Guerreiras: Um drama sobre as mulheres da Primeira Guerra Mundial

Guerreiras: Um drama sobre as mulheres da Primeira Guerra Mundial

A Primeira Guerra Mundial é lembrada como uma guerra de homens. As imagens mais icônicas retratam soldados enlodados nas trincheiras, rostos endurecidos pela fome, pelo cansaço e pela morte. No entanto, houve outra guerra, menos discutida, mas igualmente importante: a guerra silenciosa travada pelas mulheres. É nesse cenário que se desenrola a série francesa da Netflix, Guerreiras (Les Combattantes), apresentando um retrato pungente e cuidadosamente elaborado de quatro mulheres cujas vidas se cruzam em meio ao caos da guerra.

Ao longo de oito episódios que entrelaçam narrativas pessoais e eventos históricos, Guerreiras constrói um mosaico emocional e visualmente impressionante, no qual histórias de coragem, sacrifício e resistência tomam o centro do palco. Embora não se proponha a reinventar a roda e, em alguns momentos, exagere no sentimentalismo e no drama, a série cumpre um papel fundamental ao iluminar um lado frequentemente esquecido da Grande Guerra.

Guerreiras | Netflix (reprodução)
Guerreiras | Netflix (reprodução)

A história de quatro mulheres

A trama de Guerreiras é sustentada por quatro protagonistas femininas, cujas histórias, inicialmente separadas, se entrelaçam de forma orgânica e convincente.

Caroline (Audrey Fleurot) é uma mãe e esposa que vê sua vida virar de cabeça para baixo quando o marido é enviado para a frente de batalha. Forçada a assumir a gestão da fábrica da família, ela enfrenta não apenas os desafios da guerra, mas também as constantes tentativas de sabotagem de seu cunhado e de sua sogra.

Suzanne (Camille Lou), uma enfermeira foragida, encontra refúgio em um hospital improvisado. Tentando escapar de seu passado, ela acaba envolvida em um perigoso esquema de espionagem e se apaixona por um médico.

Agnès (Julie de Bona), uma freira, trava uma luta interna entre sua fé e os horrores que presencia ao cuidar dos feridos. Além disso, enfrenta um padre que abusa sexualmente de suas noviças e lida com sua paixão proibida por um soldado traumatizado — que, para piorar, pertence ao lado inimigo.

Por fim, Marguerite (Sofia Essaïdi), uma prostituta com um segredo devastador, se vê inesperadamente envolvida no esforço de guerra enquanto busca se reconectar com o filho perdido. Ao mesmo tempo, precisa lidar com os esquemas de um cafetão corrupto e cruel.

Guerreiras | Netflix (reprodução)
Guerreiras | Netflix (reprodução)

Cada uma dessas mulheres representa um aspecto diferente da experiência feminina durante a guerra, mas nenhuma se torna um mero símbolo. Pelo contrário, os roteiristas se esforçam para criar personagens tridimensionais, com falhas, desejos e contradições que as tornam profundamente humanas.

Através de suas histórias individuais, a série explora temas como perda, sobrevivência, amor e a busca por significado em meio à destruição.

Guerreiras: entre a história e o drama

Um dos maiores méritos de Guerreiras é sua habilidade de equilibrar a narrativa histórica com o drama pessoal. A série não ignora os horrores da guerra – os campos de batalha estão sempre presentes, ainda que vistos à distância, e as cenas ambientadas no hospital mergulham em uma crueza quase documental.

Ferimentos são retratados com um realismo impressionante, procedimentos cirúrgicos são realizados sem qualquer estrutura, e os transtornos mentais e traumas de guerra são brilhantemente representados.

No entanto, é no impacto humano do conflito que a produção realmente se destaca. Guerreiras expõe mortes, prisões e a destruição de vidas e famílias sem qualquer justificativa ou justiça, transmitindo uma sensação avassaladora de perda.

Esse realismo pode ser atribuído, entre outros fatores, ao fato de a série ser francesa. A França, ao lado da Bélgica, foi palco da maioria dos horrores da Primeira Guerra Mundial, o que deixou cicatrizes profundas na sociedade francesa e solidificou o conflito na memória coletiva do país de maneira dura, cruel e brutal.

Guerreiras | Netflix (reprodução)
Guerreiras (reprodução)

A direção de arte merece destaque especial por sua recriação meticulosa da França devastada pelo conflito.

Desde os trajes detalhados até os cenários que capturam a desolação das pequenas cidades ocupadas, cada frame parece cuidadosamente planejado para transportar o espectador ao início do século XX. Essa atenção minuciosa aos detalhes históricos confere à série um senso de autenticidade que enriquece as narrativas das protagonistas.

Além disso, Guerreiras emprega técnicas narrativas modernas para conectar as experiências das personagens ao público contemporâneo. Esse recurso, embora deliberado, raramente soa intrusivo, criando uma ponte emocional eficaz entre os espectadores e a época retratada.

Pontos altos e baixos da série Guerreiras

Se há algo que eleva Guerreiras acima do simples melodrama que poderia ter sido, é o desempenho excepcional de seu elenco principal.

Audrey Fleurot, em particular, entrega uma performance fascinante como Caroline, capturando com precisão a transformação de uma esposa submissa em uma líder forte e determinada. Camille Lou e Julie de Bona também conferem camadas emocionais profundas a seus papéis, enquanto Sofia Essaïdi equilibra com maestria a vulnerabilidade e a força de sua personagem.

A cinematografia também merece elogios. O uso inteligente de luz e sombra destaca os momentos mais introspectivos, enquanto as cenas externas são frequentemente banhadas por uma paleta cinza-azulada, refletindo o clima sombrio da guerra.

Já a trilha sonora, apesar de ter seus altos e baixos, geralmente funciona como um complemento eficaz à narrativa, amplificando as emoções sem torná-las excessivamente dramáticas.

Cena da série Guerreiras | Netflix (reprodução)
Cena da série Guerreiras | Netflix (reprodução)

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Ainda assim, Guerreiras não está isenta de falhas. A série, por vezes, cede à tentação de reviravoltas melodramáticas que, embora emocionantes, podem soar deslocadas dentro do contexto histórico. Em certos momentos, os diálogos tropeçam em clichês que enfraquecem a profundidade psicológica das personagens.

Além disso, enquanto algumas tramas são desenvolvidas com paciência e nuance, outras – especialmente as que envolvem Marguerite – sofrem com uma certa pressa narrativa. Os roteiristas parecem ansiosos para amarrar as pontas, deixando algumas questões mal explicadas ou simplesmente em aberto.

É importante lembrar que a série é, acima de tudo, um drama, e não tenta competir com grandes produções sobre o mesmo tema, como 1917, Nada de Novo no Front e A Última Jornada. No entanto, cai em um padrão recorrente em produções francesas recentes – como as séries A Revolução e O Bazar de Caridade, além do novo O Conde de Monte Cristo, com Pierre Niney: uma tendência ao melodrama que, por vezes, se aproxima do exagero típico de um “novelão”.

Cena da série Guerreiras | Netflix (reprodução)
Cena da série Guerreiras | Netflix (reprodução)

A série tem um desfecho definitivo, sem espaço para uma segunda temporada. Embora bem executado, o final deixa muitas pontas soltas e histórias em aberto, o que pode ser visto como um ponto negativo. No entanto, essa escolha se revela interessante do ponto de vista artístico, já que a trama se encerra anos antes do fim da guerra.

Essa decisão reforça a sensação de incerteza e continuidade, deixando claro que ainda há batalhas a serem travadas e que os dilemas das personagens permanecem inacabados. Ao evitar um desfecho artificialmente fechado ou otimista, Guerreiras transmite um realismo condizente com seu contexto histórico.

De forma sutil, a série sugere que a França e a Europa ainda enfrentariam décadas de instabilidade, e que algo próximo da paz só seria alcançado mais de trinta anos depois dos eventos retratados.

A redescoberta de uma guerra silenciosa

O maior triunfo de Guerreiras é sua capacidade de recontextualizar a Primeira Guerra através de uma perspectiva feminina. A série não é uma celebração do heroísmo fácil, mas uma exploração complexa das escolhas e sacrifícios que essas mulheres foram forçadas a fazer.

Ao longo de seus oito episódios, a narrativa reforça um ponto essencial: a guerra não foi travada apenas nas trincheiras. Ela estava nas fábricas, nos hospitais, nos conventos e nas ruas. Guerreiras nos lembra que, enquanto os homens lutavam pela pátria, muitas mulheres lutavam por suas próprias vidas – e, em muitos casos, pela sobrevivência de suas famílias e comunidades. É uma história que, embora silenciosa, ecoa profundamente no imaginário histórico.

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No entanto, talvez aí resida a maior contradição da produção: embora se apresente como uma série sobre a guerra das mulheres, Guerreiras acaba reproduzindo o individualismo heroico tão comum em filmes de guerra focados nos soldados. As protagonistas são todas figuras excepcionais, vivendo circunstâncias extraordinárias, e seus dramas individuais, repletos de reviravoltas, acabam dominando a narrativa.

Cena da série Guerreiras | Netflix (reprodução)
Cena da série Guerreiras | Netflix (reprodução)

A série talvez se beneficiasse, tanto em termos de qualidade narrativa quanto em sua mensagem, se tivesse optado por protagonistas mais comuns – representações das mulheres reais que viveram e sofreram durante a Primeira Guerra Mundial.

Um exemplo excelente de uma personagem assim é Julia Sagorsky, de Boardwalk Empire. Ao invés de focar em figuras excepcionais, a série poderia ter explorado de maneira mais sutil e realista a resiliência das mulheres que, em muitos casos, sustentaram as bases da sociedade enquanto os homens estavam nas trincheiras.

Essa “guerra silenciosa”, muitas vezes invisível nas narrativas históricas, é uma história que realmente vale a pena ser contada.

Um olhar interessante sobre a Grande Guerra

Guerreiras é um retrato sensível e envolvente de uma guerra que raramente ganha destaque na ficção.

Embora não seja uma obra-prima livre de falhas, é uma produção que merece ser vista, tanto por sua qualidade técnica quanto pela profundidade emocional que traz à narrativa histórica e à representação de um conflito complexo que, apesar de frequentemente ficar de escanteio, foi um grande formador do século XX.

Ao final, não são as cenas de guerra que ficam na memória, mas os momentos de humanidade.

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Cena da série Guerreiras | Netflix (reprodução)

Com um elenco ótimo, uma direção artística impecável e uma narrativa que equilibra drama e história, Guerreiras prova que há muitas histórias ainda por contar sobre a Grande Guerra. E, ao dar voz às mulheres que a viveram, a série não apenas ilumina um aspecto negligenciado do conflito, mas também nos desafia a reavaliar a maneira como entendemos o passado. É uma obra que, à sua maneira, deixa sua marca.

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Cursando História na Universidade Federal do Estado do Amazonas (UFAM), com um interesse de pesquisa particular em Primeira Guerra Mundial. Criadora do instagram @behindherglasses_, uma comunidade de estilo e lifestyle vintage, moda e costumes históricos, livros, teatro e fotografia com mais de 100.000 seguidores. Criadora de conteúdo sobre literatura, cinema, televisão, teatro e história no Instagram @ClarissaDesterro.
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