Samurai de Olhos Azuis: raça, gênero e vingança

Samurai de Olhos Azuis: raça, gênero e vingança

Samurai de Olhos Azuis é uma animação criada pelo casal americano Amber Noizumi e Michael Green, em coprodução com o estúdio francês Blue Spirit. Lançada em novembro de 2023 na Netflix, a recepção da crítica e do público foi tão positiva que, um mês depois, a segunda temporada já estava confirmada para 2025.

Com oito episódios lindamente animados, acompanhamos a protagonista Mizu (Maya Erskine) em sua jornada de vingança. Sangrento, intenso e com personagens cativantes, Samurai de Olhos Azuis revisita temas clássicos por novas lentes, proporcionando uma viagem intensa ao Japão Feudal.

Era Edo, Japão, século XVII: caminha um samurai

O primeiro episódio começa com o contexto histórico: em 1633, o Japão fechou completamente suas fronteiras para estrangeiros e relações externas. Os cidadãos da época nunca haviam visto um rosto branco ou não japonês. Uma criança mestiça seria considerada menos que humana: desprezível, impura, monstruosa. É nesse cenário que surge a lenda de um espadachim em busca de vingança.

A imagem tem dois planos. Em primeiro plano, vemos uma pessoa de costas, corpo inteiro: está de capa, chapéu estilo oriental largo, uma espada na cintura, A figura olha para o horizonte, onde vemos em segundo plano diversos telhados, uma torre estilo oriental ao fundo, com montanhas atrás e o sol se pondo. O cenário está coberto de neve.
O samurai de olhos azuis | Imagem: Reprodução

A explicação é intercalada com cenas de neve, fogo, ferro sendo martelado e a caminhada do samurai. Mizu, que usa óculos de lentes amarelas, é uma pessoa mestiça – traços asiáticos, mas olhos azuis.

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Impuro por definição, ele busca vingança contra quatro homens brancos que viviam ilegalmente no Japão. Um deles é responsável pela morte de sua mãe, uma prostituta nativa, e também pela sua concepção – “um deles me fez um monstro”, em suas próprias palavras.

Na sinopse, nas imagens de divulgação e no trailer, não fazem questão de esconder o leve “twist” que acontece no primeiro episódio: Mizu é uma mulher que vive secretamente como um homem. Com os papéis de gênero estritos da época, a vida da samurai de olhos azuis é uma transgressão por definição.

Racialidade e estratificação social em Samurai de Olhos Azuis

Os criadores de Samurai de Olhos Azuis revelaram que a ideia da animação surgiu da maior colaboração que já tiveram: sua filha, nascida em 2008. Michael Green é americano, enquanto Amber Noizumi, filha de um japonês vivendo nos EUA, relatou a experiência de ser a eterna estrangeira. Vista como japonesa nos EUA e como mulher branca no Japão, sua história pessoal e a de sua filha mestiça foram um grande motor conceitual.

Histórias focadas em racialidades ambíguas não são novas, mas costumam ter um ponto de vista específico: pessoas com ascendência branca, localizadas em ambientes brancos, ou a experiência de eterno estrangeiro relatada por Noizumi. Samurai de Olhos Azuis apresenta outra perspectiva: uma mulher mestiça desesperada para apagar suas raízes brancas, em um mundo que não só não é centrado na branquitude, mas também a considera monstruosa.

Mizu internalizou profundamente a repulsa por sua herança branca. A era Edo japonesa tinha uma hierarquia social rígida, com samurais e ofícios relacionados à guerra situados no topo. Faz sentido pensar que ela busca a redenção como samurai. Mesmo que não esteja na jornada para conquistar glória pública, é ali que encontra ferramentas para sua autonomia e para lidar com a própria impureza.

Além da samurai de olhos azuis, há outro personagem branco na primeira temporada. Abijah Fowler (Kenneth Branagh), traficante de armas, é o alvo de Mizu. Fowler personifica de forma cruel e sanguinária a Europa colonizadora, ironicamente vivendo enclausurado por ser um monstro branco.

Em determinado ponto, sonhando com a dominação do Japão, ele declara: “dominaremos sua cultura até que vocês pensem que um rosto feio como o meu é mais bonito do que o de vocês“.

O ponto de vista de Samurai de Olhos Azuis oferece uma nova perspectiva sobre a racialização, afastando-se do padrão eurocêntrico. A marginalização e suas consequências são igualmente cruéis em um mundo não branco, mas a subversão do papel comum da branquitude traz, por si só, uma grande provocação.

“Mulheres devem ser práticas”

Mizu é uma mulher disfarçada. Esse fator interessante ganha mais camadas conforme a história avança, já que ela vive como homem desde criança. Pensando novamente na rigidez hierárquica da Era Edo, Samurai de Olhos Azuis oferece uma visão do destino feminino através da riqueza dos outros personagens.

Akemi (Brenda Song) é uma princesa de família nobre que está no meio das negociações maritais. Seu pai tem a palavra final sobre seu futuro, e ela tenta desesperadamente convencê-lo a deixá-la casar com um samurai da região (Darren Barnet) em vez de um nobre desconhecido. Akemi representa o destino da mulher nobre e rica daquela sociedade: conforto, mas nenhuma liberdade.

Akemi, uma mulher japonesa, está de pé ao fundo da imagem. Ela veste trajes típicos de nobreza. Em sua frente, no chão de tatame, tem um baú pequeno fechado. Cinco mulheres estão sentadas à frente de Akemi, com kimonos menos suntuosos. Temos três de um lado e duas do outro, todas olhando atentamente para Akemi.
Akemi, Madame Kaji e suas mulheres | Imagem: Reprodução

Do outro lado da moeda, somos apresentadas a Madame Kaji (Ming-Na Wen) e sua casa de prostituição. A única forma possível de uma mulher ganhar dinheiro é a partir da venda do próprio corpo. Se em um casamento seriam delegadas ao trabalho doméstico, a mulher que não é esposa tem apenas uma saída.

Akemi e Madame Kaji são colocadas como contrastes de uma mesma existência, em que o conforto e a liberdade absoluta são impossíveis nas condições dadas – deve-se trabalhar com o que tem. “Mulheres devem ser pragmáticas“, nas palavras de Kaji.

O gênero de Mizu se torna um fator mais definitivo conforme a história avança e nos familiarizamos com seu passado. Quanto mais intimidade ganhamos com sua história, mais entendemos o peso inescapável de sua vingança.

Aviso: o texto a seguir tem spoilers da história!

Redenção subvertida: o arco de vingança no anime

O quinto episódio da temporada, intitulado “A História do Ronin e da sua Esposa”, revela a gravidade das motivações de Mizu. A história é contada em três tramas paralelas: passado, presente e fábula. Durante uma batalha com uma gangue de mais de cinquenta homens, a samurai de olhos azuis luta como um demônio, mas com as dores de um corpo humano.

Enquanto a batalha acontece, flashes de seu passado são apresentados. Já conhecíamos a morte de sua mãe na infância, a criação por um ferreiro cego, o treino de samurai e seu objetivo. De repente, descobrimos uma camada extra: a mãe de Mizu havia fingido a própria morte, e ao se reencontrarem, ela muda o destino da filha. Sua mãe, uma prostituta viciada em ópio, encontra um marido para Mizu.

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Apesar de nunca ter desejado ser uma esposa – já vetada dessa possibilidade por causa de seu rosto monstruoso – Mizu aceita o casamento para dar uma vida melhor para a mãe. Acompanhamos o florescer de sua relação com o marido (Byron Mann), um samurai desonrado que doma cavalos para os nobres. Acostumados com a dureza da personagem, nos surpreendemos com a progressão amorosa, lenta porém honesta.

A terceira história que se intercala com seu passado e seu presente é a encenação de uma fábula em um teatro de bonecos, contando a história de um ronin e a criação de uma onryō – um demônio de vingança. O entrelaçamento das três narrativas é visualmente belíssimo, com cortes que aumentam a tensão de uma tragédia anunciada e eletrizam a audiência.

Um rosto centraliza a imagem. Mizu, de olhos azuis, expressão furiosa e maquiagem escorrendo pelosolhos, nos encara diretamente.
Mizu, um demônio da vingança | Imagem: Reprodução

No ápice da história de seu passado, Mizu se abre completamente para o marido e eles fazem sexo. Na intimidade da conversa após, ela revela sobre seu passado como homem disfarçado e samurai.

Seu marido se intriga com a premissa e pede para vê-la em ação, para “conhecê-la inteira”. Ao ser dominado por ela em combate, ele se enoja com aquela mulher que luta como homem. Os eventos levam à tentativa de prisão de Mizu, que nunca soube quem a denunciou – se foi sua mãe ou seu marido.

Ela mata todos os soldados e o marido, que havia matado sua mãe. O episódio, além de eletrizante, é uma subversão do clássico arco de redenção. Na disposição de Mizu em viver uma vida “normal”, entendemos como seu ódio se enraizou mais profundamente. Ela não vai dar uma chance para a paz, porque já deu. Foi essa chance, que transformou o que era amor em ódio puro, que a transformou em uma onryō.

O gênero de Mizu se torna um ingrediente tão forte quanto a raça em seu ódio. Seus olhos azuis a condenaram à busca pela vingança, mas as consequências da sua incompatibilidade com o papel de mulher fomentaram sua fúria.

Os futuros possíveis de Mizu em Samurai de Olhos Azuis

A temporada se encerrou de forma grandiosa, retratando o incêndio real que ocorreu no Japão em 1657. Somos surpreendidos quando Abijah Fowler não é morto, mas tomado como refém para levar Mizu para fora do Japão, em busca de suas duas outras vítimas.

O que o futuro reserva para a samurai de olhos azuis? Temos indícios da relação crescente entre Mizu e Taigen (Darren Barnet), mas ela está totalmente focada em sua vingança. Podemos torcer por um arco de redenção e um final feliz, mas é difícil imaginar um demônio entrando em paz. Apesar disso, o caminho para a relação dos dois começou a ser pavimentado.

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A trajetória política de Akemi também traz grandes possibilidades. Sua personagem, que sai de uma princesa ingênua e cresce para uma prostituta e, em seguida, membra da família do shogun, se torna mais dura e focada. Há uma possível promessa de um Japão governado por ela – que declarou em alto e bom tom que deseja, sim, grandeza.

Ao fim da primeira temporada, temos um sentimento claro: monstruosidade ou grandeza não são de nascimento, mas sim frutos do meio.

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Bia é formada em economia, pesquisadora e escritora. Obcecada por internet e cultura, gosta de escrever para entender o mundo. É leitora assídua de todo tipo de ficção, ama debater filmes e faz perguntas sobre quase tudo - pelo prazer de buscar a resposta.
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