A Amiga Genial (My Brilliant Friend, no original), série fruto da parceria entre a HBO e a emissora italiana RAI, orbita em torno da amizade de Helena Greco e Rafaella Cerullo, apelidadas de Lenù e Lila respectivamente. Habitantes de um bairro pobre e em ruínas pós Segunda Guerra Mundial, em Nápoles (Itália), espera-se que as meninas abandonem a escola antes da adolescência e exerçam suas obrigações enquanto esposas e, consequentemente, mães.
Na série, a figura de Lila se destaca nesse ambiente monótono e monocromático. Portanto, a garota, tão feroz quanto brilhante, se nega a cumprir o roteiro previamente estabelecido por sua condição social e atrai o interesse de Lenù ao se mostrar mais inteligente do que a média. No entanto, apesar da fome de conhecimento como tentativa de fugir do que lhes foi predestinado, uma vida pautada pela educação formal não está no cardápio das meninas e jovens menos favorecidas da Itália dos anos 1950.
A produção primorosa de “A Amiga Genial”
Com duas temporadas exibidas e a terceira confirmada, A Amiga Genial parte da adaptação da chamada “Tetralogia Napolitana” de Elena Ferrante, autora italiana conhecida por mergulhar na emaranhada teia emocional da intimidade feminina e por manter sua identidade oculta. Após tanto sucesso, a autora ganhou o termo Ferrante Fever e um documentário homônimo sobre o fenômeno literário de suas obras. E desde o lançamento de seu primeiro romance, há mais de vinte anos, Ferrante optou pelo anonimato por meio do pseudônimo. Assim, mesmo com a identidade oculta, a escritora se faz presente nos bastidores da série.
A Amiga Genial é dirigida por Saverio Constanzo — diretor italiano conhecido por seu trabalho nos filmes “Private” (2004), “Hungry Hearts” (2014) e na série “In Treatment” (2013-2016) — e assim que a notícia foi divulgada pela HBO, fãs de Ferrante demonstraram certa preocupação por questões inerentes às mulheres serem tratadas por um homem. Em sua coluna no The Guardian, a escritora aborda o assunto:
“Não há nada errado em um homem desejar fazer um filme a partir dos meus livros: na verdade, é um sinal positivo. Mas, nesse caso, eu tenderia a não ser aquiescente. Mesmo que ele tivesse uma visão fortemente definida, eu pediria que respeitasse minha visão, aderisse ao meu mundo, que entrasse na gaiola da minha história sem tentar arrastá-la para a dele. “
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E foi o que Elena Ferrante fez. Costanzo e os co-roteiristas, Laura Paolucci e Francesco Piccolo, começaram a escrever os roteiros em consulta com a autora via e-mail. Além dos roteiros, Ferrante opinava diretamente nos detalhes, como a escolha das bonecas de Lenù e Lila, e assistia às filmagens ocasionalmente para pontuar algumas questões que fugissem da “gaiola de sua história”. Se olhar clínico até aqui impressiona, o primor da produção começou muito antes das gravações.
Para selecionar o elenco da série, cerca de 9 mil crianças passaram pelos produtores que procuravam quatro meninas para interpretar Lenù e Lila, duas para a infância e duas para a adolescência. Além da aparência física, a equipe também buscava crianças que pudessem falar o dialeto napolitano muito específico descrito no livro, típico de uma pequena seção ao sul da Itália. A questão idiomática era de suma importância na seleção das atrizes, pois tinha como objetivo transmitir as mudanças culturais e a realidade brutal daquela região nos anos 1950.
Entre tantas especificidades, Elisa del Genio e Margherita Mazzucco foram escolhidas para interpretar as versões infantil e jovem de Lenù; enquanto Ludovica Nasti e Gaia Girace conquistaram os papéis de Lila criança e adolescente. Um fato curioso sobre as elegidas é que nenhuma delas havia atuado profissionalmente, apenas Gaia tinha feito aulas de teatro antes da série.
Nuances de uma amizade
— Minha mãe desapareceu.
— Desde quando?
— Faz duas semanas.
O diálogo entre Rino, filho de Rafaella Cerullo, e uma sexagenária Helena Greco, cercada de livros e tecnologias, traz a tona um desejo visceral de Lenù em contar não só o que ela viu, mas o que ela sabe e o que Lila a confidenciou ao longo de décadas de amizade. “Desta vez, também vou até o fim e vamos ver quem vai ganhar”, pontua com certa irritação antes de iniciar a história narrada sob sua perspectiva.
Em uma Nápoles devastada pela guerra e nas garras de uma economia de mafiosos, a violência é força motriz das relações naquela região. Obedecer é a saída para permanecer vivo, mesmo que a vida pareça mais próxima da morte. E Helena Greco obedecia, era uma menina “limpa, sempre em cima da linha e sem borrões”, como seu caderno de caligrafia; até ser arrebatada por Lila.
Ao contrário da amiga, Lila era bastante magra, vivia com as roupas sujas, os cabelos livres e aprontava em sala de aula na frente da professora. A criatividade e a inteligência da menina se destacavam, aprendeu a ler e a escrever antes de toda a turma, além de se mostrar habilidosa com desenhos e operações matemáticas. Portanto, Lenù se deu conta de que queria acompanhar aquela criança indomável ao vê-la vencer desafios escolares propostos pela professora Oliviero (Dora Romano) contra meninos mais velhos, com o objetivo de mostrar que suas alunas eram tão capazes quanto os alunos do sexo masculino.
“Quando Lila decidiu derrotar o Alfonso e o Enzo, ficou iluminada como uma santa guerreira. Achei que ela estava ainda mais linda. Foi naquele dia que eu me convenci de que se caminhasse atrás dela, seguindo sua marcha, o passo da minha mãe deixaria de me ameaçar. Eu precisava acompanhar aquela menina e nunca perdê-la de vista.”
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Deixar o passo da mãe para trás seria deixar uma vida doméstica, limitada ao bairro de prédios monocromáticos e comércio sob o domínio das famílias Carracci e Solara, dedicada à criação dos filhos e submissão ao marido, muitas vezes violento. Mais do que isso, seria deixar a ignorância, o estado de quem não tem conhecimento por falta de estudo. Os caminhos de Lenù e Lila se cruzam no desejo pelo saber.
Todavia, a sede pelo conhecimento que as aproxima, também as afasta. Lenù e Lina vivem entre adoração e ciúmes margeados pela competitividade acirrada em qualquer assunto, seja quem vai aprender Latim ou beijar um garoto primeiro. Dessa maneira, a série explora condições externas, mas também a complexidade da relação entre as amigas e a psicologia de cada uma, passando por questões referentes à vivência feminina, como a descoberta do próprio corpo durante uma época em que educação sexual era praticamente inexistente; o matrimônio como único destino possível para a mulher; as pressões familiares e sociais enfrentadas pelas jovens e pelas esposas; a desvalorização da educação formal para mulheres; a violência doméstica e o estupro.
AVISO: spoilers a seguir
Comparações inevitáveis
Cada temporada da série adapta um volume da tetralogia. A primeira foi inspirada em “A Amiga Genial”; a segunda, em “História do Novo Sobrenome”; a terceira será sobre “História de Quem Foge e de Quem Fica” e a quarta, caso haja, terá “A História da Menina Perdida” como norte.
O recorte inicial contempla a infância e adolescência das garotas que desejam sair daquela paisagem monocromática enquanto viajam pela leitura em dupla de “Mulherzinhas” de Louisa May Alcott. Lila, sempre um passo adiante de Lenù, se encanta com a personagem Jo March e passa a acreditar na possibilidade de deixar a pobreza escrevendo um livro, e o faz. Guarde esta ação na memória, pois ela voltará nos últimos episódios da segunda temporada.
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Ainda na primeira temporada de A Amiga Genial, acompanhamos a transição da infância para a adolescência das protagonistas. A sede por conhecimento de ambas passa a sofrer influências externas da sociedade violenta e patriarcal em que estão inseridas.
Dessa maneira, na casa de Lila, filha do sapateiro Fernando Cerullo (Antonio Buonanno), a continuidade dos estudos da filha é dada como encerrada, apesar dos esforços da professora Oliviero em conversa com a mãe da garota, Nunzia (Valentina Acca). Enquanto na casa de Lenù, filha do contínuo Vittorio Greco (Luca Gallone), o pai de certa forma se orgulha das notas e inteligência da menina, mesmo que a mãe Immacolata (Annarita Vitolo) diga que a família está desperdiçando dinheiro. No final, a palavra do homem da casa é a que vale e o destino das jovens está selado: Lenù estuda e Lila se casa.
O retorno da série, na segunda temporada, contempla a dualidade aproximação e afastamento das protagonistas que se encontram em um beco sem saída, cada qual a sua maneira. Lila se vê sem identidade ao assumir o novo sobrenome, do marido Stefano Carracci (Giovanni Amura), e com ele uma postura de submissão para não ser violentada; já Lenù, apesar da sorte de poder se educar formalmente, sente-se deslocada em meio às cabeças pensantes do liceu. No entanto, as duas voltam a conviver de maneira mais próxima quando viajam para a ilha de Ischia, onde nasce mais uma disputa entre as jovens: a atenção do colega de classe da infância e agora intelectual, Nino Sarratore (Francesco Serpico).
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O triângulo amoroso forjado no litoral italiano bebe na fonte do romance adolescente, mas não de forma pejorativa, quando as duas garotas fazem de tudo para atrair os olhares do desejado criando um clima de rivalidade e ciúmes. Ambas se oferecem para acompanhar Nino em idas ao mar, tentam engajar conversas sobre livros e se mostrar à altura de sua inteligência. Porém, ao falar do jovem entre si, Lila e Lenù fingem desinteresse; a segunda inclusive chega a comparar a sensação de beijá-lo a ter seus lábios tocados por um rato.
Após a aventura em Ischia, que pareceu um momento de suspensão para as protagonistas, Lila volta a brutalidade de sua vida conjugal em um apartamento colorido em oposição aos tons de sua vida; agora mãe do filho com Nino Sarratore, mas sob o teto de Stefano Carracci que nega a traição e diz ao bairro que a criança é sua. Assim, traída e vítima de incontáveis tipos de violência, ela e seu filho deixam a casa com a ajuda do verdureiro e amigo Enzo Scanno (Giovanni Buselli).
Em seguida, ficamos sem notícias do núcleo até que Lenù, formada pela Escola Normal Superior de Pisa e noiva do acadêmico Pietro Airota (Matteo Cecchi), volta ao bairro com olhar de estranhamento e descobre que sua melhor amiga não mais o habita.
O encerramento da temporada é brutal. Nos reencontramos com uma Lila operária, que recebe a notícia da publicação do primeiro livro de Lenù pela própria e o exemplar único do livreto de infância, criado por Cerullo, intitulado “A Fada Azul”, com anotações da professora Oliviero. Da fada, só restou o azul do uniforme de trabalho de Lila que joga nas chamas a recordação da criança genial que havia sido. Mais ao longe Lenù observa a cena com lágrimas nos olhos.
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Saverio Constanzo, em conjunto com as equipes de roteiro e produção, transpõe o texto de Elena Ferrante para as telas com muita delicadeza e sensibilidade, mesmo em momentos brutais que nos fazem fechar os olhos. Tal feito garantiu um público fiel e a confirmação dos próximos oito episódios para a temporada seguinte, realizada a partir do terceiro livro “História de quem Foge e quem Fica”, ainda sem data de estreia.
Você pode assistir às temporadas de A Amiga Genial, com legendas em português, no aplicativo HBO GO.
https://www.youtube.com/watch?v=BWqkUFyHkXk
Edição/revisão por Isabelle Simões.