A ficção científica é um gênero literário e cinematográfico que conquistou o mundo aos poucos. No livro A verdadeira história da ficção científica: do preconceito à conquista de massas (2018), Adam Roberts argumenta que a ficção científica (FC) está intimamente ligada à Reforma Protestante. Essa associação foi feita devido à ambas colocarem em pauta o questionamento da supremacia religiosa católica, obviamente, relacionada à inserção e aceitação da ciência. Segundo Roberts, a FC não poderia ter surgido antes do século XIX, uma vez que antes desse período a ciência não era popularizada, muito menos acessível de forma cultural.
No século XX, a ficção científica atingia uma pequena escala de interessados. Um século mais tarde, a FC conquistou o universo pop e as produções passaram a utilizar a temática ficcional e extraordinária para abordar questões próprias de seu tempo, como a Revolução Industrial, questões raciais e de classe e também aspectos feministas e relativos ao papel das mulheres na sociedade.
É notável que a arte reflete a realidade e o contexto sócio-histórico da época. Portanto, conforme o feminismo foi avançando enquanto movimento social e os direitos das mulheres conquistados, as representações femininas nos filmes de ficção também foram ganhando diferentes interpretações e relevâncias. Dessa maneira, o presente texto se dispõe a trazer uma análise de alguns filmes de ficção científica, para explorar as mudanças de representação das mulheres ao longo dos anos.
Aelita, a Rainha de Marte (1924)
“Aelita, a Rainha de Marte” é o primeiro filme de ficção científica russo, dirigido por Yakov Protazanov e baseado no livro de Alexei Tolstoy que leva o mesmo nome. Sua narrativa ocorre no período após a Guerra Civil Russa, no momento em que cientistas e engenheiros estão captando sinais de rádio vindos de Marte. Aelita (Yuliya Solntseva) os observa de seu planeta, imaginando como é a vida na Terra e mostra-se encantada com certos modos de se relacionar dos humanos, como o ato de beijar.
Ao longo de suas observações, Aelita se apaixona por Los (Nikolai Tsereteli), um humano casado que é um dos responsáveis por receber os sinais de Marte. Ao fim do filme, os humanos fazem uma viagem à Marte e o casal finalmente se encontra. A trama aborda temas como ciúmes e uma paixão interplanetária. Mesmo que o filme seja da década de 1920, já mostra algumas cenas de mulheres afugentando homens que as incomodam. O filme também traz a tona questões de luta de classe, refletindo a grande desigualdade social da Rússia na época.
Metrópolis (1927)
Precursor em trazer na sua narrativa uma distopia futurista, “Metrópolis” é um clássico do movimento expressionista alemão. Dirigido por Fritz Lang e roteirizado por sua esposa, a autora Thea von Harbou, foi um dos primeiros filmes a utilizar a ficção científica para falar de problemas de classe e da tecnologia. O enredo, mesmo que se passe em 2026, aborda principalmente a implementação do sistema fordista de produção na Europa, já que foi feito na década de 20, quando a produção em massa e larga escala ganhou os chãos de fábrica no mundo capitalista.
Metrópolis é uma cidade com mais de 50 milhões de habitantes, cujas máquinas clamam por alimento: o trabalho humano. Os homens são como bois, comandados para executarem tarefas da linha de produção que mantém a cidade viva. A questão da desigualdade social é muito bem abordada quando apresenta-se a divisão de Metrópolis. Os ricos moram na superfície e os pobres proletários moram abaixo deles.
O filme de Lang (adaptado do livro de Thea von Harbou) revolucionou a história do cinema, trazendo ao público clássicos como o estereótipo do cientista maluco e a estrutura de cidade grande e distópica, usada como referência em “Blade Runner” e outros filmes de ficção científica. As estruturas da cidade eram tão grandes que foram gravadas em maquetes, técnicas usada também por George Lucas em “Star Wars“, assim como o formato humanoide de robô do C-3PO.
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A personagem feminina de destaque no filme é Maria, uma jovem simples que pregava aos empregados no subsolo que haveria um mediador que melhoraria sua situação. Para impedir o romance de seu filho Freder (Gustav Fröhlich) e desestabilizar os trabalhadores, o Senhor de Metrópolis, Joh Fredersen (Alfred Abel), pede para o cientista maluco Rotwang (Rudolf Klein-Rogge) que clone Maria (Brigitte Helm), construindo uma robô que consegue imitá-la perfeitamente.
Maria, clonada, sai pregando algo completamente diferente do que a verdadeira Maria costumava dizer aos trabalhadores, incitando greves e revoltas contra as máquinas. É interessante observar que a Maria que incita revolução é tida como bruxa, enquanto a Maria que busca fazê-los entender que pode haver uma forma de dialogar e mediar as classes é tida como santa.
Outra característica que se destaca é o romance da trama, Maria e Freder são duas pessoas de classes diferentes que enfrentam grandes dificuldades para ficarem juntas, numa espécie de “Romeu e Julieta” do capitalismo.
Solaris (1971)
Grande parte dos filmes de ficção científica abordam como seria a possibilidade de emoções humanas serem contempladas por androides, clones e inteligência artificial de modo geral. Poderiam as criações se apaixonarem? Criarem memórias e laços? “Solaris” é um filme contemplativo, como a maioria dos dirigidos por Andrei Tarkovski, e traz em seu roteiro muitas dessas questões filosóficas e angústias humanas, pensadas como possíveis para seres ficcionais.
A narrativa traz a história do Dr. Kris Kevin (Donatas Banionis), que é enviado à estação espacial em órbita de Solaris para investigar acontecimentos estranhos que rondam o planeta, formado por um imenso oceano. Ao chegar, se depara com mais coisas anormais e com sua falecida esposa, Hari (Natalya Bondarchuk), como uma criação do próprio planeta, que cavou fundo suas memórias. Diferente do que acontece no livro homônimo de Stanisław Lem, o foco da trama do filme está em Hari e não no planeta Solaris em si.
A primeira versão de Hari é descartada por Kevin, após ter entendido que ela seria apenas uma invenção de sua cabeça e que o planeta estaria fazendo aquilo com ele. Nada era real e essa Hari não poderia substituir sua esposa. Mas, a segunda versão de Hari esforça-se ao máximo para agradá-lo, pois não pode viver sem ele, já que é algo de seu interior. Ao pensar nessa necessidade em ser uma boa esposa, é importante relembrar a época em que o filme foi feito. Na década de 1970, às mulheres ainda era destinado majoritariamente o espaço doméstico. No Brasil, por exemplo, até 1962, mulheres casadas só podiam trabalhar fora de casa com a permissão do marido.
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Todavia, após o suicídio da segunda versão, uma outra surge e dessa vez está mais forte e independente, já não tem a necessidade de ficar junto à Kevin para que não se machuque ou permaneça viva. Ao mesmo tempo, Kevin mostra ter desenvolvido um laço mais forte com a criação do planeta do que com sua própria esposa quando estavam na Terra. O desenvolvimento da personagem reflete na emancipação feminina que estava acontecendo naquela década.
Alien – O último passageiro (1979)
O primeiro filme da franquia “Alien”, considerado por muitos o melhor entre eles, foi dirigido por Ridley Scott. Aqui, temos em uma atmosfera tensa e aterrorizante, a história de uma tripulação que encontra sinais de uma nave abandonada. Sua exploração aprofundada fará com que coisas ameaçadoras aconteçam.
O filme traz, primeiramente, duas personagens femininas que não são objetificadas. Além disso, não existe tensão sexual entre a tripulação e as mulheres estão em pé de igual com os homens. Ripley (Sigourney Weaver) pode ser considerada uma transposição da final girl do gênero de terror para a ficção científica, já que contempla o estereótipo cinematográfico: é inteligente e corajosa, possuí traços andrógenos e às vezes até masculinizados, além de ser a última sobrevivente.
Ao longo do filme nota-se que Ripley é tida como arrogante e às vezes não é ouvida, apesar de ser extremamente sagaz. Sua coragem e competência a colocam no posto de única que consegue vencer a ameaça alienígena. Ademais, “Alien” até hoje inspira outras tramas no cinema, como “O Paradoxo Cloverfield” (2018), destacando a coragem e inteligência feminina ao apresentar uma mulher como única sobrevivente.
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Blade Runner (1982)
O filme de Ridley Scott é um dos maiores clássicos do cinema de ficção científica e grande ícone cyberpunk, tido como revolucionário pelos seus efeitos especiais. A cidade em que a narrativa se passa é baseada em “Metropólis” e o figurino é bastante inspirado numa mistura entre a estética punk e a estética noir.
Devido ao roteiro extremamente filosófico, dificuldades com o orçamento e até mesmo com o público, que poderia esperar um filme com mais ação em decorrência da participação de Harrison Ford – que havia acabado de estrelar “Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida” –, o filme passou por 7 versões de cortes diferentes desde o lançamento, sendo que a versão final foi lançada apenas em 2007. Todos esses detalhes podem dar a impressão de que o filme é mais confuso do que parece.
A trama se passa em 2019, com a Terra sofrendo grandes consequências de uma guerra nuclear e do uso desrespeitoso de seus recursos naturais. Outros planetas estão sendo colonizados e, para trabalharem nas colônias, são criados os replicantes. Eles são seres de inteligência artificial cuja vida útil é de 4 anos, idênticos aos humanos. Apenas diferenciam-se pelo fato de não sentirem emoções e por um brilho no olho diferente, retratado pelas câmeras.
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Os replicantes são proibidos na Terra, portanto, os blade runners existem para caçá-los. Deckard (Harrison Ford) é um caçador enviado para matar os replicantes que fugiram e estão em busca de seu criador para aumentar seu tempo de vida. O foco principal do filme é questionar qual o direito dos humanos em utilizar os replicantes de forma tão objetificada e insistir em afirmar que eles não têm memórias ou sentimentos, e afinal, o que nos torna humanos?
Refletindo a questão identitária e a diferença sutil entre os humanos e replicantes está a personagem Rachael (Sean Young), uma replicante que Deckard só consegue afirmar que é uma replicante após mais de 100 perguntas do teste que ele costumava fazer. Ou seja, é nítido que Rachael é capaz de desenvolver sentimentos e está em busca de uma identidade assim como todos os humanos. O destaque para reflexões existencialistas coloca a mulher numa posição filosófica importante que, muitas vezes, é tida como masculina. Afinal, as mulheres precisam cuidar da casa e dos filhos, só os homens podem ter momentos para pensar.
Contato (1997)
O filme de Robert Zemeckis, baseado em um romance homônimo de Carl Sagan, traz a história de Eleanor Arroway (Jodie Foster), uma radioastrônoma que descobre um sinal extraterrestre transmitido a partir da estrela Vega, após anos de dedicação. A construção da personagem pode dar um ar de uma certa masculinização. No entanto, o filme mostra que as mulheres não estão destinadas a agirem de acordo com suas emoções, uma vez que Ellie escolhe deixá-las de lado por muito tempo. Ainda criança, perde os pais e segue a área da astronomia. Desta forma, ela não precisa lidar com suas emoções por estar focada na razão, praticamente o tempo todo.
O filme traz questionamentos entre ciência (razão) e religião (emoção), e põe à prova o esforço de Ellie. Ela precisa provar a todos que efetivamente fez contato com uma espécie alienígena e não teve uma alucinação ou algo do tipo. A dicotomia entre o empirismo e a fé religiosa, entre a razão e a emoção, caminham pelo roteiro de todo o filme. Isso é muito presente no romance entre Ellie e Palmer (Matthew McConaughey), uma cientista cética e um escritor religioso.
Gravidade (2013)
O filme dirigido por Alfonso Cuarón tem um roteiro simples, mas muito aclamado. Após um acidente envolvendo destroços espaciais, a Dra. Ryan Stone (Sandra Bullock), em sua primeira missão no espaço, enfrenta a solidão do universo até conseguir, finalmente, achar um jeito de voltar para a Terra.
O filme intimista e claustrofóbico utiliza ângulos e giros que fazem com que a espectadora se sinta na pele da protagonista, que precisa fazer um esforço tremendo para manter-se calma e passar as coordenadas para ser resgatada. Ao longo da trama, o desespero e angústia da personagem é cada vez melhor trabalhado, já que ela precisa encontrar algo que a faça lutar por sua vida.
Quando finalmente encontra um modo de voltar para a Terra, Stone mostra que, antes de mais nada, preza pela vida e sua sobrevivência. Mesmo que seja um lugar que a faça sofrer, ela entende que o melhor a se fazer naquele momento seria voltar para casa. Assim, a protagonista nasce de novo, capaz de falar de assuntos antes muito penosos para ela, como perder a filha, e se mostra confortável e mais confiante. O filme remete de forma metafórica a força feminina para superação de dificuldades e renascimentos, sem abandonar os momentos de angústia e solidão que acompanham a luta pela sobrevivência.
Ex-Machina (2014)
“Ex-Machina” foi dirigido por Alex Garland e traz a história de Nathan Bateman (Oscar Isaac), escolhido para passar uma semana na casa de Caleb Smith (Domhnall Gleeson) para conhecer suas criações de inteligência artificial. O enredo traz dilemas éticos em relação à criação de vidas inteligentes, assim como referências bíblicas, já que a alegoria “brincar de Deus” sempre acaba aparecendo quando se trata do assunto.
O objetivo da visita de Nathan é aplicar o Teste de Turing e verificar se Ava (Alicia Vikander) tem comportamentos e consciência equivalentes ao de um humano ou não. Ao longo dos dias, ele descobre que Caleb usa suas criações como escravas sexuais e se posiciona contra tudo aquilo que ele julgava ser genial da parte do criador. Até mesmo se questiona se ele é um robô ou um humano. Em meio a tanta instabilidade, Ava e Nathan decidem fugir juntos.
O ápice da narrativa acontece quando Ava, a criatura, ao se libertar de seu criador, assume as características físicas de feminilidade. Ela até mesmo utiliza peruca e vestido, como se no momento de libertação tornou-se mulher e agora, dessa maneira, pode conhecer e enfrentar o mundo.
Mad Max – A estrada da Fúria (2015)
O último filme da quadrologia de Mad Max, criado 30 anos após o penúltimo filme, traz uma das protagonistas mais fortes dos filmes do gênero. Nessa obra dirigida por George Miller, Imperatriz Furiosa (e seu nome não é a toa), teve que substituir parte do braço por um artefato mecânico. Apesar disso, nada a impede de dar uma boa surra em quem atrapalha seus planos.
Em uma sociedade em que não só as mulheres, mas todos são tratados como objetos e dessubjetivados, as personagens femininas são divididas em Esposas e Leiteiras, responsáveis, respectivamente, por procriar e nutrir a população com leite materno. Em meio a essa organização opressiva, Furiosa (Charlize Theron) e as Esposas estão determinadas a fugir.
O destaque para a força e resistência feminina refletem as discussões de gênero da década de 2010. A protagonista reafirma, desde coisas simples como um corte de cabelo até a solidão que sente, a luta das mulheres para garantir os direitos sobre seus corpos. Sem a necessidade de uma figura masculina para protegê-las, as mulheres se defendem, se protegem e lutam contra o controle autoritário do patriarcado.
I am Mother (2019)
O filme de Grant Sputore aborda um tema caro para a humanidade que é a reprodução. Por anos as mulheres tinham uma única função, que era dar filhos ao mundo. Em “I am Mother” a mulher enquanto reprodutora não é mais necessária. A robô chamada de Mãe (Rose Byrne, voz) consegue fecundar em poucos dias uma criança, tendo todos os requisitos racionais para criá-la. A Filha (Clara Rugaard) sempre foi completamente fiel à mãe, afinal era sua única referência. No entanto, quando a Mulher (Hilary Swank) aparece, a confiança começa a se quebrar.
A maternidade é trabalhada de forma interessante no filme. Embora a Mãe afirme que tudo o que faz é para o bem da Filha, e isso traga algo relacionado ao mito do amor materno, a Mãe cria a Filha sozinha, realidade de muitas mulheres de hoje.
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O que a representação feminina na ficção científica audiovisual tem a nos dizer
Em suma, podemos ter a seguinte conclusão: o feminismo e os direitos conquistados pelas mulheres andam juntos com a melhora significativa da construção de personagens femininas. Mulheres que antes tinham como ponto alto de suas vidas um romance ou ocupar o papel de uma boa esposa, agora são aquelas que dedicam suas vidas para captar sinais alienígenas. São as únicas sobreviventes ou aquelas que libertam-se de seus criadores mesmo quando tal ato parece impossível para uma inteligência artificial.
Os longas aqui apresentados reafirmam a ideia de que o cinema proporciona novas possibilidades, para refletirmos sobre a realidade humana e questionarmos temas importantes. Seja em temas considerados tabus ou em reflexões diárias, as mulheres podem, sim, ocupar um lugar de protagonismo diferenciado. É claro que existem filmes que ainda são sexistas e objetificam as mulheres. Porém, estes já não são bem vistos pelos amantes da ficção científica como antes, quando mais ideias machistas eram naturalizadas. Dessa forma, as mulheres ganham, cada vez mais, papéis importantes e de fácil identificação com o público, tanto feminino quanto masculino (como é o caso das final girls no mundo da FC).
Como é observável, todos os filmes aqui indicados são dirigidos por homens. Apesar de contarem com a participação de mulheres trabalhando no roteiro, produção ou fotografia, o papel de maior destaque ainda é de um homem. Portanto, a segunda parte desse artigo trará a representação feminina em filmes de ficção científica feitos por mulheres.
Edição/revisão por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.