Emily em Paris: uma França turística e um roteiro com várias falhas

Emily em Paris: uma França turística e um roteiro com várias falhas

As temporadas de premiações são sempre cheias de polêmicas. E, em 2021, não foi diferente. Ainda no começo do ano, choveram críticas à Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood devido às indicações ao Globo de Ouro. Uma escolha que deixou muita gente com a pulga atrás da orelha foi a indicação de Emily em Paris a Melhor Série de Comédia ou Musical. Agora, com apenas alguns dias até o Emmy, a atenção dada à comédia da Netflix voltou a ser alvo de debate.

Marcada para o dia 19 de setembro, a 73ª edição do Emmy tem oito séries indicadas na categoria comédia. Emily em Paris disputa o prêmio com Black-ish, Cobra Kai, Hacks, The Flight Attendant, O Método Kominsky, Pen15 e Ted Lasso. Contudo, a categoria é a única na qual a série foi indicada.

É um cenário um pouco diferente do que a série encontrou no Globo de Ouro, no qual Lily Collins, a Emily do título, também conquistou uma indicação a melhor atriz. Na época, o contraste com a ausência da elogiada I May Destroy You da premiação causou estranhamento. Nem mesmo uma das roteiristas da série entendeu. No fim das contas, veio à tona que a preferência dada à comédia da Netflix pode ter sido influenciada por fatores que não têm nada a ver com qualidade.

Lily Collins como Emily Cooper
Lily Collins como Emily Cooper (Imagem | Reprodução)
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Não é que Emily em Paris não tenha os seus méritos e a sua legião de fãs. Porém, a série foi amplamente criticada pelos estereótipos que reproduz. Os franceses, em especial, não gostaram nada da versão de Paris criada por Darren Star, nome por trás de sucessos como Sex and the City.

Além disso, a série também tem problemas com representatividade e não inova muito no humor. No geral, os episódios são divertidinhos e fáceis de maratonar, desde que ignoremos algumas falhas graves no roteiro. Contudo, a sensação volta e meia é de que estamos vendo uma sitcom dos anos 90, e não no bom sentido.

Um roteiro, vários problemas

Emily Cooper é uma jovem publicitária que vive em Chicago. Porém, quando sua chefe (Kate Walsh) descobre que está grávida, Emily é mandada em seu lugar para Paris para cuidar da mais nova aquisição da empresa em que trabalha: a agência francesa Savoir. Do outro lado do Atlântico, Emily encontra uma nova língua, uma nova cultura, novos interesses amorosos e uma vocação para influenciadora digital.

Essa é a premissa de Emily em Paris. A princípio, parece uma ideia fofa e engraçadinha, que pode render uma boa comédia romântica. Porém, a forma como a trama se desenrola é, muitas vezes, meio sem pé nem cabeça.

Cena de Emily in Paris
Emily e Sylvie, a chefona da Savoir (Imagem | Reprodução)

Para começo de conversa, é difícil entender por que Emily foi a escolhida para ir a Paris. Ao contrário de sua chefe americana, Emily não fala francês e não tem qualquer familiaridade com a cultura francesa. Além disso, a protagonista trabalha com publicidade de remédios, área bem distinta dos artigos de luxo nos quais a Savoir se especializa.

Com um currículo desses, é de se imaginar que Emily não seria bem recebida no novo emprego. Entretanto, a série tenta nos convencer de que o motivo pelo qual sua nova chefe Sylvie (Philippine Leroy-Beaulieu) e seus novos colegas a tratam a mal é apenas o fato de ela ser americana.

Também é difícil entender qual é exatamente o lugar de Emily dentro da Savoir. Como uma enviada da empresa matriz, o esperado é que Emily tivesse uma posição de poder sobre os colegas franceses. Porém, ao longo da primeira temporada, a dinâmica de poder é invertida, e Emily é frequentemente ameaçada de demissão por Sylvie.

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Emily e os colegas
Emily tem uma relação conflituosa com os novos colegas (Imagem | Reprodução)

Outro ponto confuso do roteiro é a carreira de influenciadora de Emily. Ao chegar em Paris, a protagonista tem menos de 50 seguidores no Instagram. Contudo, após começar a postar fotos de sua vida na capital francesa, o número sobe para mais de 20 mil. Um aumento considerável que não precisou de qualquer estratégia de redes sociais.

Mas apesar de não ser um número de se jogar fora, 20 mil seguidores é pouco para uma influenciadora digital. A atriz Marina Ruy Barbosa, por exemplo, tem mais de 38 milhões de pessoas que a acompanham no Instagram. Ainda assim, Emily é requisitada por diversas marcas como uma influenciadora de grande porte.

Outros “furos no roteiro” são mais fáceis de ignorar. Afinal, há coisas que só são possíveis no mundo das comédias românticas, gênero do qual Emily em Paris faz parte.

Cena de Emily em Paris
Emily vira influenciadora com suas fotos de Paris (Imagem | Reprodução)

Contudo, bem mais difíceis de deixar passar são alguns elementos que parecem vindos diretamente de duas décadas atrás. A ausência de personagens LGBTQIA+ é um deles. É estranho que, em pleno 2021, Emily em Paris tenha apenas um personagem abertamente homossexual e que se valha de estereótipos de gays escandalosos, principalmente sendo uma série que tem o mundo da moda como um de seus principais cenários.

Também causa sorrisinhos amarelos o episódio em que a principal piada é que Emily faz sexo com um menor de idade sem saber. O plot point é diretamente reciclado de sitcoms dos anos 90, como Friends, e não é o único.

A falta de diversidade de Emily em Paris

Não é apenas a diversidade sexual que falta a Emily em Paris. A série também tem um elenco quase que inteiramente branco. Dos personagens recorrentes, apenas dois fogem à regra: Mindy Chen (Ashley Park) e Julien (Samuel Arnold).

Mindy e Emily
Mindy é a melhor amiga de Emily em Paris (Imagem | Reprodução)

Mindy é uma imigrante chinesa que Emily conhece em uma praça de Paris. As duas logo se tornam grandes amigas. De família rica, Mindy se mudou para a França para fugir das expectativas do pai. Apesar de trabalhar como babá, tem o sonho de ser cantora e um passado como participante de reality show em seu país natal.

Já Julien não tem uma personalidade tão bem definida. O único personagem negro da série é colega de trabalho de Emily e geralmente está acompanhado de Luc (Bruno Gouery). Sua função na trama é ora de antagonista, ora de guia a respeito dos detalhes extraoficiais do funcionamento da Savoir, como o caso de Sylvie com um cliente.

Luc e Julien em Emil em Paris
Luc e Julien costumam andar lado a lado (Imagem | Reprodução)

A brancura do elenco de Emily em Paris não reflete a realidade da capital francesa. Embora o censo étnico seja um tabu na França, fazendo com que conseguir dados demográficos de Paris se torne uma tarefa complicada, a cidade conta com uma população negra expressiva e com um número cada vez maior de imigrantes. Uma representação mais próxima do mundo real pode ser encontrada em outra produção da Netflix, a série francesa Lupin.

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A falta de diversidade de Emily em Paris ajuda a reforçar um estereótipo da França e dos países europeus como etnicamente homogêneos. É um imaginário que invisibiliza populações inteiras, atrapalha a discussão sobre o racismo e apaga a influência não-branca na Europa. Porém, em uma série com uma visão tão estereotipada de seu principal cenário, não é de causar espanto.

A França de Emily em Paris

Embora não tenha o fandom mais vocal da internet, Emily em Paris conquistou o coração de muita gente. Porém, também não são poucos os que torceram o nariz para a série. Os franceses, por exemplo, não ficaram muito felizes com o que viram. E com razão.

A França de Emily em Paris
Emily em Paris traz uma França turística e cheia de estereótipos (Imagem | Reprodução)

A França de Emily em Paris é uma França para turistas. Em quase todos os episódios, somos apresentadas a um novo ponto turístico parisiense, da Torre Eiffel ao Café de Flore. As únicas cenas fora de Paris são em um château produtor de champanhe e sempre que precisam elogiar alguma coisa local, os personagens falam da moda, da culinária ou da atmosfera romântica da capital francesa.

Assistir a Emily em Paris na França é como ser brasileiro e assistir a um dos muitos filmes americanos passados no Brasil em que o Rio Amazonas fica ao lado do Cristo Redentor e tudo gira em torno de samba e futebol.

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Porém, o problema de verdade está na forma como a série retrata os franceses em si. Além do clássico estereótipo da grosseria, quase todos os personagens franceses são apresentados como machistas, obcecados por sexo, pedantes e sem um pingo de ética de trabalho.

As únicas exceções são o chef Gabriel (Lucas Bravo), um dos interesses amorosos de Emily, e Camille (Camille Razat), sua namorada. Os dois são os únicos que tratam Emily com educação e simpatia sem segundas intenções, muito embora Gabriel desenvolva sentimentos românticos pela protagonista mais à frente.

Emily e Gabriel
Emily e Gabriel, um dos interesses românticos da protagonista (Imagem | Reprodução)

A relação entre Emily, Gabriel e Camille também é outro ponto de discussão entre quem assistiu à série. A forma como Emily se aproxima de Camille ao mesmo tempo em que flerta com Gabriel incomodou algumas pessoas. Porém, o triângulo amoroso não chega a afetar negativamente a história. Pelo contrário: é um dos principais motores da trama. E, ao que tudo indica, a relação entre os três será melhor desenvolvida na segunda temporada.

No geral, Emily em Paris é uma série fácil de assistir, ótima para um fim de semana de chuva. Porém, com tantos estereótipos e um roteiro tão pouco trabalhado, não é de admirar que nem mesmo membros da equipe entendam como a produção ganhou tanto prestígio.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Tradutora, jornalista, escritora e doutoranda em Linguística, na área de Análise do Discurso. Gosta de cinema, de ficção científica, de cinema de ficção científica e de batata. Queria escrever quando crescesse e, agora que cresceu, continua querendo.
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