Coisas que não quero saber: a voz da mulher-sujeito na escrita

Coisas que não quero saber: a voz da mulher-sujeito na escrita

Coisas que não quero saber é um livro de Deborah Levy, prolífica e premiada escritora sul-africana. A obra é uma resposta ao ensaio “Por que escrevo”, de George Orwell, e nela Deborah reflete sobre os motivos que a levaram à escrita.

“É exaustivo aprender a se tornar sujeito, é bastante difícil aprender a se tornar escritora”.  

Em seu ensaio, Orwell enumera quatro razões para que se escreva: objetivo político, impulso histórico, puro egoísmo e entusiasmo estético. Deborah se apropria desses preceitos observando como, e se, eles se aplicam à sua trajetória de escritora e mulher do século XXI. Além da própria escrita, ela reflete sobre a condição paradoxal e exaustiva da mulher na sociedade, a utopia sufocante da maternidade, as permanências do passado e o estrangeirismo de sua própria vida.

A vida como matéria da escrita

As experiências de Deborah se entrelaçam em sua prosa em idas e voltas, hesitações e confissões. Ela escreve de três lugares: da infância solitária e fragmentada na África do Sul, de sua juventude de exílio na Inglaterra e de seu presente, numa primavera muito difícil em Maiorca.

Desde muito nova, Deborah parece se infiltrar nos meandros da linguagem que compõe o “mundo masculino e seus acordos políticos”, que vela opressões e mentiras, transformando-as em cotidianas e normalizadas. Ainda criança, percebe a violência do apartheid e a crueldade intrínseca à sociedade segregada.

“Na escola, quando eu tentava falar, fazia um esforço enorme para minhas palavras saírem alto. O volume da minha voz tinha sido abaixado e eu não sabia como aumentá-lo.”

Quando seu pai é levado como preso político por fazer parte do African National Congress e lutar contra o regime, sua ausência se torna uma espécie de presença fantasmagórica. As situações que a menina vive a partir daí reforçam o desamparo, e o silêncio que precisa manter sobre os fatos de sua vida toma o lugar da voz em sua garganta.

A voz da mulher e o patriarcado

Coisas que não quero saber, Deborah Levy (resenha)

Ela, como mulher, também habita as contradições impostas pelo neo-patriarcado que, como diz, nos deixa correndo atrás de nós mesmas, exaustas, sem saber ao certo o que estamos fazendo errado. Ao refletir sobre papéis “femininos”, como a maternidade e a manutenção do lar perfeito, Deborah descortina a opressão contida nesses ideais, fundados pelas instituições e consciência masculina, e portanto, paradoxais e impenetráveis para as mulheres.

O quão difícil é para uma mulher usar a própria voz? É mais difícil aprender a usá-la para se tornar escritora ou se tornar sujeito? Contrariando Orwell, Deborah demonstra que quando se é mulher, a escrita por puro egoísmo não se aplica. Para as mulheres, a literatura se torna um espaço possível para que se tome posse de si e do que se deseja.

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A literatura e o empoderamento

Os desafios de Deborah em encontrar sua voz como pessoa se entrelaçam aos de se conceber como escritora. Em meio a tantos silêncios e impasses, ela encontrou sua voz e fez dela ferramenta para desmascarar os fatos e colocá-los no mundo. Assim, Deborah lista os fatos de sua vida que conhece muito bem, mas preferiria desconhecer, e a partir disso escreve.

A escrita é a forma da autora de enfrentar a violência social, seus impasses pessoais e construir um espaço para sua voz. No desenrolar de sua jornada, ela entrelaça política, discussão de gênero, exílio, amor e as inúmeras ausências que nunca a abandonam. Assim, nos alerta sobre a importância das mulheres falarem em sua própria voz, desvencilhando-se dos tons, palavras e nomes patriarcais.

“Você acabou de falar em alto e bom som. As mulheres precisam aprender a projetar a própria voz, já que ninguém as escuta mesmo”.

Escrever lhe deu a chance de lidar com as faces do que não queria ver e com o passado que vivia nela, ainda que o rejeitasse. Em Coisas que não quero saber, Deborah parece se encontrar nos paradoxos de sua vida ao transformar a ausência do pai, a violência do apartheid, seu silenciamento e o fingir ser uma escritora, até de fato se tornar uma, em partes importantes de seu trabalho.

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A mulher-sujeito através dos próprios desejos

Escrever, como outros âmbitos da vida, é extremamente diferente para mulheres e homens. Para Deborah, a escrita não é um ofício linear: anotações antigas e esparsas se tornam partes de romances no presente. É em meio a todas vivências, desejáveis ou não, que essa prática fragmentária e trabalhosa lhe permite encarar o que é doloroso saber. Suas memórias são dolorosas mas podem ser combatidas ao serem colocadas no papel.

Deborah Levy é uma escritora prolífica e premiada, mas por aqui segue quase desconhecida. Coisas que não quero saber e o romance Nadando de volta para casa são suas únicas obras traduzidas no Brasil.

“Até a mais arrogante das escritoras precisa se empenhar muito para construir ego robusto o bastante para conseguir atravessar o mês de janeiro”.

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Por último, ela nos deixa uma certeza: é importante que recusemos a aceitação e o apaziguamento silencioso de nossos impasses. O que nos resta a fazer com as coisas que não queremos saber é encará-las e escrever sobre elas. É usar esse teto todo nosso para  encontrar e projetar a própria voz.

“Era provável que fugíssemos também dos nossos próprios desejos, quaisquer que fossem. Melhor rirmos de tudo, não dar tanta importância. A maneira como rimos.

Dos nossos próprios desejos. A maneira como zombamos de nós mesmas. Antes que outra pessoa o faça. A maneira como somos programadas para matar. A nós mesmas.”

Em Coisas que não quero saber, Deborah Levy mostra que é indispensável que nos sintamos merecedoras de nossos desejos e assim estejamos no mundo através do que dizemos, pensamos e queremos.


Edição, revisão e arte em destaque por Isabelle Simões.

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Historiadora e escrevedora de frases longas. Entusiasta de diálogos. Fala de literatura e de história até na mesa do café.
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