Coral e Outros Poemas: a natureza feminina e pagã

Coral e Outros Poemas: a natureza feminina e pagã

Falar sobre Sophia de Mello Breyner Andersen é evocar o mar em suas tantas formas e metáforas. Em Coral e Outros Poemas, a autora ramifica o próprio ser em versos que transmitem à leitora, de forma sinestésica, a natureza ancestral que nela vivia.

Quando eu morrer voltarei para buscar

Os instantes que não vivi junto ao mar

(Inscrição, pág. 180)

A poesia de Sophia de Mello Breyner Andersen transita entre a sobriedade da palavra pura e a complexidade de pensamentos que ressoam muito após o desfecho do poema. Tendo o mar como figura recorrente na maioria de seus versos, nota-se o carinho da autora pelas porções de água azulada de seu país natal, Portugal. De forma hipnótica, Sophia convida a leitora a embarcar em uma viagem pelo seu interior, sem barco ou remo, apenas munida de palavras e figuras de linguagem que purificam e ricocheteiam os rochedos das significações.

Sobre a autora

Coral e Outros Poemas

Sophia (1919 – 2004) nasceu em Lisboa, Portugal, e além da vasta obra poética que deixou em vida, também foi autora de contos infantis, peças teatrais, ensaios e traduções de autores clássicos como Dante Alighieri e William Shakespeare. Atuou na área política, indo contra o regime ditatorial de Salazar, e também foi eleita para a Assembleia Constituinte como uma das representantes do Partido Socialista (contrariando o próprio marido, que seguiu para o Partido Democrata). Sophia foi a primeira mulher a receber o prêmio literário mais importante da língua portuguesa, o Prêmio Camões. 

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A mulher ancestral e o culto à natureza

Na maioria dos poemas da autora, o eu lírico feminino narra sua conexão com o mar e todas as criaturas marinhas de forma que sejam enxergados como uma unidade. Os versos que desenham as ondas do mar ou os corais que dormem no silêncio inalcançável do fundo das águas fluem como uma prece. Afrodite, Morgan ou até mesmo Iemanjá são deidades ligadas aos mistérios dos oceanos: Sophia conversa e baila com o elemento água como se conversasse com uma divindade acessível, palpável e exala a força da fé de diversas mulheres através da conexão com o que há de mais puro na natureza.

O mar purifica, traz paz e leva para longe os problemas do mundo moderno, em uma tentativa de reconexão com o que foi perdido há eras, mas que ainda ecoa em corações e rituais cotidianos. As árvores, o sol, o céu e os animais fornecem ao eu lírico o que as construções contemporâneas destruíram em sua ascensão.

As amarras de um mundo que, ao passo que progride, regride em pureza, sufocam as mulheres, constantemente em busca de ar puro – da praia ou dos campos – para desanuviar a mente barulhenta, o coração dolorido e as feridas da alma. Elementos fantásticos, como sereias, e também da mitologia grega e religião cristã são abordados em sua lírica.

Coral e Outros Poemas
FOTO: Milos Prelevic / Unsplash (reprodução)

No fundo do mar há brancos pavores,

Onde as plantas são animais

E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge

A agitação das ondas.

Abrem-se rindo conchas redondas,

Baloiça o cavalo-marinho.

Um polvo avança

No desalinho

Dos seus mil braços,

Uma flor dança,

Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa

Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa

Tem um monstro em si suspenso.

(Fundo do Mar, pág. 53)

***

Senhor, dai-me a inocência dos animais

Para que eu possa beber nesta manhã

A harmonia e a força das coisas naturais.

Apagai a máscara vazia e vã

De humanidade,

Apagai a vaidade,

Para que eu me perca e me dissolva

Na perfeição da manhã

E para que o vento me devolva

A parte de mim que vive

À beira dum jardim que só eu tive.

(Reza da manhã de Maio, pág. 73)

O amor trovadoresco

A paixão e o amor romântico são avassaladoras e perseguem o eu lírico que, sentindo-se sozinho, busca a criatura amada em tudo e todas as coisas, chegando até mesmo a anular a própria personalidade; um resquício das cantigas de amigo do período trovadoresco nos primórdios da literatura portuguesa.

Na poesia de Sophia encontram-se os três estágios de uma paixão febril: o conhecer, o desejar e a dor por não mais pertencer/reconhecer quem se ama. A/o amada/a é vista até mesmo como um fantasma que, mesmo não estando mais (ou, até mesmo, nunca) presente, ronda os pensamentos do eu lírico. 

O que foi antigamente manhã limpa

Sereno amor das coisas e da vida

É hoje busca desesperada busca

De um corpo cuja face me é oculta.

(Trevas, pág. 156)

A poesia atemporal e o bucolismo nostálgico

Sophia exprime questões políticas pertinentes à sua época, como o repúdio ao ditatorialismo e consequente repressão, a polarização da sociedade e as mazelas do progresso industrial. Ao passo que discorre acerca dos incômodos que o mundo causa em seu ser, tece com maestria um resgate do mundo que outrora, quando menina, desfrutava sem preocupações. A natureza, mais uma vez, é o berço para o qual (re)corre quando a vida urbana se torna pesada, resgatando os ideais árcades da fuga para o campo.

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda

Mesmo aquela que é importante neste dia em que se invoca o povo

Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio

E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade e como habitar meio quarto

Ganhar meio salário

Como só ter direito

A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade

E o resto joga com habilidade

Porque pensa que o povo só pensa metade

Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade

Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo é preciso expor

Partir do olhar da mão e da razão

Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar

Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto terrestre

– Sob o ausente olhar silente de atenção – 

Para construir a festa do terrestre

Na nudez de alegria que nos veste

(Nesta Hora, págs. 270-271)

As primeiras impressões talvez sejam estas: os versos parecem tocados de mistério e, no entanto, a sintaxe é clara e direta; o tom soa elevado, mas o vocabulário é mais simples; a expressão é clássica, porém decididamente moderna; a aparente atemporalidade entra em tensão com a história e o presente mais circunstancial; se deparamos a perfeição e a beleza, também constatamos que nada é aparato ou ostentação; o leitor sente-se atraído, acolhido, entretanto é apanhado todo o tempo por imagens inesperadas, desconcertantes, que desalinham o conforto e lançam a fruição para uma zona que exige empenho e gosto pelo risco (…).” (Apresentação: Breve percurso rente ao mar, Eucanaã Ferraz)

Sophia de Mello Breyner Andresen escreve de forma que a leitora internaliza o que lhe é dito, de forma direta e acessível. A leitura flui do começo ao fim, e cada novo poema é uma experiência única de representatividade. Coral e Outros poemas, publicado pela Companhia das Letras, traz uma extensa seleção de poemas e prosas-poéticas da autora, escolhidas e apresentadas por Eucanaã Ferraz. Uma voz tão importante como a de Sophia precisa ser reconhecida, assim como a de seus conterrâneos Camões e Pessoa. Leia Sophia de Mello Breyner Andresen! Leia mulheres!


Coral e Outros PoemasCoral e outros poemas

Sophia de Mello Breyner Andresen

Companhia das Letras

390 páginas

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Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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