[LIVROS] As Boas Mulheres da China: As vozes ocultas das mulheres chinesas (Resenha)

[LIVROS] As Boas Mulheres da China: As vozes ocultas das mulheres chinesas (Resenha)

Xinran se tornou locutora de rádio em Nanquin em uma China pós a abertura diplomática de Deng Xiaoping. Em 1989, no mesmo ano em que Pequim testemunharia as fortes repressões à manifestações pró-democracia, ela passou a ser a apresentadora de um programa noturno em uma emissora estatal. O programa “Palavras na brisa noturna” logo se tornaria um fenômeno de audiência, principalmente entre o público feminino. Mulheres de muitos lugares do país podiam se relacionar com as histórias que Xinran contava no programa e não demorou muito para que as cartas chegassem em maior número a cada semana, cada uma contendo histórias de mulheres que não tinham mais ninguém com quem dividir seus pensamentos, medos e vivências. Apesar da forte censura e burocracia da emissora para a qual trabalhava, Xinran foi capaz de abrir um espaço em seu programa para contar as histórias dessas mulheres e o livro As Boas Mulheres da China, escrito após sua emigração para a Inglaterra, compila quinze dessas histórias.

Contando com uma linguagem jornalística simples, Xinran se coloca como personagem investigadora, carregando a leitora consigo em suas viagens e encontros com as outras mulheres para testemunhar suas histórias, que de outra forma estariam perdidas e ocultas. 

As histórias abordam diversos temas de difícil digestão, como abuso infantil, estupro, casamento forçado e suicídio. A princípio, Xinran se coloca como uma jornalista ingênua, que sabia muito pouco sobre a vida das mulheres chinesas. Ela até abre uma linha telefônica para o público, o que gera diversas situações complicadas por conta da censura vigente sobre diversos assuntos, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

“(…) As boas chinesas são condicionadas a se comportar de maneira meiga e dócil, e levam esse comportamento para a cama. O resultado é que os maridos dizem que elas não têm sex appeal e as mulheres se submetem à opressão, convencidas de que a culpa é delas. Têm que arcar com a dor da menstruação e do parto e trabalhar como homens para sustentar a família quando o marido não ganha o suficiente. Os homens penduram fotos de mulheres bonitas acima da cama para se excitarem, enquanto as esposas se culpam pelo corpo desgastado que têm. E em todo caso, aos olhos dos homens não existe isso de boa mulher.” 

Entretanto, Xinran também se mostra uma excelente ouvinte para as histórias dessas mulheres e conforme sua pesquisa avança, seu domínio sobre a arte de contar essas histórias também aumenta. Mesmo que os textos muitas vezes sejam extremamente cruéis, são necessários para o entendimento da vivência de uma parcela da população chinesa que teve suas vozes silenciadas por séculos de opressão patriarcal.

As Boas Mulheres da ChinaMulheres chinesas. Foto por Daniel Frauchiger

A revolução chinesa, assim como outras ao redor do mundo, falhou em conquistar a igualdade entre homens e mulheres, muitas vezes panfletada como um dos objetivos dos revolucionários, o que nos mostra que a cultura patriarcal muitas vezes transcende o sistema econômico vigente, principalmente quanto todos os cargos de poder continuam a ser mantidos apenas por homens.

Uma das características do regime chinês foi a limitação da liberdade sexual de seus cidadãos, assim como a criminalização de comportamentos indesejados pelo governo, como a homossexualidade e coabitação, pois o principal objetivo da família tradicional nuclear era gerar e criar mais mão de obra. Nessa época, casamentos por conveniência eram os mais comuns e a criação dos filhos muitas vezes eram delegadas a terceiros.

Uma das histórias de As Boas Mulheres da China fala sobre um desses casamentos arranjados. Uma jovem militante é forçada a se casar com um membro do alto escalão do partido; ela conta a Xinran a história de uma vida sem amor ou respeito, o que acabou por minar sua auto-estima e amor próprio.

O conceito de amor é tratado diversas vezes no livro, sendo uma das passagens mais memoráveis a conversa que Xinran tem com uma jovem universitária que oferece sua companhia a homens em troca de dinheiro (não necessariamente sexo), na qual ela ouve a jovem dizer:

“Certa vez li um livro sobre o amor que dizia o seguinte: ‘Um leão faminto comerá um coelho se não encontrara coisa melhor, mas depois de haver esmagado o coelho, vai abandoná-lo para caçar uma zebra…’ O trágico é que tantas mulheres aceitam o julgamento dos homens que dizem que elas são más.”

Mesmo que a personagem diminua a importância de se sentir amada, As Boas Mulheres da China deixa claro que, apesar de tudo, a busca e o desejo pelo amor e pelo conforto familiar não abandonou completamente essas mulheres. Enquanto narra as história de outras mulheres, Xinran é forçada a confrontar o seu próprio passado com uma família pouco afetuosa e como vítima de violência ligada às políticas do governo, outro assunto bastante retratado no livro.

Apesar de As Boas Mulheres da China tratar especificamente das mulheres chinesas, é evidente que o público-alvo são as leitoras ocidentais. É importante lembrar que o ocidente enfrenta os mesmos problemas narrados no livro. Ainda hoje o casamento por conveniência, principalmente de mulheres muito jovens e em situação de risco, acontece em países como o Brasil, Estados Unidos e Inglaterra.

Mesmo em áreas urbanas, o casamento infantil é uma realidade em diversos lugares do ocidente que também enfrenta seus próprios problemas relativos à violência contra a mulher, assim como noção de “boa mulher” é um dos pilares da moral social moderna em praticamente todos os lugares do planeta e talvez o livro sirva como um conto de alerta, ou como um espelho que nos faça refletir sobre a suposta liberdade da qual usufruímos. 

Observações e curiosidades

As Boas Mulheres da China foi escrito na década de 1990, embora tenha sido publicado no início dos anos 2000, e talvez por isso ainda utilize de termos que já caíram em desuso como “homossexualismo”. A autora ainda escreveu outros livros sobre as mulheres da China, como “As filhas sem nome” e “Mensagem de uma mãe chinesa desconhecida” que foram traduzidos para o português e editados no Brasil pela Companhia das Letras.

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Conclusão

As Boas Mulheres da China termina em aberto, pois a vida de Xinran seguiu para longe da rádio e longe das mulheres com as quais compartilhou das histórias. Como dito antes, o livro pode ter um tom deprimente, não aconselhável para leitoras sensíveis aos temas abordados, pois muito pouco de esperança é mostrado e talvez esse seja o ponto mais negativo da obra, mas é importante a leitora observar que Xinran decidiu enxergar sua narrativa como apenas um dos lados da história das mulheres chinesas, desse breve período do século XX. Recomendamos muito essa leitura!


As Boas Mulheres da China

 

As Boas Mulheres da China

Xinran

252 páginas

Companhia das Letras

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Escrito por:

46 Textos

Formada em Comunicação Social, mãe de um rebelde de cabelos cor de fogo e cinco gatos. Apaixonou-se por arte sequencial ainda na infância quando colocou as mãos em uma revista do Batman nos anos 90. Gosta de filmes, mas prefere os seriados. Caso encontrasse uma máquina do tempo, voltaria ao passado e ganharia a vida escrevendo histórias de terror para revistas Pulp. Holden Caulfield é o melhor dos seus amigos imaginários.
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