas tratados quanto na forma como a história é construída.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Formada em Jornalismo. Gosta muito de cinema, literatura e fotografia. Embora ame escrever, é péssima com informações biográficas.
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