“Rosário” é um curta-metragem pernambucano escrito e dirigido por Juliana Soares e Igor Travassos. Exibido na Mostra Panorama da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o filme se filia a uma tradição recente, sobretudo nos curtas brasileiros de ficção, que pretende retratar a violência física e simbólica vivenciada por mulheres a partir do retrato cotidiano mais ordinário. Filmes como “Na minha sopa não” (2015), de Mirela Kruel, “Estado Itinerante” (2016), de Ana Carolina Soares, “Tentei” (2017), de Laís Melo, e “Onze minutos” (2018), de Hilda Lopes Pontes, foram grande sucesso de crítica e público por conseguirem comunicar o tema de forma eficiente, sem recorrer ao didatismo, em relação a problemas tão comuns na nossa sociedade e que até bem pouco tempo não eram ditos, discutidos ou suscitados de modo tão aberto.
Rosário é não somente o nome da protagonista do curta, mas também o instrumento de reza que a personagem realiza todos os dias pela manhã, logo após escutar o programa de rádio com as notícias diárias. As mais violentas atrocidades são noticiadas rotineiramente e, como não poderia deixar de ser, a violência contra as mulheres segue sempre em pauta. O interessante da obra é que a protagonista não estará no centro da ação que os realizadores visam enquadrar. A reflexão sugerida ao espectador é a seguinte: o que nós como cidadãos e sujeitos sociais fazemos ou deixamos de fazer para mudar a realidade que nos circunscreve.
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“Rosário” e a violência de gênero retratada no cinema nacional
Ao final do longa-metragem francês “Custódia” (Jusqu’à la garde, 2018), dirigido por Xavier Legrand, uma personagem aparece muito rapidamente convocando a uma intervenção na cena principal. Ao telefonar para a polícia para denunciar a violência marital sofrida pela vizinha e seu filho, uma máxima popular é colocada em xeque: em briga de marido e mulher se mete a colher sim. É sobre essa experiência que “Rosário” vai se debruçar. O curta vai levar para a tela do cinema o debate acerca do papel crucial da testemunha nesses casos. Além disso, muitas vezes as pessoas se abstém de interferir ou se colocar a disposição das vítimas por medo de retaliação ou descrédito, tendo em vista a pungente cultura machista a que todos nós estamos submetidos.
Um dos pontos altos de “Rosário” é conseguir alternar (através da montagem assinada por Maria Cardozo) momentos de leveza e pura contemplação cotidiana, com uma cena que emula suspense, pelo simples fato de uma mulher caminhar sozinha na rua à noite. Aliás, esse gesto imprime uma característica de desolação na própria ideia de liberdade de ir e vir a que todos temos direito, mas que só alguns podem usufruir na sua plenitude.
O que fazer quando nos deparamos com situações de violência de gênero? Como abordar a questão? Como encarar a nova rotina depois do fato? Quais vulnerabilidades serão impostas pelas ações ou omissões diante da cena? Essas são algumas das questões que o roteiro do curta tenta abraçar. Vale notar que muitas dessas indagações se materializam no campo do não dito, do extra quadro, merecendo, portanto, destaque a ótima atuação de Laís Vieira que, através do silêncio, consegue imprimir as sensações vistas na tela.