Quando a representatividade leste-asiática dá certo

Quando a representatividade leste-asiática dá certo

Embora o leste asiático – China, Coreias, Japão, Taiwan, entre outros – esteja em contato com o Ocidente há séculos, os estereótipos permanecem como principais representações de pessoas e culturas tão diversas, em vários meios de comunicação. Whitewashing e yellowface são práticas recorrentes porém duramente criticadas; na primeira, atores brancos interpretam personagens asiáticos, sem qualquer caracterização, e na segunda, são grosseiramente maquiados para parecerem orientais (colocando fita crepe nos cantos dos olhos, por exemplo).

Praticantes de artes marciais, monges budistas, donos de restaurantes, nerds da informática e garotas super tímidas usando saias pregueadas são a maioria dos papéis conseguidos por atores amarelos. Mesmo nas animações, poucos são os personagens com traços orientais – quando isso ocorre, é de forma desrespeitosa, com dentes avantajados ou olhos desenhados com apenas riscos.

Vários são os exemplos desses erros de criação. Em Duff (The Duff, 2015), o professor responsável pelo jornal da escola é um homem asiático de meia-idade que carrega um ar de nerd socialmente fracassado; na famosa saga Harry Potter, a única asiática é Cho Chang, uma garota boazinha que pertence à casa dos inteligentes; em A Escolha Perfeita (Pitch Perfect, 2012), a colega de quarto da protagonista é uma menina asiática que só tem amigos de sua etnia e é bastante antissocial e rude com a colega branca. Mais marcante ainda, no entanto, é o fato de que a maioria dos filmes simplesmente não tem qualquer personagem amarelo.

representatividade
Na imagem: Cho Chang – única asiática de Harry Potter

Porém, tão importante quanto mostrar os erros é valorizar os acertos. Por isso, trouxemos personagens asiáticos que tentam ao máximo se afastar dos estereótipos e trazem aos filmes, séries e desenhos animados, o agradável frescor da diversidade.

Desenhos animados

De maria-chiquinhas compridas e sorriso fácil, Hay Lin é a protagonista chinesa de W.I.T.C.H., programa transmitido pelo extinto canal Jetix, que trazia as aventuras de cinco amigas adolescentes e bruxas. Embora apegada às tradições de sua família, Hay Lin não tem personalidades nem ações que se justificam por sua ancestralidade, mas por seu passado individual.

Também dentro do mundo da fantasia infantil, Jake Long: o Dragão Ocidental, da Disney, é um garoto animado, comunicativo e distraído. Na história, ele tem o poder de se transformar em um dragão e luta contra um grupo de caçadores para salvar as criaturas mágicas que vivem em Nova York. Protagonista forte, Jake faz de tudo em prol do que acredita e de quem ama.

Em outro universo, dessa vez criado pelo Cartoon Network, Juniper Lee, do desenho homônimo, é uma Te Xuan Ze, guardiã que mantém o equilíbrio entre o mundo dos monstros e o dos humanos na Baía das Orquídeas. Descolada e atrapalhada, June precisa conciliar seu trabalho místico e sua vida cotidiana; alguns elementos da cultura chinesa aparecem no enredo, mas a protagonista carrega praticamente apenas a aparência e o sobrenome.

Ainda no Cartoon Network, Ukibe Nokome é a número 3 em KND: A Turma do Bairro, cuja história trata de uma organização secreta formada por crianças que lutam contra adultos autoritários. Número 3 gosta de bichos de pelúcia e usa agasalhos compridos demais para seu corpo, dando-lhe um ar ainda mais infantil. Apesar disso, ela é corajosa e defende seus amigos, indo além do estereótipo de asiática fofa.

É importante notar que tanto Hay Lin, que é intimamente ligada à sua ancestralidade, quanto Juniper, que não tem hábitos relacionados às suas tradições (com exceção de elementos relacionadas à magia), são bons exemplos de representatividade não pelas relações com suas origens (que são quase opostas), mas porque suas personalidades e sua importância na história não se restringem à sua etnia. O objetivo não é necessariamente negar tradições, mas garantir que não sejam a única justificativa para as ações que irão se desenrolar.

Jackie Chan, por exemplo, ator e inspiração para o desenho do Disney XD e do Cartoon Network, é conhecido pelas sequências de lutas marciais e pelas tramas carregadas de símbolos milenares chineses. A forma como esses elementos são colocados na animação, entretanto, é muito respeitosa e delicada, sem sarcasmo ou zombaria.

A principal referência em personagens asiáticos, com certeza, é Mulan, heroína do filme, de 1998, da Disney. Baseado em uma lenda chinesa, a história de uma mulher que, para salvar seu pai, veste-se de homem e entra no exército durante uma guerra contra os hunos, gerou a primeira asiática a se unir ao seleto grupo de princesas da gigante do cinema.

Ao mesmo tempo em que é profundamente ligada à sua cultura, Mulan quebra as expectativas que a sociedade tem sobre ela – não por desrespeito, mas por amor. Corajosa e decidida, a jovem guerreira segue seu coração e não trai sua intuição em nenhum momento, colocando inclusive os valores de sua família como fatores importantes. Ela equilibra ascendência e personalidade própria, sendo uma personagem complexa e esférica, uma das mais bem construídas da Disney.

representatividade
Mulan – uma personagem para além da superficialidade

Televisão

Lucy Liu interpreta a Dra. Joan Watson na série Elementary, da CBS. Parceira do excêntrico Sherlock Holmes, Watson é perspicaz, comunicativa e inteligente. Sua ascendência é mencionada quase que exclusivamente quando se trata da sua relação com a mãe, e a série nunca usa esse elemento como razão para qualquer atitude da personagem.

A atriz sino-americana também é conhecida por seu papel em As Panteras. Alex, uma das três protagonistas, não tem uma construção particularmente ruim: piadas sobre seu fenótipo ou qualquer coisa do tipo não fazem parte do roteiro, mas a forte objetificação à qual tanto ela quanto suas parceiras são submetidas faz com que passe longe de um bom exemplo de representatividade.

representatividade
Na imagem: Lucy Liu como a Dra. Joan Watson

Leia também:

>> [LIVROS] A Quinta Estação: A importância da representatividade dentro da ficção científica

>> [GAMES] Overwatch: O impacto da representatividade feminina na indústria de jogos

>> [ANIME] Hourou Musuko: A importância da representatividade trans nos animes

Além de Watson, outra médica asiática digna de nota é Christina Yang, de Grey’s Anatomy, exibida pelo canal Sony. Interpretada por Sandra Oh, Christina é autora de uma frase muito famosa nas redes sociais, na qual afirma que o cérebro merece mais elogios do que a beleza física. Autoconfiante e forte, a Dra. Yang não deixa espaço para nenhuma zombaria relacionada a sua etnia.

Apesar dessas protagonistas incríveis, a realidade é que à maioria dos atores asiáticos restam apenas os papéis coadjuvantes, o que não os impede de roubarem a cena em vários momentos. Margaret Cho é Terri Lee, secretária e amiga da advogada Jane em Drop Dead Diva. Na comédia, Terri usa roupas um pouco esquisitas e tem alguns comportamentos estranhos; apesar disso, é uma personagem espirituosa, divertida e muito leal à Jane. Em um elenco majoritariamente caucasiano, Margaret Cho se destaca não só pelo seu fenótipo, mas principalmente pelo seu trabalho genial.

representatividade
Na imagem: Margaret Cho como Terri Lee

Entre os homens, Conrad Ricamora interpreta Oliver, um hacker que se relaciona com um dos protagonistas, Connor, em How to get away with murder. De ascendência filipina, Oliver é um personagem importante por viver um relacionamento homoafetivo interracial com um caucasiano (a homossexualidade ainda é um tabu em muitas comunidades asiáticas), além de, assim como outros mencionados anteriormente, não ter sua etnia como um fator decisivo em sua caracterização.

Vincent Rodriguez, também descendente de filipinos, dá vida a Josh Chan, interesse amoroso de Rebecca em Crazy Ex-Girlfriend. O personagem é interessante porque quebra o preconceito de que asiáticos não seriam sexualmente desejados pelas mulheres ocidentais. Josh é carismático, popular e descolado, sempre rodeado de amigos.

No remake da série policial Hawaii Five-O, o tenente Chin Ho Kelly e a oficial Kono Kalakaua, vividos por Daniel Dae Kim e Grace Park, são hawaianos e ótimos personagens, mas são coadjuvantes, o que cria a problemática de que mesmo em uma série que se passa no Hawaii, estado em que quase 40% da população tem origem asiática, são os brancos os protagonistas.

representatividade
Na imagem: Chin Ho Kelly e a oficial Kono Kalakaua, por Daniel Dae Kim e Grace Park

E no Brasil?

Na Turma da Mônica encontramos alguns personagens asiáticos, todos nipodescendentes. Nimbus é um menino curioso que sonha em ser mágico; Do Contra, seu irmão, faz jus ao apelido ao contrariar tudo o que lhe dizem; Hiro, amigo de Chico Bento, é inteligente e simpático. Os três são bem construídos e têm mais destaque na versão adolescente. Sua origem raramente é mencionada, e são tratados como iguais pelos amigos.

Na TV, após a polêmica da novela Sol Nascente, na qual a temática japonesa contava com apenas quatro atores de fato orientais, a Globo criou Malhação – Viva a Diferença, em que Ana Hikari interpreta Tina, a primeira protagonista asiática da televisão brasileira. Uma garota bem resolvida, aberta e decidida, que é influenciada pela sua origem, mas de forma coerente e justificada. A personagem é muito elogiada pelo público, principalmente pelos jovens brasileiros com ascendência leste-asiática, que são menos de 1% da população nacional.

representatividade
Na imagem: Ana Hikari como Tina

A criação de um bom personagem passa por atribuir-lhe características que sejam justificadas de forma coerente ao longo de seu desenvolvimento na narrativa; afirmar que a personalidade se construiu única e exclusivamente devido a sua ascendência étnica, é raso e inválido. Da mesma forma, criar um personagem asiático com a pretensão de utilizá-lo como alvo de chacotas por sua origem, é grosseiro e preconceituoso. É muito importante que os autores sejam respeitosos ao inserirem culturas que não lhes pertencem em seus trabalhos, de forma a não só evitarem ofensas como a representarem de forma digna todas as etnias.

Texto publicado originalmente em Sala 33.

Autora convidada: Júlia Mayumi é repórter da Jornalismo Júnior, empresa da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Gosta de séries de comédia, de aprender sobre qualquer coisa e de pizza com ketchup. Seu livro favorito é Americanah (Chimamanda Adichie) e acha que o mundo seria um lugar melhor se todo mundo fosse dormir pensando em duas coisas do dia pelas quais é importante agradecer.

Escrito por:

232 Textos

Site sobre cultura e entretenimento com foco em produções feitas e protagonizadas por mulheres.
Veja todos os textos
Follow Me :