Talvez você não saiba ainda, mas a cantora de “Fidelity”, Regina Spektor, é, na verdade, russa. Da Rússia, à Áustria, à Itália e aos Estados Unidos, ela conquistou fãs ao redor do mundo com músicas que mesclam o folk e um quê de cantigas, letras repletas de metáforas, histórias que reverberam quando ouvimos sem parar as melodias que permanecem na mente. “I hear in my mind all of this music” (“Eu ouço em minha mente toda essa música”).
A saída da Rússia deu-se ainda durante a infância, quando a cantora tinha apenas nove anos. A família, de origem judaica, deixou Moscou, durante a Perestroika, por razões políticas e religiosas. Foi com seus pais, então, que ela começou a entender de notas e canções, já que ambos eram músicos.
Após chegar aos Estados Unidos, Spektor continuou seus estudos. Teve aulas de piano e se interessou primeiro por música clássica antes de aderir a outros estilos, o início da mescla de composições que hoje vemos em suas produções.
Como uma das reportagens sobre sua trajetória aponta: “her beautiful if oblique and surprising songs very often portray an outsider trying to make sense of things” (“suas belas, embora oblíquas e surpreendentes canções, muitas vezes retratam um estranho tentando dar sentido às coisas”), em tradução livre.
Cantora, compositora e storyteller
De fato, tanto as letras quanto os clipes de Regina Spektor nos remetem a um mundo estranho, uma visão contrastante da realidade, em que pinturas ganham vida, como retratado em “All The Rowboats”.
All the rowboats in the paintings
They keep trying to row away
And the captains’ worried faces
Stay contorted and staring at the waves
They’ll keep hanging in their gold frames
For forever, forever and a day
All the rowboats in the oil paintings
They keep trying to row away, row away
–
Todos os barcos a remo nas pinturas
Eles ficam tentando navegar para longe
E as faces preocupadas dos capitães
Ficam contorcidas e encarando as ondas
Eles ficarão penduradas em suas molduras douradas
Não raro, podem-se encontrar referências à literatura, como a Fitzgerald, Hemingway, Virginia Woolf e Margaret Atwood, narrativas bíblicas, todas adaptadas para uma visão única da história. Como revela, então, em uma entrevista:
“I think songwriters are more related to fiction writers, […] The Odyssey was a story in song. To me, that’s so beautiful, all those painted characters, all those travels and adventures” (“Eu acredito que compositores se relacionam com escritores de ficção. […] A Odisseia era uma história em versos. Para mim, isto é tão bonito, todas essas personagens pintadas, todas as viagens e aventuras”), em tradução livre.
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Na canção “Paris“, por exemplo, Regina Spektor fala de uma mulher que poderia ter se estabelecido na cidade parisiense, mas foi conduzida por um homem que lhe tomou a mão e disse que era hora de partir. Sutilmente, contudo, a cantora revela que o desejo de ir é também uma desculpa, algo que repete para si, talvez como justificativa para se deixar levar mesmo diante de tantas mulheres a tentar alertá-la. Até que, enfim, quem sabe até mesmo tragicamente, precisa se confortar na próxima vida.
Margaret Atwood, she could not stop me
Virginia Woolf, she could not stop me
The truth is I wanted to go
He is all I know, he is all I know…
Sweet, sweet forever
I’ll comfort myself in my next life…
–
Margaret Atwood, ela não pôde me parar
Virginia Woolf, ela não pôde me parar
A verdade é que eu queria ir
Ele é tudo que eu conheço, ele é tudo que eu conheço…
Doce, doce eternidade
Vou me confortar em minha próxima vida…
Uma imigrante judia nos Estados Unidos
Diferentemente de outros cantores, as primeiras letras de Regina Spektor revelam pouco sobre sua história. Talvez o álbum que mais revele sobre sua história seja Remember us to life, de 2016. Nele, ela relembra sua história como imigrante em canções que trazem reflexões de forma suave.
Em “Sellers of flowers”, por exemplo, fala do frio, das rosas e dos vendedores, da menina, aquela a segurar a mão de seu pai, que observa essa mundo feito de beleza e de tristeza, e de morte e de vida.
When I was a small girl, I walked through the market
Holding my dad’s hand, mitten-gloved hand
That night there were roses, lit up in glass boxes
The heat lamps would keep them from freezing in winter
We never bought them but somebody must have
Maybe they made it or maybe they froze up
Before any person had put them in water
And hoped that they’d still be alive by the morning
–
Quando era menina eu andava através do mercado
Segurando a mão do meu pai, metade da mão enluvada
À noite havia rosas iluminadas em caixas de vidro
O calor das lâmpadas evitava que elas congelassem no inverno
Nós nunca as compramos, mas alguém deve ter comprado
Talvez elas conseguiram ou talvez elas congelaram
Antes de qualquer pessoa colocá-las na água
Com a esperança de que ainda estivessem vivas pela manhã
É nos pequenos detalhes, portanto, que Spektor deixa sua marca registrada: na escolha de referências, nas notas que mesclam parte de sua origem e nas histórias que ela canta habilmente; uma contadora de histórias através da música.
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A música de Regina Spektor e as referências à religião
Apesar disso, contudo, ela diversifica. Fala sobre amor, sobre temas rotineiros, a vida na cidade, faz sátiras e cria pequenos contos com sua voz.
O tema da religião, por exemplo, fica bastante evidente em “Samson“, uma adaptação da história de Sansão e Dalila. A partir da história bíblica, Regina Spektor também aborda, dessa maneira, sobre amor e sobre fraqueza. Entretanto, descreve, acima de tudo, sobre como se interpretam as histórias e as repassam, esquecendo-se dos detalhes que a constroem.
Samson went back to bed
Not much hair left on his head
He ate a slice of Wonder Bread
And went right back to bed
Oh, we couldn’t bring the columns down
Yeah, we couldn’t destroy a single one
And the history books forgot about us
And the Bible didn’t mention us, not even once.
–
Sansão voltou para cama
Não restou muito cabelo em sua cabeça
Comeu um pedaço de pão amanhecido e
Veio direto para a cama
Oh, nós não conseguimos derrubar as colunas
É, nós não conseguimos destruir nenhuma
E os livros de história se esqueceram de nós
E a Bíblia não nos mencionou
Nem sequer uma vez
Outro exemplo, contudo, da religião em suas letras pode ser visto em “Laughing with”:
No one laughs at God in a hospital
No one laughs at God in a war
No one’s laughing at God
When they’re starving or freezing
Or so very poor
–
Ninguém ri de Deus em um hospital
Ninguém ri de Deus em uma guerra
Ninguém está rindo de Deus
quando está morrendo de fome, congelando
ou muito pobre
Regina Spektor em trilhas sonoras
Amor, inclusive, é um dos temas mais encontrados em suas canções, embora da maneira peculiar de Spektor. Em canções meio faladas, meio cantadas, algo que também herda do hip hop, Regina foi, dessa maneira, responsável por memoráveis canções, algumas das quais integraram a trilha sonora de obras de grande alcance.
Em As Crônicas de Nárnia: Princípe Caspian, esteve presente, por exemplo, nas cenas finais, com a emocionante “The Call”.
It started out as a feeling
Which then grew into a hope
Which then turned into a quiet thought
Which then turned into a quiet word
–
Começou como um sentimento
Que cresceu e se transformou em esperança
Que depois se tornou um pensamento mudo
Que se tornou uma palavra muda
De 11:11 a Remember Us To Life
Como boa parte das cantoras que conhecemos, Regina Spektor também começou sua carreira de forma independente. Os dois primeiros álbuns, “11:11” e “Songs”, não contavam com gravadora, por exemplo. Foi só em 2004, desse modo, com “Soviet Kitsch”, que Regina deu a virada em sua carreira.
“Us”, memorável canção de abertura do filme (500) Days of Summer, pertence a este álbum, ainda que apenas cinco anos depois venha a se tornar mais conhecida. E dois anos depois, enfim, “Begin to Hope”, álbum a que pertence “Fidelity”, abriu novos caminhos para a fama da cantora. Ao todo, foram cerca de duas milhões de vendas.
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Nenhum outro álbum da cantora atingiu tal marca, o que não significa, entretanto, que suas músicas não tenham sido ouvidas. Far (álbum de “Two Birds”) e What we saw from the cheap seats chegaram à 3ª posição nos Estados Unidos. Foi durante o lançamento de Far, inclusive, que Regina abriu os shows da turnê do The Strokes, marcando presença, assim, no cenário musical mundial.
Seu último álbum, enfim, foi Remember us to life, um álbum menos comercial que os anteriores, mas com músicas bastante sensíveis. Desde então, Spektor marcou presença em telenovelas brasileiras, com “Fidelity” em A Favorita, e aberturas de séries norte-americanas, como uma versão da música de abertura de Weeds e Orange Is The New Black. Além disso, também realizou shows na Broadway.
Das canções clássicas, por fim, Regina Spektor se transformou, ganhou o cenário antifolk com seu jeito único de cantar, uma mescla de histórias e elementos, de folk, pop, hip hop, rock, e toda a sua história.
Edição e arte em destaque por Isabelle Simões. Revisão por Gabriela Prado.