A mais recente estreia do Disney+, a série da Marvel Loki, acompanha o deus da trapaça nos eventos seguintes ao filme Vingadores: Ultimato, onde o personagem fez uma breve aparição, escapando dos Vingadores e alterando o curso natural dos acontecimentos. Após sua fuga, ele se vê capturado pela TVA, uma organização vigilante que protege a sagrada linha do tempo.
A partir desse ponto, Loki (Tom Hiddleston) é imediatamente confrontado com toda a sua história e sua pequenez. Seu passado e seu futuro lhes são transmitidos diante de seus olhos enquanto ele é reduzido a um mero obstáculo diante do grandioso curso da realidade. O mesmo Loki que acabou de tentar conquistar a Terra percebe que o universo desvia dele, não apenas o removendo de seu caminho em busca de um glorioso propósito, mas nem sequer lhe atribuindo propósito algum.
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É a partir desse ponto que a história da série embarca em uma jornada para longe do pódio do Universo Cinematográfico da Marvel, desvendando o caminho daqueles que, embora desejem um propósito maior, foram rejeitados pela história oficial. Todavia, todas as variantes (como são chamados os que desviam de seu curso) capturadas pela TVA não deveriam existir, são vidas que não estão autorizadas a seguirem adiante. Não há livre arbítrio nessa busca pela harmonia, e no meio desse dilema se encontra Loki.
AVISO: spoilers a seguir
O universo manifesta o caos
Muitos personagens novos foram introduzidos durante a temporada, entretanto, com toda a certeza, Sylvie (Sophia Di Martino) era a mais aguardada pelos fãs da série. Sendo uma das variantes de Loki, ela não tem como meta dominar, mas sim libertar. Enquanto o Loki que o público conhece foi capturado pela TVA já adulto, Sylvie teve sua vida, sua família e sua Asgard arrancadas dela ainda na infância. Ela, portanto, teve que fugir desde criança e isso lhe dá uma perspectiva diferente dos acontecimentos.
Enquanto o padrão conhecido pelo público é de um Loki que almeja poder, Sylvie busca somente a vingança, não apenas por ela mas por todas as variantes que foram feridas pela TVA, como mostra seu diálogo com a caçadora B-15 (Wunmi Mosaku), quando a mesma descobre que também é uma variante que foi capturada e teve sua mente apagada.
Além disso, Sylvie acredita que é o próprio caos manifesto pelo universo em um ímpeto de se libertar. O fim da temporada revela que ela estava absolutamente certa. Aquele que Permanece (Jonathan Majors) deixa claro que orquestrou todos os eventos conhecidos do UCM. O que significa que, de fato, Loki e Sylvie nunca estiveram destinados a possuírem qualquer liberdade ou felicidade. Seus finais trágicos, contudo, eram fatídicos. E até mesmo o romance entre os dois causa um evento Nexus sem precedentes, o que mostra que Loki nunca foi sequer destinado a se amar.
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Mesmo confinados à uma existência que lhes priva de qualquer propósito, Loki e Sylvie resistem a esse estado não apenas sobrevivendo, mas buscando incansavelmente uma motivação maior para viverem.
Ao libertar todas as linhas do tempo, Sylvie toma a difícil decisão de pagar o preço a respeito do que está por vir: uma mudança completa em todo o MCU (agora Multiverso). Dessa maneira, através dos agentes do caos, renegados pela história como ela deveria ser, há uma mudança de proporções épicas em todo o tecido da realidade.
Representações de gênero em “Loki”
É visível que a diretora Kate Herron teve uma grande preocupação com questões de representatividade dentro da série. Além de um elenco bastante diverso e das personagens femininas fortes e determinadas, Loki contou com os dois primeiros personagens abertamente LGBTQIA+ do MCU, no caso, o próprio Loki e Sylvie, abertamente bissexuais.
Loki já havia sido confirmado como queer nos quadrinhos, no entanto, se a série acerta nas questões de sexualidade do personagem, falha quando se trata de gênero. Nas HQs, Loki é um personagem gênero-fluído (pessoa cuja identidade de gênero é variável, que passa do masculino ao feminino ou ao gênero neutro) e a Lady Loki não é uma variante e sim uma parte de sua identidade.
Em contrapartida, o que se vê na série é algo completamente diferente do gênero-fluído de Loki nos quadrinhos. O personagem recebe sua variante do gênero feminino com uma surpresa que soa deslocada. Em uma cena, ele pergunta a outras variantes dele se elas já haviam “conhecido uma variante nossa mulher”.
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No entanto, não deveria ser surpresa alguma para Loki encontrar uma versão de si próprio do gênero feminino, pois ele mesmo deveria ser essa versão. O artista Daniel (@TheDanielHDs) ilustra, em uma tirinha publicada no Twitter, o quão fora do personagem soa essa fala:
Veja a publicação aqui
Na verdade, absolutamente todas as variantes do Loki escolhem uma forma física que melhor condiz com sua identidade, visto que todos eles (bem, talvez não o jacaré Loki, quem sabe?) são Jötunn, ou seja, gigantes de gelo. A própria série parece esquecer disso às vezes, inclusive mostrando uma cena onde Sylvie e Loki sentem frio, que fica um tanto confusa levando em consideração a sua origem de Jötunheim.
Além disso, um dos maiores problemas a respeito do apagamento da identidade de Loki como gênero-fluído (que já é um problema por si próprio) é que, se Sylvie é uma personagem feminina e Loki um personagem masculino, então ela não pode estar centralmente ligada ao desenvolvimento dele ou isso soaria sexista. A partir desse ponto, a série começa a carregar o pesado – e desnecessário fardo de desenvolver Sylvie – de forma independente de Loki, quando ambos são figuras indissociáveis.
Ou seja, não haveria necessidade de desenvolver profundamente qualquer outra variante do Loki se não pairasse sobre a série a sensação de que uma personagem feminina estava existindo apenas para o desenvolvimento de um romance com um homem.
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É claro que Sylvie é mais profunda que isso, óbvio que ela tem uma personalidade muito bem trabalhada (mesmo para apenas quatro episódios). No entanto, tudo isso está o tempo todo na corda bamba, e Sylvie está constantemente sob o risco de ser lida como uma personagem feminina que serve apenas para ajudar na evolução do protagonista masculino.
Não há possibilidade de desvincular Loki de qualquer uma de suas variantes e, se ele fosse acompanhado de outra figura masculina, não haveria a necessidade constante de desenvolver esse “outro Loki” de maneira individual. A prova disso é que o Loki que o público acompanha nem é o mesmo que apareceu durante todo os filmes do MCU, é uma variante dele, e a série não procurou desvincular ou separar essas duas figuras, pelo contrário, entregou as experiências do Loki “original” na íntegra e em vídeo para que esse pudesse ser “atualizado” de tudo.
Mas no caso de Sylvie, a espectadora é lembrada constantemente que ela não é o Loki. Seria injusto colocar esse problema como um erro mortal de uma série que terá uma segunda temporada, além de ter sido a obra do MCU que melhor desenvolveu e aprofundou Loki. Contudo, ainda existem muitas informações a respeito de Sylvie que não foram reveladas, incluindo o que causou seu evento Nexus.
Fica implícito, portanto, que Sylvie precisa abraçar sua identidade como um Loki, visto que ela até mudou seu nome para não ser vista como a deusa da trapaça. No entanto, seria ainda melhor se todos os Lokis reconhecessem que o gênero feminino faz parte de sua identidade.
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A história das variantes é tão bonita e tão interessante justamente porque ela mostra que cada indivíduo é feito de diferentes partes de si mesmo. Cada pessoa carrega consigo muitas de suas variantes, elas revelam possibilidades e estradas que cada um gostaria de ter seguido, os caminhos que foram e que ainda serão tomados. Ou seja, não há necessidade de dissociar Loki de todas as suas partes, de tudo aquilo que o faz ser quem é.
Na verdade, o fato de que existem tantas variantes do Loki mostra que ele tentou mudar sua história muitas vezes, e foi ceifado pela TVA em cada uma delas. E ainda assim ele cumpre seu propósito de diferentes formas diversas vezes. Ele reconhece suas forças e suas fraquezas, aprende a se amar, ajuda seus semelhantes e ainda muda o Multiverso para sempre.
Loki não foi apenas rejeitado da sagrada linha do tempo, mas, por muitos anos, não teve seu potencial explorado como personagem dentro da Marvel. O sucesso da série é um exemplo, dentro e fora das telas, de como os rejeitados mudaram absolutamente tudo. Loki é sobre abraçar a busca por propósito, mesmo quando tudo conspira para o vazio absoluto. E desse vazio no espaço-tempo, para onde todos aqueles que tentavam mudar eram banidos, surgiu coragem e motivação para se fazer algo diferente. Do caos nascido daqueles que passaram a vida nas bordas da história, vem a força para romper as margens.
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A motivação de Sylvie para destruir a TVA é bonita e ao mesmo tempo melancólica. Além disso, a estrutura da linha do tempo impediu que todas as variantes encontrassem qualquer espécie de paz. E a libertação do Multiverso e, consequentemente, de um novo vilão, se encerra em uma vitória de gosto amargo. Nesse ponto, a espectadora não pode se identificar, porque para aquelas que buscam uma boa história, a jornada de Loki é uma vitória absoluta.
Edição e revisão por Isabelle Simões.