Calibã e a Bruxa: o terror contra os corpos das mulheres a serviço do capital, ontem e hoje

Calibã e a Bruxa: o terror contra os corpos das mulheres a serviço do capital, ontem e hoje

As bruxas não são necessariamente uma figura desconhecida dos nossos dias. Elas são tema de filmes, histórias em quadrinhos, músicas, contos infantis, festas e obras literárias. O chapéu preto e pontudo, o vestido comprido da mesma cor, a vassoura, o caldeirão e o gato por companhia compõem o imaginário simbólico de um dos arquétipos femininos mais conhecidos e explorados – seja para se referir de forma caricata e estereotipada às mulheres, seja para, numa releitura, colocar a bruxa como uma figura sedutora e mística. Não são estas, porém, as facetas exploradas pela historiadora feminista Silvia Federici, autora de Calibã e a BruxaMulheres, corpo e acumulação primitiva, traduzido pelo Coletivo Sycorax e lançado neste ano no Brasil pela Editora Elefante, em um projeto gráfico e editorial de encher os olhos.

O nome do livro é uma referência a dois personagens da obra A tempestade (1610-1611), de William Shakespeare: Calibã, um homem negro escravizado e descrito como “selvagem” e “deformado”, e sua mãe, a bruxa Sycorax, que no livro de Federici são tomados como os símbolos do racismo e da misoginia que sempre andaram de mãos dadas com o capitalismo.

A perspectiva que interessa a Federici, e que é contada em 418 páginas repletas de referências e análises aprofundadas e dialogadas com outras obras e autores, é a história de como a construção da figura da bruxa está intimamente ligada à história da origem do capitalismo, cujo objetivo era transformar os corpos femininos, por meio de um processo de aterrorização, em máquinas de produzir crianças, os futuros trabalhadores responsáveis por manter a nova ordem econômica em funcionamento.

Calibã e a Bruxa
A historiadora e militante feminista italiana, Silvia Federici | Imagem: Reprodução

Tal trabalho historiográfico, diga-se de passagem, foi monumental: Federici trabalhou em Calibã e a Bruxa por quase 30 anos, e decidiu-se pelo tema após viver na Nigéria em meados dos anos 80, em um momento em que as terras comunais daquele país passaram por um processo de cercamento semelhante ao ocorrido no período entre a crise do feudalismo e o advento do capitalismo.

Ali, percebeu a cruel associação entre a perda da posse da terra, a liberalização econômica e a exposição das mulheres à violência. Foi o clique para que decidisse estudar a relação entre o capitalismo e a caça às bruxas, período que durou aproximadamente 200 anos, dos séculos XV ao XVII.

História de homens

De início, Federici explica que buscou contar a história do capitalismo levando-se em conta a experiência das mulheres, praticamente invisibilizada e ignorada nas análises de Karl Marx.

Segundo Federici, o pensador alemão ignorou o papel da caça às bruxas para a construção de uma ordem patriarcal em que a capacidade reprodutiva e laboral das mulheres (gestação e cuidado das crianças e trabalho doméstico) foram colocadas sob o controle do Estado e transformadas em recursos econômicos.

Neste caso, o processo de formação e acumulação do proletariado mundial, ela explica, não se deu apenas pelos cercamentos das terras dos trabalhadores europeus e pela escravização dos povos originários da África e da América (a acumulação primitiva), mas também pela transformação dos corpos das mulheres em máquinas de trabalho doméstico e de parir – foi um processo de acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora.

Ao classificar tais atividades como não produtivas (uma vez que são atividades não pagas), Marx invisibilizou o fato de que as mesmas também eram uma forma de trabalho, essencial para a reprodução da força de trabalho que sustenta o capitalismo em si, e também o fato de que a dependência das mulheres do salário dos homens da família contribuiu para reforçar a opressão femininas dentro das relações de afeto e parentesco.

Calibã e a Bruxa
Estampa francesa do século XVI ilustra uma bruxa voando em direção a um sabá. “Dialogues touchant le pouvoir des sorciéres”.

Ao não tocar nesta temática, Marx não entendeu ou não demonstrou entender que tal subordinação só foi possível a partir de uma política de aterrorização das mulheres – por meio da parceria entre Estado, Igreja Católica e Igreja Protestante – e enfraquecimento do poder que possuíam perante a comunidade. A caça às bruxas, portanto, foi o meio encontrado para domesticar e subjugar as mulheres à função determinada a elas pelo sistema capitalista nascente.

Tal história de dominação dos corpos das mulheres também ignorada pelo historiador Michel Foucault, que produziu uma historiografia androcêntrica, focada numa experiência universal do corpo e da sexualidade que, ao fim e ao cabo, era a experiência masculina.

A história da caça às bruxas, e de como a mesma alimentou o sistema penal inquisitório, a instituição da tortura e o controle dos corpos pelo Estado não está presente nos escritos de Foucault, daí a grande contribuição de Federici para a historiografia e para o movimento feminista e de mulheres, que faz com que tal obra devesse ser ensinada nas escolas e universidades.

Misoginia, enfraquecimento do poder feminino e da solidariedade entre mulheres

Na reconstituição do processo de caça às bruxas na Europa, Federici explica que o poder das mulheres começou a ser quebrado a partir dos cercamentos das terras comunais, já que tendo menos poder sobre a terra e menos poder social do que os homens, as mulheres dependiam fortemente das terras comunais para plantar sua comida, garantir sua subsistência e autonomia e exercitar formas de sociabilidade junto a outras mulheres. Despossuídas da relação com a terra e dependentes de contratos de trabalho individuais acordados por seus integrantes, as famílias começaram a se desestruturar.

A historiadora conta que esse cenário foi particularmente cruel para as mulheres mais velhas, cujos filhos migraram para as cidades. Sem a posse da terra, sem animais e sem ter o que comer, tais mulheres caíram na miséria e, para sobreviver, passaram a depender de empréstimos, pequenos furtos e a atrasar o pagamento de suas dívidas.

Como resultado, não houve apenas a polarização entre ricos e pobres, mas também entre homens e mulheres: a obra explica que discussões resultantes da mendicância feminina, da entrada sem autorização em propriedades alheias e do atraso dos aluguéis estavam por trás de muitas acusações de bruxaria feitas contra elas.

Ao mesmo tempo em que se cercavam as terras, com a expulsão do camponeses que ali sempre viveram, e a Europa passava por uma crise populacional, o novo sistema econômico que nascia necessitava de braços que mantivessem a fábrica produzindo. Neste momento, entra em cena a importância de se controlar o potencial reprodutivo da mulher, capaz de gerar os corpos que colocavam as máquinas em movimento. Diante da resistência feminina ao controle, a caça às bruxas foi o próximo passo.

Calibã e a Bruxa
Gravura ilustra a queima de uma bruxa, assistido pela comunidade. Objetivo das queimas públicas era aterrorizar outras mulheres.

Entram em cena, então, a criminalização do controle da natalidade e dos métodos contraceptivos e abortivos utilizados pelas mulheres até então, junto com um processo de redução das mulheres a não-trabalhadoras, uma forma de encerrá-las no espaço doméstico como máquinas de fazer filhos e também como sustentáculo sobre o qual se apoiavam os homens que trabalhavam nas fábricas, a parte da população considerada “produtiva”.

Diz Federici, em resumo: Os homens perderam terras, mas ganharam servas”. Ao mesmo tempo, os saberes femininos eram dizimados, e, devido ao medo do infanticídio, surge a figura do médico homem a realizar e fiscalizar os partos das mulheres, uma função que sempre foi feminina. Esse ocultamento do trabalho feminino e o processo de cercamento, controle e colonização de seus corpos para a reprodução da força de trabalho é chamada por Federici de “Patriarcado do salário”.

Além disso, a pobreza levou muitas mulheres, solteiras e viúvas, mas também casadas, à prostituição, como forma de complementação da renda. A misoginia contra tais mulheres atingiu níveis estratosféricos, com a tortura e a humilhação pública das prostitutas. Ao mesmo tempo, as mulheres passaram a ser pintadas como demoníacas, promíscuas, assassinas de crianças, a rondar as vilas em busca de sangue e de homens, enquanto participavam dos sabás, onde cultuavam o demônio e praticavam orgias.

“A caça às bruxas foi, portanto, uma guerra contra as mulheres; foi uma tentativa coordenada de degradá-las, de demonizá-las e de destruir seu poder social. Ao mesmo tempo, foi precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade. Também nesse caso, a caça às bruxas amplificou as tendências sociais de então. De fato, existe uma continuidade entre as práticas que foram alvo da caça às bruxas e aquelas que estavam proibidas pela nova legislação introduzida na mesma época com a finalidade de regular a via familiar e as relações de gênero e a propriedade.

De um extremo a outro da Europa Ocidental, à medida que a caça às bruxas avançava, aprovavam-se leis que castigavam as adúlteras com a morte (na Inglaterra e  na Escócia, com a fogueira, como no caso de crimes de lesa-majestade) e a prostituição era colocada na ilegalidade, assim como os nascimentos fora do casamento, ao passo que o infanticídio foi transformado em crime capital. Ao mesmo tempo, as amizades femininas tornaram-se objeto de suspeita, denunciadas no púlpito como uma subversão da aliança entre marido e mulher, da mesma maneira que as relações entre mulheres foram demonizadas pelos acusadores das bruxas, que as forçavam a delatar umas às outras como cúmplices do crime.

Foi também neste período que, como vimos, a palavra gossip [fofoca], que na Idade Média significava “amiga”, mudou de significado, adquirindo uma conotação depreciativa: mais um sinal do grau a que foram solapados o poder das mulheres e os laços comunais. Há também, no plano ideológico, uma estreita correspondência entre a imagem degradada da mulher, forjada pelos demonólogos, e a imagem da feminilidade construída pelos debates da época sobre a “natureza dos sexos”, que canonizava uma mulher estereotipada, fraca do corpo e da mente e biologicamente inclinada ao mal, o que efetivamente servia para justificar o controle masculino sobre as mulheres e a nova ordem patriarcal.”

(Calibã e a bruxa, páginas 334-335)  

Segundo Calibã e a Bruxa, os homens se calaram a respeito do massacre de mulheres que ocorriam em suas vilas e nas cidades, até porque se beneficiaram com a perda de poder das mulheres e a ideia de que não eram produtivas e não mereciam um salário.

A discussão é extremamente atual, uma vez que a luta das mulheres pelo fim da discriminação de gênero ainda é invisibilizada, negada ou minimizada pela esquerda dita revolucionária. Federici nos mostra que o silenciamento das mulheres pelos homens que deveriam ser seus companheiros de luta é antiga e persiste.

Com a demonização das mulheres e o terrorismo contra seus corpos, saberes e modos de vida, o que restou foi um cenário de destruição do senso de comunidade, de solidariedade e de confiança entre as mulheres que ainda se reflete nos nossos dias.

Calibã e a Bruxa
“O sabá das bruxas”, a primeira e a mais famosa de uma série de gravuras produzidas pelo artista alemão Hans Baldung Grien, a partir de 1510

Testemunhas das torturas e da má fama das bruxas, nenhuma mulher queria ser apontada como tal nem andar ao lado de uma. As consequências da caça às bruxas para a psique feminina foram desastrosas.

Novo Mundo e o mundo atual 

A caça às bruxas, como se sabe, também chegou ao continente americano, o chamado Novo Mundo. Numa tentativa de se controlar os recursos naturais da população nativa e forçar a adoção da mentalidade proprietária entre os povos originários da América, a classe dominante europeia exportou os métodos terroristas de controle e genocídio de mulheres que pratica em casa.

Paralelamente ao tráfico de escravos e ao genocídio indígena, o colonialismo foi marcante também pela sua misoginia, pois foram as mulheres as que defenderam de forma mais ferrenha o antigo modo de existência, já que foram elas as mais afetadas pelo novo modo de vida imposto pelos europeus. As consequências da união nefasta entre misoginia e racismo, bem sabemos, se refletem até hoje nos maiores índices de violência que acometem mulheres negras e indígenas, as primeiras a sofrer com o desemprego, com a violência sexual, com a criminalização estatal e os feminicídios.

Por isso, uma das grandes lições de Calibã e a Bruxa, se não a maior, é mostrar a importância de um movimento feminista que não realiza suas análises a respeito da opressão das mulheres de forma apartada da luta de classes e das discussões sobre raça, etnia, território e o impacto da globalização sobre a vida das mulheres.

Igualmente, demonstra a importância de se discutir a divisão sexual internacional do trabalho e o acesso à terra e aos recursos naturais, além das violências e violações de direitos impostas às mulheres migrantes e em situação de refúgio por conta de guerras, conflitos armados, fome e desastres ambientais. Afinal, a caça às bruxas, literalmente falando, ainda não acabou, e segue forte. Talvez, com nova roupagem. A mentalidade misógina, porém, é antiga, e velha conhecida de todas nós.


Calibã e a BruxaCalibã e a Bruxa: Mulheres, corpo e acumulação primitiva

Autora: Silvia Federici

Editora Elefante

418 páginas

Ano: 2017

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