Nem princesas, nem bruxas: a representação feminina em Revolutionary Girl Utena

Nem princesas, nem bruxas: a representação feminina em Revolutionary Girl Utena

Revolutionary Girl Utena é um anime que não pode ser facilmente classificado. Lançado em 1997, a série tem óbvias influências de shoujos anteriores como Sailor Moon e Rosa de Versalhes. Entretanto, sua trama complexa, elementos surrealistas e estilo avant-garde tornam o anime único. Durante os seus 39 episódios, a série busca desconstruir os estereótipos que cercam narrativas femininas, criando assim uma história subversiva e acima de tudo, feminista

Um ponto importante sobre Revolutionary Girl Utena é o seu uso de metáforas, simbolismo e alegorias para representar a opressão patriarcal. É a partir cenas simbólicas carregadas de imagens surrealistas que o anime passa a sua mensagem. Isso é bem perceptível quando se analisa o ambiente em que se passa a história: a Academia Ohtori. Com todas as suas hierarquias sociais e arquitetura opressiva, a escola facilmente pode ser vista como uma alegoria para o patriarcado.

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A Academia Ohtori: um microcosmo patriarcal

Utena na Academia Ohtori em Revolutionary Girl utena
Utena na Academia Ohtori (Imagem: reprodução)

Logo no primeiro episódio, somos apresentados a Utena, uma adolescente que decide estudar na Academia Ohtori um internato luxuoso no Japão. O objetivo de Utena é encontrar o príncipe que a salvou quando ela era criança. Tem-se então a primeira subversão do anime: em vez de seguir a narrativa dos contos de fada tradicionais em que os príncipes são os personagens que buscam incessamente por suas princesas, em RGU, é a protagonista feminina que desempenha esse papel.

É notável que Utena passa longe dos moldes das típicas heroínas femininas de romance. A personagem quebra os padrões impostos pela escola ao se recusar a usar o uniforme feminino. Contrariando as normas, ela decide se vestir de uma forma mais masculina, evidenciando a sua não-conformidade de gênero. Além disso, Utena se inspira no príncipe da sua infância, e decide que ela também se tornará um príncipe. Ela deixa bem claro que não pretende ocupar um papel de gênero tradicionalmente feminino, o que causa conflito e desconfiança entre as autoridades de Ohtori.

É sob essas circunstâncias que Utena conhece Anthy Himemiya, uma garota na escola conhecida como a “noiva da rosa”. Anthy é aparentemente uma jovem indefesa, vítima de bullying pelas outras garotas e agredida fisicamente pelo seu noivo, Saionji. No entanto, o fato mais chocante sobre a personagem é a sua conexão com um torneio de duelos de espadas entre os alunos do conselho estudantil: aquele que vencer o duelo, ganha a mão de Anthy, tornando-a a sua noiva.

Utena e Anthy na academia Ohtori em Revolutionary Girl utena.
Utena e Anthy na Academia Ohtori. (Imagem: reprodução)

O senso de justiça de Utena a faz defender Anthy das violências que a jovem sofre, mas a protagonista também acaba se emaranhando nos jogos de dominação e poder ao competir e ganhar em um dos duelos. Para o choque de Utena, Anthy se torna a sua noiva e passa a obedecer tudo que Utena diz. O que parece ser uma premissa para um anime yuri possivelmente meia boca, ganha proporcões inesperadas ao longo dos episódios, a medida que segredos sobre a misteriosa noiva da rosa são revelados.

Esse é o ponto crucial de Revolutionary Girl Utena: nem tudo é o que parece. Anthy não é apenas uma garota indefesa. Utena nem sempre consegue ser a heroína que ela acredita que deve ser. E o príncipe não salva garotas pela sua benevolência. Todas as personagens do anime existem tridimensionalmente e não podem ser reduzidas a estereótipos e convenções de gênero, especialmente as personagens femininas.

As princesas e as bruxas

Revolutionary Girl Utena também explora metaforicamente a dicotomia entre princesas e bruxas. Em uma determinada cena, uma personagem comenta que garotas que não podem ser princesas estão destinadas a se tornarem bruxas. Essa acepção revela como as mulheres são tratadas em Ohtori: se elas seguem os padrões sociais e se comportam como é esperado de uma mulher em um mundo patriarcal, elas serão princesas. Já aquelas que fogem dos padrões e quebram regras, são vistas como bruxas, e condenadas a serem perseguidas por seus pares. 

Talvez as melhores representações dos dois extremos dessa dicotomia sejam as personagens Nanami Kiryuu e a própria Anthy Himemiya. Nanami é uma das garotas mais populares na Academia Ohtori; ela é a irmã mais nova de Touga Kiryuu, o presidente do conselho estudantil; é rica e mimada, e anda cercada de seu grupo de amigas bajuladoras, que sempre seguem suas ordens. Além disso, ela se adequa ao que o patriarcado espera do comportamento das mulheres, e por isso, não é uma bruxa. 

Nanami Kiryuu, Revolutionary Girl Utena
Em Revolutionary Girl Utena, Nanami Kiryuu é uma típica “mean girl”. (Imagem: reprodução)

Em contrapartida, Anthy é considerada uma garota “estranha”. Seu comportamento reservado e solitário, seus hábitos peculiares (ela cria lesmas de estimação!), além do fato de ela ser o objeto de desejo e conquista de vários garotos em Ohtori faz com que ela seja odiada pelas outras garotas da escola. A forma pela qual ela é perseguida pelas alunas populares (incluindo Nanami) muito se assemelha a uma caça às bruxas.

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É importante ressaltar que a dicotomia princesa-bruxa não é fixa. Assim como o patriarcado impõe rótulos a mulheres arbitrariamente, o mesmo acontece em Ohtori. O primeiro comportamento não aprovado pelas regras machistas da escola pode fazer com que uma garota se torne uma bruxa aos olhos dos outros estudantes. Portanto, as personagens femininas de Revolutionary Girl Utena navegam identidades sociais instáveis em um ambiente hostil à própria feminilidade.

Todas as garotas em Revolutionary Girl Utena são como a noiva da rosa

Em uma conversa com Utena no episódio 37, Anthy comenta que todas as garotas são como a “noiva da rosa”. Com isso, ela usa o seu próprio título – símbolo da sua misoginia que ela sofre – para universalizar as experiências de outras mulheres sob o patriarcado. O objetivo de Anthy não é dizer que todas as garotas são oprimidas da mesma forma. Ela apenas observa que, sob o domínio patriarcal da Academia Ohtori, qualquer poder adquirido por uma mulher é condicional.

Nanami exemplifica bem essa linha tênue pela qual as personagens femininas do anime caminham. Em um dos episódios mais hilários do anime, ela encontra um ovo na sua cama ao acordar. Confusa, a menina passa a acreditar que foi ela quem pôs o ovo. Logo se sente envergonhada, por achar que por ovos seja algo inapropriado que garotas não devem fazer. Suas suspeitas são confirmadas quando seu irmão Touga diz que a única razão pela qual eles moram juntos é o fato de Nanami não ser o tipo de garota que põe ovos. Angustiada, Nanami se sente ainda mais pressionada a esconder o ovo de todos ao seu redor. 

O ovo que Nanami encontrou em sua cama.
O ovo que Nanami encontrou em sua cama. (Imagem: reprodução)

De um ponto de vista literal, o episódio é nonsense do começo ao fim. No entanto, quando analisado simbolicamente, percebe-se que ele instiga discussões interessantes sobre a experiência feminina. O ovo, por exemplo, pode ser interpretado como uma metáfora para a puberdade, a sexualidade feminina e até a menstruação. A vergonha sentida por Nanami revela a repressão imposta a mulheres em relação aos seus próprios corpos. 

Desse modo, até mesmo Nanami, que está no topo da cadeia social de Ohtori, ainda é vítima do sistema patriarcal. Seu maior medo é se tornar uma pária social, como Anthy, justamente porque ela sabe que é uma realidade possível. Por essa razão ela é tão cruel com Anthy: seu modo de agir é um reflexo do papel instável que ela ocupa na hierarquia da escola.

Escapando de Ohtori

Enquanto permanecem dentro dos muros da academia Ohtori, as personagens femininas de Revolutionary Girl Utena estão sujeitas aos mais diversos tipos de violências patriarcais. Infelizmente, a protagonista Utena não escapa desse destino. Em Ohtori, Utena descobre que o príncipe que ela buscava desde a infância não passa de uma ilusão. Sua verdadeira identidade é Akio Othori, o presidente interino da escola e irmão mais velho de Anthy.

Akio é o mais próximo de um vilão propriamente dito no anime. Seu relacionamento com Anthy rapidamente se revela problemático: ele abusa sexualmente da irmã, além de manipulá-la constatemente. Quando percebe que Utena e Anthy estão aos poucos se apaixonando e que Anthy confia cada vez mais em Utena, Akio foca sua atenção na protagonista. Utilizando-se de sua identidade de príncipe para a sua vantagem, ele seduz Utena e momentaneamente a faz questionar suas prioridades. Entretanto, Utena consegue perceber a verdadeira natureza de Akio, e decide salvar Anthy do ciclo de abuso perpetuado por seu irmão.

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Em um momento de percepção, Utena também reconhece que ela não precisa ser um príncipe. Afinal, o papel que um príncipe exerce no universo de Ohtori é extremamente patriarcal. Assim, em vez de salvar Anthy impondo a sua própria vontade, Utena entende que cabe apenas a Anthy tomar sua própria decisão. Somente em razão do livre arbítrio de ambas as garotas, que elas podem escapar da academia Ohtori.

O filme Adolescence of Utena, lançado dois anos após o fim da série, mostra essa escapatória de forma um tanto literal. Em uma sequência de ação surrealista, Utena se transforma em um carro, que é conduzido por Anthy para fora de Ohtori.

Anthy dirige o carro que simbolicamente representa Utena em Adolescence of Utena.
Anthy dirige o carro que simbolicamente representa Utena em Adolescence of Utena. (Imagem: reprodução)

Livres da prisão metafórica que é a Academia Ohtori, as garotas celebram a sua fuga bem sucedida se beijando do lado de fora. O beijo representa um novo começo para Utena e Anthy, longe dos valores patriarcais e da heteressexualidade compulsória que as cercavam na escola. Finalmente, elas fazem a sua revolução.

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Formada em Letras, mestranda em Literatura. Grande apreciadora do surreal, do fantástico e do onírico. Passa boa parte do seu tempo livre pensando e escrevendo sobre mulheres fictícias.
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