A Sonata Perfeita: a dor e o amadurecimento no pós-Segunda Guerra

A Sonata Perfeita: a dor e o amadurecimento no pós-Segunda Guerra

A Sonata Perfeita, livro de Rose Tremain publicado pela Darkside Books, era um livro que prometia muita sensibilidade ao abordar temas delicados, como, por exemplo, amadurecimento em meio ao pós-Segunda Grande Guerra e o desenvolvimento de um relacionamento homossexual. Contudo, talvez justamente por querer abraçar tanto em um só livro, ele se perde naquilo que mais precisaria: criar conexão com quem o lê.

A história se inicia em meados de 1948, quando Gustav e Anton, então com 5 anos, se conhecem. O primeiro perdeu o pai ainda bebê, um soldado suíço que ajudou judeus a se refugiarem mesmo após a proibição de envolvimento da Suíça. Criado pela mãe, Gustav experimentou, então, uma infância pobre e sem muitos amores, e como único tesouro, mantinha uma caixinha de objetos encontrados na Igreja que ajudava a limpar aos sábados de manhã.

Anton, por sua vez, cresceu cercado de mimos. Os pais, judeus sobreviventes do holocausto, esforçam-se para oferecer ao filho todos os sonhos que ele possa ter. Brinquedos bonitos, idas ao rinque de patinação, aulas de piano e a promessa de um futuro promissor na música. O único empecilho ao seu sucesso, portanto, é ele mesmo.

A Sonata Perfeita - resenha
A Sonata Perfeita | Foto: arquivo pessoal

As três narrativas de A Sonata Perfeita

A história, então, divide-se em três partes. A primeira narra a infância de Gustav e Anton dos 5 aos 10 anos e inicia-se com a construção do relacionamento entre Gustav e Emilie Perle, sua mãe. Passa pelo encontro com Anton no jardim de infância, quando Gustav, desde cedo uma pessoa protetora, decide ajudar a criança tímida e chorosa em seu primeiro dia de aula. Acompanha o desenvolvimento dessa amizade e de cada um deles, como as experiências traumáticas de Gustav e a insegurança de Anton, e se encerra com o episódio marco na história dos dois.

A segunda parte faz um retorno no tempo e acompanha, dessa forma, a história de Emilie e Erich Perle antes do nascimento de Gustav. Ali, descobrimos, então, como Erich falece e porquê Emilie se comporta de maneira tão distante com o filho. A terceira parte, enfim, retoma o foco em Gustav e Anton e abraça mais de 40 anos de sua história. É o que explica, por fim, a vida deles após o fato de 1953 e mostra onde aquelas experiências da infância terminaram – ou seja, na construção de um relacionamento que não é plano, mas feio de camadas.

Do conto A Game of Cards à história sobre as dores do holocausto

Talvez o melhor aspecto do livro seja tentar construir essas camadas no relacionamento. Como Rose Tremain comenta em entrevistas, ela quis trazer para A Sonata Perfeita a desigualdade que existe em relacionamentos. Um sempre ama mais e suporta a relação? Ou ambos amam igualmente? Se o livro consegue ou não trazer isso de forma satisfatória, fica a encargo da opinião de quem o lê. No entanto, não se pode deixar de evidenciar alguns pontos.

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No epílogo de A Sonata Perfeita, Rose Tremain explica que a história parte do conto A Game of Cards. Nele, ela narra a amizade de dois homens, sem referência a um relacionamento amoroso ou ao holocausto. Segundo escreve, “a história gira em torno das expectativas de Gustav de que a carreira tardia de Anton como pianista não mudasse o conforto de sua vida doméstica, mas a paixão que sente pelo amigo não é explorada. E Emilie, que causa tanto dano emocional ao filho no livro, é retratada como gentil e amorosa”.

Rose Tremain
Rose Tremain. Foto: reprodução

Embora acreditasse que “um conto nunca conseguiria ser o mesmo que um romance”, por ver uma conexão entre a ideia de ficção e a forma (um romance já começa com a ideia de ser longo, segundo a mesma), a autora se frustrou, tempos depois, ao ver que sua ideia poderia ser algo mais. E é neste momento, então, que começa o problema de A Sonata Perfeita. Isto porque ela tenta acrescentar elementos antes não previstos, mas que considera essenciais, e talvez se perca na junção de tantos adornos.

Profundidade dos personagens de Rose Tremain

Primeiro, veio o desejo de falar sobre o holocausto. Rose Tremain relata como acrescentou à ideia de um relacionamento amoroso entre seus dois personagens os tons sombrios da Suíça durante e após a Segunda Grande Guerra. Afinal, a história dos dois personagens teria se iniciado pouco após o final da guerra conforme o conto original. E, de fato, é bastante interessante ver como a Suíça se posicionou neste momento. Como um país reconhecido pela sua neutralidade portou-se diante das atrocidades da época? Como sua nação viveu também aquele momento e qual foi a herança do período?

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Ela não poderia, contudo, retratar essa experiência sem mencionar o holocausto e sem abordar a dor do período. Assim, além de dar a Gustav um pai oficial, decidiu mudar o personagem de Anton e torná-lo judeu para amarrar os pontos. O grande problema é que essa relação é muito teórica e pouco sentida. Mesmo as cenas que evocariam uma empatia logo se seguem de ações contraditórias que desfazem a sensação de identificação com os personagens, seja em relação a Anton ou ao próprio Erich Perle.

Para construir a profundidade de Gustav, transformou, então, a mãe amorosa em uma mãe ressentida, incapaz de amar seu filho e marido. Transformou-a em uma mulher amargurada, primeiro pelas condições de vida antes do casamento e depois pela frustração nos interesses do casamento pela perda de um filho, pela pobreza e assim em diante. E quando você poderia imaginar que a história revelaria alguma profundidade na personalidade de Emilie, ela destrói qualquer chance ao reforçar estereótipos.

Estupro como recurso narrativo

Ao final, esses outros elementos tomaram tanto espaço que o relacionamento entre Anton e Gustav parece perdido. Não há tempo de amadurecimento. A parte final é corrida. Apenas nas últimas páginas de A Sonata Perfeita a autora retoma a ideia do casal principal. O que poderia ser, então, um livro que despertasse tantos sentimentos perde-se no desenvolvimento de crianças ainda descobrindo o mundo.

Anton permanece na imagem de um menino mimado e inseguro. Ele é egoísta e a própria autora reconhece isto. Gustav, por outro lado, é mais profundo. Ele precisa superar obstáculos e é, então, abraçado pela família de Anton. Precisa enfrentar as adversidades, como a falta de dinheiro, a falta de amor da mãe e, enfim, uma tentativa de estupro de vulnerável, um recurso perigoso se a autora não trabalhar bem e que pode parecer apenas um recurso de venda. “Ah mas isto acontece o tempo todo”. É importante que se traga o abuso, o assédio e o estupro, que se evidencie que meninos também podem ser vítimas de violência sexual, mas não como meio de ser mais um drama em um retalho de dramas comercializados. 

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Apesar disso, o evento tem um papel importante ao colocar Anton como aquele que auxilia Gustav na superação do trauma. Mas seria necessário colocar essa experiência e pouco trabalhá-la? E mais do que isso, a gratidão não se transforma automaticamente em amor. Dessa forma, qual foi realmente a intenção da autora ao adicionar esse episódio à história?

Conexão entre diferentes elementos da história

Talvez, contudo, não fosse necessário mencionar nada disso de forma não tão positiva. E pode ser até que a história emocionasse ainda mais se não houvesse mais dois problemas. Talvez, não fossem eles, a resenha fosse mais positiva. Infelizmente, todavia, os elementos da história fazem parte de um todo e é esse todo que parece não comover como talvez se pretendesse.

Cada parte de A Sonata Perfeita parece pertencer à uma história distinta, por isso a crença de uma colcha de retalhos. E a mais destoante, sem dúvidas, é a história de Emilie e Erich Perle. Erich Perle é, inicialmente, retratado como um herói, e apesar de tudo o que ele fez, ainda é retratado, ao final, como um herói – mas foi um marido terrível. Não se pode ignorar que ele agride sua mulher e é responsável por um aborto, por pior que ela seja, isto sem falar nas agressões verbais que ele lhe desfere. Emilie podia ser descrita como tonta e alienada, mas isto não dava direito ao personagem de fazer o que fez. E ele ainda termina a história como “um homem maravilhoso” porque ajudou os judeus. E sua morte é a pior “surpresa” do livro, porque, negativamente, não é nada do que se espera. 

A Sonata Perfeita: um romance sensível ou um romance comercializável?

Junto a isso vem uma construção polêmica de personagens femininas. Praticamente todas as personagens são sexualizadas de alguma forma. A exceção é a vizinha de Gustav, cujo papel é ser a mãe que ignora a pedofilia do filho. A descrição das características físicas das personagens femininas, por exemplo, parecem mais importantes que as dos homens, visto que são utilizadas para o interesse sexual de personagens masculinos. Chega-se ao absurdo do “bom homem”, em uma cena, desrespeitar sua esposa e seus convidados, embriagando-se e falando de sua atração pelos atributos físicos de uma das mulheres presentes. Se ele de algum modo foi retaliado pelo seu discurso? Não, inclusive envolveu-se amorosamente com a mulher em questão, uma mulher descrita como “ávida por sexo”, em uma narrativa que não é clara entre a liberdade sexual e a sexualização como recurso literário.

Era de se esperar que, com tantos temas delicados, o livro, pelo contrário, despertasse lágrimas e reflexões sobre o período, as condições e a vida dos protagonistas. E o livro tem muitos pontos positivos, sobretudo no que se refere a como Gustav se sente parte da família de Anton. Contudo, é impossível ignorar que a tentativa de inserir tantos temas delicados deu-se de forma desconexa em alguns momentos, sem a profundidade necessária para gerar empatia e sem a construção da relação principal na maturidade dos personagens.


A Sonata Perfeita

Rose Tremain (Autora)

Bruna Miranda (Tradutora)

272 páginas

Darkside Books

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Arte em destaque e edição realizada por Isabelle Simões. Revisão realizada por Gabriela Prado.

Escrito por:

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Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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