His Dark Materials – 1ª temporada: realismo fantástico e crianças que lidam melhor com a vida que os adultos

His Dark Materials – 1ª temporada: realismo fantástico e crianças que lidam melhor com a vida que os adultos

Depois de oito semanas, dois meses e uma temporada completa de His Dark Materials, vamos recapitular algumas coisas. Um realismo fantástico, protagonizado por Lyra Belacqua (Dafne Keen) órfã moradora da Jordan College, que recebe visitas ocasionais de seu tio e pesquisador renomado, Lord Asriel (James McAvoy). Numa realidade paralela que se parece com a nossa, por seus fundamentalismos e morais. Todavia, se afasta totalmente – com seus daemons e outras criaturas fantásticas.

Sim, mais uma vez, os daemons. Animais encantados que carregam os espíritos dos humanos, o que os torna inseparáveis. Entendemos a importância dessas relações entre humanos e daemons durante a temporada da série da HBO, além de outros elementos já apresentados no primeiro episódio: a importância do Pó (Dust); a aurora boreal e descobertas cientificas feitas pela academia contrariando o totalitarismo do governo; o Magistério. E lembrando, para aquecer os corações sensíveis, a amizade de Lyra com Roger (Lewin Lloyd) outro órfão residente da Jordan College. 

Atenção: contém spoilers da temporada

His Dark Materials - 1ª temporada
Lyra Belacqua (Dafne Keen) e Roger (Lewin Lloyd) em His Dark Materials. Imagem: HBO / reprodução

Marisa Coulter e a certeza de que as aparências enganam

Se, no fim do primeiro episódio, a sensação era de um acolhimento num mundo novo – inclusive por causa do esforço de Marisa Coulter (Ruth Wilson) – com o desenrolar do segundo episódio, o sentimento passa a ser diferente. Lyra é apresentada a um modo de vida com vestidos, festas e status social muito diferente do que estava acostumada. Aliado a isso, temos a mudança de comportamento de Coulter, que se torna mais autoritária com a convivência, trazendo uma agitação para uma alma já inquieta, com um incômodo que faz Pantalaimon (o daemon de Lyra) afirmar: “não deveríamos mudar só para nos encaixarmos aqui”, se referindo ao fato de que Lyra, segundo Coulter, é uma joia que precisa ser lapidada.

Ainda sobre Coulter, vamos falar de uma personagem enigmática e bem construída. Com uma frieza capaz até de impressionar Voldemort, Marisa se mostra sem escrúpulos – ferindo inocentes, destruindo corações – em busca de um objetivo extremo de erradicar o pecado do mundo. Nessa cruzada cientifico-religiosa (por incrível que pareça), ela conta com o apoio do Magistério e seus recursos. Ao mesmo tempo, Marisa se coloca num papel conservador que antagoniza com a aparente mentalidade revolucionária de Lorde Asriel. No fim, ele se mostra tão tirano como qualquer outro, desapontando Lyra e despertando o nossa decepção, qualquer que seja a temporada ou a realidade em que esteja.

Mas enfim, Marisa Coulter, uma grande vilã. Tanto pela atuação marcante de Ruth Wilson – amparada pela qualidade da caracterização da personagem – quanto pela dicotomia presente na personagem. Ao mesmo tempo que agride seu daemon – subserviente e esperto, trabalha como um ajudante eficaz – também tem, ao seu modo, um lado maternal que poderia nos conquistar, caso já não houvesse dado provas suficientes de sua instabilidade.

Marisa Coulter (Ruth Wilson)
Marisa Coulter (Ruth Wilson) em His Dark Materials. Imagem: HBO / reprodução

Lyra Belacqua, o aletiomêtro e uma leve sensação de “o que está acontecendo aqui?”

Quando o reitor da Jordan College, Dr. Carne (Clarke Peters), entrega o aletiômetro para Lyra, os questionamentos sobre o que era aquilo, para que servia e porque tinha que ficar escondido de Marisa Coulter, ficam no ar. Um objeto redondo e dourado, a tal “Bússola de ouro”, cheio de símbolos que trazem respostas enigmáticas às perguntas e que, na prática, se mostra nas mãos de Lyra (única capaz de interpretá-lo sem a ajuda de livros enormes), uma ferramenta de barganha e um instrumento de achados e perdidos desfazendo a áurea mágica que parecia ter quando tratado com receio pelos acadêmicos e pessoas do Magistério.

Porém, Lyra. Não vamos deixar de exaltar a atuação incrível de Dafne Keen como uma impetuosa – as vezes até demais – pré-adolescente que não tem o menor medo de quebrar regras e desobedecer aos adultos para fazer aquilo que considera certo, tanto pela sua visão quanto pela do aletiômetro.

Sendo, por isso, responsável por alguns contratempos, mas também – e principalmente – responsável pela solução de problemas considerados como impossíveis até mesmo pelos adultos. Lyra é cheia de si, com uma personalidade forte. Isso também fica claro quando, após decepções familiares decide mudar seu nome de Lyra Belacqua para Lyra “língua afiada”. Inclusive, confrontando Lord Asriel com essa informação e enterrando, com razão, uma relação familiar que era mantido apenas por um lado: o de Lyra.

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Depois que começa a entender a complexidade e o perigo de ter saído da Jordan College, Lyra foge com Pan da casa de Coulter, é sequestrada (a primeira de muitas nessa temporada) e, por sorte, resgatada pelos Gípcios. Sim, os Gípcios. Um povo autônomo, com grande organização social, subordinado ao Magistério, mas que nem sempre se conforma com suas regras. Ao ver que suas crianças começam a ser sequestradas, os gípcios partem num resgate com suas próprias armas, seus próprios corpos. Eles dão uma lição de empatia e solidariedade ao salvar não só os seus, mas todos aqueles que precisam pelo caminho, defendendo que as crianças – e os adultos – podem ser quem quiserem e tomar suas próprias decisões.

Temos, a partir desse resgate/encontro uma enxurrada de novas personagens e informações. Se você se distraiu com algum meme ou pausou para ir ao banheiro pode ter perdido algum detalhe nas transições de cenas, histórias, personagens e, porque não mencionar, realidades. Já que não é só de fantasia que se faz um realismo fantástico e, portanto, podemos ver ônibus vermelhos ingleses e smartphones na tela numa ponta solta que conecta, através de uma profecia, os dois mundos e que, com sorte, será resolvida na segunda temporada.

Impressões finais de His Dark Materials: um realismo fantástico lindo, morno e que não nos deu muitas tréguas

Lyra Belacqua (Dafne Keen) em His Dark Materials
Lyra Belacqua (Dafne Keen) em His Dark Materials. Imagem: HBO / reprodução

É necessário afirmar que vale a pena assistir His Dark Materials por causa da qualidade da produção da HBO. Efeitos especiais, elenco, caracterização dos personagens, trilha sonora, a abertura – que nos deixa sem coragem de pular em todos os episódios – e todos os outros elementos cenográficos. Essa composição nos leva de uma aventura a outra através de neve, rios, ares e nos presenteia com a aurora boreal tão distante para a realidade brasileira quanto o fato de um urso de armadura (sim, literalmente) ter sido carregado por um balão na realidade paralela da série.

Porém, por mais encantadas que estivéssemos com tamanha beleza, seria impossível não se incomodar com a frieza tão aparente. E, não apenas com Lyra, que teve sua confiança traída pela maioria dos adultos que conhecia, mas também pela crueldade do uso de crianças e daemons num experimento que, segundo Coulter, “iria erradicar o pecado do mundo”. Ou seja, com um argumento facilmente visto entre nós “terráqueos” por causa de sua base moral – sendo chamado de teologia experimental pela própria Marisa Coulter – o sacrifício de alguns inocentes é justificado pelo bem comum que, mais uma vez, não será construído para todas e todos.

Numa trama que não deu trégua, podemos encontrar nos daemons um forte respiro. Tanto para o alivio das tensões – com a fofura dos daemons das crianças, consideramos até mesmo fundar um abrigo para aqueles que foram abandonados – quanto para entender alguns personagens mais sombrios – afinal, você também não desconfiaria de alguém que tem uma cobra ou besouro como daemon?

A primeira temporada de His Dar Materials acaba, então, com uma sensação de mal-estar. Com adultos com crenças fortes – religiosas, cientificas, politicas – que não tem escrúpulos em manipular e machucar crianças espertas. Apesar disso, as crianças contam com a ajuda de alguns adultos sensatos e seres mágicos, e tentam salvar o dia e a própria pele. Por fim, o que temos de mais bonito é a revolução das crianças e a certeza de que, nem em uma realidade paralela, conseguimos entender (e gostar) dos adultos, em sua maioria, ou daqueles que se acham portadores e portadores dos conhecimentos e da razão.


Edição por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.

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Uma adolescente emo virou uma hipster meio torta que sem saber muito bem o que fazer, começou jogar palavras ao vento e se tornou escritora e tradutora. Também é ativista dos direitos humanos. Além disso é lésbica, Fé.minista, taurina. E, principalmente, adoradora de gatos e de café.
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