A leveza da realização pessoal em “Querida Konbini”

A leveza da realização pessoal em “Querida Konbini”

O que espera-se de uma pessoa adulta, já na casa dos 30 anos? Apesar das construções sociais serem influenciadas pela cultura do país que essa pessoa habita, é comum que algumas expectativas sejam universais. Espera-se que essa pessoa tenha um relacionamento para a construção de uma família e que tenha uma carreira desenvolvida ou em desenvolvimento. Apesar de estarmos em anos onde o normal é ressignificado, tais construções permanecem as mesmas. 

A sociedade cobra uma vida dentro dos parâmetros de “normalidade” e Keiko Furukura, a protagonista de Querida Konbini, de Sayaka Murata, não se encaixa neles. Publicado no Brasil pela editora Estação Liberdade e traduzido por Rita Kohl, o romance foi vencedor do Akutagawa, um dos mais importantes prêmios da literatura japonesa, e retrata o dia a dia de trabalho em uma konbini, no qual Murata descreve a diferença entre Furukura e o resto do mundo. 

O “normal” imutável em Querida Konbini

Uma konbini é uma espécie de loja de conveniência, com serviços diversos e venda de itens específicos do Japão, sejam alimentícios ou não. O trabalho em uma delas é considerado temporário, aceitando muitos jovens universitários que estão na transição para uma vida adulta. Trabalhar em uma konbini, no entanto, é visto como um etapa passageira e não um trabalho sério – e Keiko trabalha em uma há 18 anos.

Assim como a personagem de sua obra, a autora também foi funcionária de uma konbini por longos anos. Nascida em 1979, na província de Chiba, próxima a Tóquio, Sayaka Murata começou a trabalhar enquanto ainda cursava a faculdade. Sayaka almejava uma carreira literária e era o salário que recebia por seus serviços na konbini que a sustentava, além de permiti-la exercer uma atividade útil para escritores: observar as pessoas. Ela ficou no cargo até pouco depois do lançamento do livro e a relação íntima que Murata desenvolveu com o estabelecimento reflete no romance e em sua protagonista (leia aqui a carta que a autora escreveu para a konbini onde trabalhava).

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A autora Sayaka Murata
Sayaka Murata em uma konbini (imagem/foto: The New York Times)

Quando a trama de Querida Konbini inicia-se, Keiko Furukura tem 36 anos. Desde a infância, ela tem problema em se adaptar ao que muitos julgam ser normal. Keiko tem o seu próprio jeito: é pragmática e foca na solução mais fácil para resolver um problema – mesmo que essa solução seja desmaiar uma pessoa para interromper uma discussão -, o que causa estranhamento e dificuldades nas relações pessoais. Seus pais e sua irmã fazem de tudo para “curá-la” e encaixá-la num padrão mais socialmente aceito, mas nenhum médico ou especialista encontra algo de errado em Furukura. 

A mulher passa, então, a reproduzir comportamentos numa tentativa de se adequar às expectativas familiares. Durante seu trabalho na konbini, Furukura age da forma que sua irmã a ensinou e mente para pessoas mais distantes do seu círculo social com a intenção de criar uma percepção diferente da vida que leva. Desse modo, o estranhamento que o mundo sente em relação à Keiko se atenua. 

Os sons da konbini 

O lugar onde Furukura se encontra como pessoa (ou melhor, como funcionária) é na konbini. Foi no trabalho que ela foi ensinada a se portar, como e o que falar e o que fazer. Todos os dias veste seu uniforme e cumprimenta os clientes com um animado “Irasshaimasê!”. A konbini, porém, tem as suas necessidades – precisa ser organizada e limpa e pode ser que os oniguiris tenham esgotado ou que falte bebida nas geladeiras – e Furukura está sempre pronta para atendê-las. Como ela mesma afirma, é dentro da konbini que vira parte do mecanismo do mundo.

“Não me lembro com clareza de como era minha vida antes de eu renascer como funcionária da loja de conveniência.”

Querida Konbini, de Sayaka Murata
Imagem: Editora Estação Liberdade

Antes da konbini, Keiko se escondia do mundo para evitar represálias ou decepções de quem a cercava. Não teve amigos ou amores para compartilhar a juventude. Formou-se, saiu de casa e manteve-se em isolamento, dedicando seu tempo apenas à konbini. Parece uma vida solitária e triste; entretanto, nos primeiros anos foi motivo de muita alegria para sua família. Keiko estava finalmente sendo “normal”.

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Se a Keiko Furukura fechar os olhos, o que ela escuta são os sons da konbini: o sino que toca quando entra um cliente novo, os produtos sendo retirados das prateleiras, a máquina que lê os códigos de barra no caixa. É pela descrição dos sons que Sayaka Murata consegue construir uma atmosfera que não somente transporta a leitora para o ambiente descrito, mas que também personifica o lugar. A konbini e Keiko são protagonistas na mesma medida e em algumas passagens do livro se fundem em um único ser.

A iminente conexão entre Furukura e a konbini

A estabilidade da konbini é fundamental para a estabilidade de Keiko Furukura. Se tudo estiver funcionando como deve na loja, a personagem segue também no fluxo de trabalho que a agrada e acalma. No entanto, a ordem na konbini pode ser perturbada, o que acontece com a chegada de um novo funcionário, Shiraha. 

Descrito como um homem magro “como um cabide” e de olhos fundos, Shiraha não demonstra muito entusiasmo com o serviço na loja de conveniência. Não segue as regras básicas de atendimento mesmo tendo passado pelo treinamento e não trata os clientes com a mesma simpatia que outros funcionários. Shiraha é uma peça irregular e logo é removido da konbini por comportamentos inadequados.

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Contudo, sua relação com a protagonista não termina com a sua saída. Assim como Keiko, descobrimos em poucas páginas que ele é um “desajustado” dentro da sociedade. Não tem um relacionamento amoroso como esperam e não gerou herdeiros apesar da idade. Furukura e Shiraha, então, fazem um pacto de ajuda mútua para, assim, diminuir a pressão que ambos sofrem, mas a convivência entre dois diferentes pode não ser tão fácil assim. 

Por dentro da konbini

Apesar de Sayaka Murata construir Querida Konbini com uma linguagem simples e fluída, não é possível ignorar que o texto traz questões sérias a respeito das construções sociais. Keiko Furukura é, sem dúvidas, uma personalidade distinta, mas é no mínimo confuso quando ela admite se encontrar em um trabalho com todas as características desumanizadoras. Disfarçada nas situações cômicas e até constrangedoras, Murata deixa seu leve comentário à padronização imposta pela sociedade.

Mesmo que Keiko não tenha as mesmas aspirações que muitos de nós, isso não a torna uma personagem menos complexa ou interessante. Furukura tem seu jeito peculiar e suas qualidades, sua dedicação e atenção aos detalhes que a fazem única.

Querida konbini é um exemplar da literatura contemporânea que merece a atenção pela leveza, pela graça, pela crítica e principalmente por Keiko Furukura e seu relacionamento duradouro com a konbini.


Querida Konbini

Autora: Sayaka Murata

Tradutora: Rita Kohl

152 páginas

Editora Estação Liberdade

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Arte em destaque e edição realizada por Isabelle Simões. Revisão realizada por Gabriela Prado.

Escrito por:

Carioca, flamenguista e gateira em tempo integral, projeto de roteirista-escritora nas horas vagas. Pode ser encontrada nas redes sociais comentando sobre literatura escrita por mulheres, cinema de horror ou a última corrida da Fórmula 1.
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