A guerra não é coisa de menina. Afinal, como mulheres poderiam se enfiar nas trincheiras e serem atingidas por estilhaços de granada? Claro que não. Mulheres ficam em casa, cerzindo meias para seus homens, esperando que eles voltem do front.
Ao longo de nossa vida, acreditamos piamente nesta história. Os filmes também não ajudam. Os melhores filmes sobre guerra da Hollywood clássica, como “Os Melhores Anos de Nossas Vidas“, de William Wyler, retratam as mulheres como aquelas que reerguem os homens dos tormentos causados pelos conflitos que presenciaram. Mas, recentemente, recebemos uma lufada de ar com o livro da escritora bielorrussa, Svetlana Aleksiévitch, “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher“. A partir dos relatos orais de mulheres que estiveram no front russo durante a Segunda Guerra Mundial, podemos nos conectar com uma parte da história que sempre nos foi negada.
No entanto, antes dela, outra mulher escreveu relatos profundos sobre a guerra: Martha Gellhorn. E por que não a conhecemos? A resposta parece idiota, mas o apagamento das mulheres nos grandes conflitos do mundo é uma política, servindo aos interesses patriarcais.
Por isso, “Filhas do Sol“, filme em cartaz na edição 2019 do Festival Varilux, é tão importante. Porque ele resgata a história de um batalhão de mulheres, as Filhas do Sol, que lutou contra o Estado Islâmico (ISIS) no Curdistão. Uma história silenciada, pois além de uma questão de gênero, estamos falando de uma história não eurocêntrica.
“Filhas do Sol” é o segundo filme dirigido por uma mulher, Eva Husson, dessa edição do festival Varilux. E podemos afirmar: é um dos melhores títulos que a mostra poderia ter trazido ao Brasil, ao lado de “Graças a Deus“, de François Ozon.
A inspiração para Filhas do Sol
De acordo com a diretora, a inspiração para “Filhas do Sol” surgiu a partir de uma situação real em sua família: o avô dela participou da Guerra Civil Espanhola. Em quase todas as entrevistas sobre o filme, Eva Husson cita a participação no avô no conflito, algo que ficou marcado nela, como a ferro e fogo.
Depois do avô, a segunda maior inspiração de Eva foi o desejo de mostrar as mulheres não como vítimas da guerra, e sim resistentes. Como dissemos na introdução deste texto, o lugar da mulher na História é sempre o de espectadora, mera coadjuvante. Dessa forma, é fácil sermos levadas por ideias de fraqueza e incapacidade, afinal, não temos ninguém para nos espelharmos e pensarmos: “Se esta mulher fez isso, eu também posso fazer”. “Filhas do Sol” mostra que coragem e bravura no front não são adjetivos de um único gênero.
Com essa ideia na cabeça, o próximo passo de Eva foi encontrar patrocinadores. Como declara nesta entrevista, ela entendia bem a indústria de filmes. E, por isso mesmo, decidiu inserir uma personagem francesa na trama, Mathilde, uma correspondente de guerra:
“Filmes são negócios. Percebi que se não tivéssemos um personagem francês no filme, não receberíamos financiamento.”
A etapa seguinte ao financiamento foi o trabalho de pesquisa. Eva Husson debruçou-se sobre a cultura curda, fazendo uma ponte entre a França e o Curdistão. Ela conta que coletou relatos orais de pessoas que viveram o massacre em Sinjar, algo muito similar ao que Svetlana e Martha Gellhorn fizeram: dar uma face humana a algo que poderia ser resumido em balas à primeira vista. A pesquisa exaustiva contou com a ajuda da produtora Didar Domehri, iraniana e refugiada, que lhe todo o suporte para conhecer uma realidade tão distante da sua enquanto mulher ocidental e branca.
A guerra tem rosto e sentimento de mulher
O pano de fundo para “Filhas do Sol” é o massacre de Sinjar, ocorrido em 2014, no qual o Estado Islâmico praticou um genocídio contra os yazidi, uma minoria religiosa monoteísta. O monte Sinjar, no nordeste do Iraque, foi o local escolhido pelo EI para começar o massacre.
Em 3 de agosto de 2014, o EI cercou a área de Sinjar, mantendo os yazidi sem comida ou água durante dias. Mulheres foram separadas dos filhos. Mulheres foram vendidas como escravas sexuais, inclusive, meninas. De acordo com esta reportagem do Huffpost Brasil, estima-se que 5 mil pessoas foram executadas durante o massacre. É neste contexto que conhecemos a história de Bahar (Golshifteh Farahani), uma advogada que estudou na França, e coordena o batalhão das Filhas do Sol, formado por ex-prisioneiras e escravas sexuais. Ela e suas colegas trabalham para libertar a cidade do EI, e o filme acompanha todo o processo de tomada do lugar.
Em um determinado momento, Bahar conhece Mathilde (Emmanuelle Bercot), uma correspondente de guerra designada para cobrir o conflito. Apesar de muitas críticas questionarem a presença dessa mulher branca em uma narrativa não branca, acreditamos que é importante Mathilde estar lá para dar visibilidade ao trabalho de correspondente de guerra. Como dissemos, quantas correspondentes conhecemos? Você sabia que Mathilde é diretamente inspirada em Marie Colvin, uma jornalista que morreu durante o cerco de Ohms?
Apesar das diferenças culturais, Mathilde e Bahar têm muitas coisas em comum, como o medo, a saudade da família, uma profunda melancolia, causada por tudo o que presenciaram na guerra. Através de flashbacks, as semelhanças entre essas duas mulheres tornam-se cada vez maiores.
“Filhas do Sol” nos faz chorar. E muito. Diferentemente de todos os filmes do gênero, de John Wayne até Nada de Novo no Front, a perspectiva de Eva Husson é a de sensibilizar o conflito. O batalhão de Bahar encontra resistência nas pequenas ações, como cantar e usar lenços coloridos na cabeça. Não temos homens tentando provar uma masculinidade fálica, matando a torto e a direito no front enquanto galopa pelo deserto.
É diferente assistir a um filme sobre guerra com um olhar que não o da masculinidade, mas no qual existe coragem e bravura. Existe tensão. É muito mais diferente assistir a um filme em que as mulheres pegam em armas, porque nunca tivemos esse direito. Quer dizer, o cinema nunca nos deu o direito de assistir a isso. Trata-se de um sentimento ímpar ver mulheres no front, insurgindo-se contra tudo o que dizem sobre mulheres e guerra.
Mulheres que sofrem e nem por isso mesmo não choram. Bahar, seu batalhão e Mathilde choram. Elas não precisam emular uma imagem masculinizada para serem fortes. Não, senhora. Os lenços coloridos na cabeça trazem essa mensagem, acreditamos. Nesse quesito, “Filhas do Sol” acerta muito.
Mathilde: uma homenagem às correspondentes de guerra
Como a própria Eva Husson declarou, Mathilde é inspirada em duas correspondentes de guerra fantásticas que arriscaram suas vidas para relatar o que acontece em um front de guerra: Marie Colvin e Marta Gellhorn.
Martha começou cobrindo a Guerra Civil Espanhola e só parou nos anos 1990, na época da invasão das tropas americanas no Panamá. O que diferenciava o relato de outros jornalistas do de Martha era que ela conversava com as pessoas, tentava entender seus anseios. Era um relato para além das baixas e vitórias no front. Infelizmente, Martha entrou para a história como a “esposa de Hemingway”.
Já Marie Colvin ganhou um filme só dela, estrelado por Rosamund Pike. Apesar disso, também permanece desconhecida da maioria das pessoas. Cobriu conflitos no Iraque, Sri Lanka e entre tantos outros lugares. Como Mathilde, ela também usava um tapa-olho. Em estilhaço de granada fez com que perdesse a visão durante uma cobertura no Sri Lanka.
Mathilde é quase uma fusão dessas duas mulheres, mas também uma homenagem ao espírito do jornalismo: aquele comprometido em mostrar a verdade. É muito interessante perceber como Mathilde partilha de uma visão “pessimista” sobre a verdade. Em um momento fundamental de “Filhas do Sol”, ela diz a Bahar que ninguém se importa com a verdade. E que ela está a apenas alguns cliques. Como Martha Gellhorn, Mathilde cobria esses conflitos por idealismo. A busca pela verdade era algo muito pessoal para a personagem.
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Bahar: ser mulher é resistir
Bahar é uma personagem cujos silêncios falam muito. Em um determinado momento de “Filhas do Sol”, há o flashback da antiga vida da personagem, junto ao marido e ao filho. Quando a câmera de Eva Husson retorna ao presente, ela foca somente no rosto de Bahar. Sua boca não diz nada; mas seus olhos dizem tudo. Existe um sofrimento muito pungente neles, algo que passamos a entender ao longo da trama.
Uma das falas mais marcantes da personagem é quando ela diz que nada pode ser pior do que ela passou. E ela não está errada. Como muitas mulheres yazidi, Bahar foi vendida e revendida como escrava sexual depois de ter visto seu marido ser fuzilado pelo EI. No cativeiro, encontra Lamia (Zübeyde Bulut) e juntas decidem pedir ajuda a uma ex-professora de faculdade de Bahar e ativista pelas mulheres que a libertem.
Como dissemos, as mulheres de “Filhas do Sol” não precisam cair em clichês de força e falta de sensibilidade para serem fortes. Bahar é gentil com suas colegas, como ela chama as mulheres que lutam com ela, algo muito diferente do que vemos em filmes de guerra estrelados por homens. Neles, os homens sempre estão sendo grossos, em um campeonato de quem tem o maior poder dentro da tropa. Em “Filhas do Sol”, não. O batalhão de Bahar é unido, ajudando umas às outras nos momentos mais difíceis.
Por fim, “Filhas do Sol“ é um filme imperdível. Além de Eva Husson, quando os créditos sobem, percebemos que muitas mulheres trabalharam no filme. É uma lufada de ar, pois nos mostra que as histórias merecem ser contadas da nossa perspectiva. Está mais do que na hora de mostrarmos que a participação das mulheres na História vai muito além de simplesmente mera coadjuvante do homem.