Interferências: uma ficção científica sobre o excesso de comunicação

Interferências: uma ficção científica sobre o excesso de comunicação

Connie Willis é, sem dúvida, um dos grandes nomes da ficção científica. Carrega em sua trajetória prêmios diversos, entre Nebulas e Hugos. Contudo, apesar do reconhecimento do início da sua carreira na década de 80, somente no ano passado os livros completos da autora foram publicados no Brasil. Em dois anos, a Editora Suma de Letras trouxe dois livros da autora. Depois da publicação de O Dia do Juízo Final, foi a vez do mais recente romance, Interferências.

Interferências é, como quase todas as obras de Willis, uma ficção científica. A obra destoa, no entanto, de O Dia do Juízo Final ao pender para o gênero de comédia romântica. Depois de ler dois livros da autora, é possível perceber que alguns padrões de escrita se repetem. Nem todos para o melhor da história. Ainda assim, Interferências é um livro que prende e entretém. Não obstante, revela toda a capacidade da autora de construir histórias que mesclam personagens cativantes com enredos de ficção científica bastante interessantes.

Interferências
Na imagem: Connie Willis (reprodução)

Mais e mais comunicação

A história de Interferências se passa em um futuro não muito distante, em que a comunicação ocorre de modo intensificado. Quase ninguém parece se importar com o espaço de silêncio. Não, as pessoas querem estar cada vez mais conectadas com as demais. Mas será que mais comunicação significa mais profundidade nos relacionamentos?

Nessa realidade, os cientistas descobriram um modo de aumentar a empatia entre os casais. Através de uma pequena cirurgia, os casais podem sentir o que o outro sente desde que haja um forte sentimento anterior. Então, quando o charmoso Trent propõe a Briddey que eles façam o procedimento, parece, a todos, que a relação é promissora. Ou, ao menos, a quase todos.

Briddey Flannigan deveria sentir que é o certo fazer essa cirurgia, mesmo após o curto período de namoro. Seis semanas poderiam definir a intensidade de um sentimento? Sua tia, suas irmãs, sua sobrinha e o intrometido colega de trabalho C. B. Schwartz parecem ser contra. Mas quando a oportunidade imediata surge, Briddey precisa apressar a decisão, mesmo sem saber das consequências indesejadas.

Velocidade versus quantidade versus intensidade

Após se submeter à cirurgia, Briddey se conecta com outras pessoas que não Trent. A partir de então, a autora entra na discussão acerca dos benefícios e dos malefícios do excesso de comunicação. Nem sempre o desconhecimento dos pensamentos alheios é ruim. Às vezes, pode ser a única forma de se manter sã em sociedade.

Na era da internet, sentimentos e atos são medidos pelo alcance na rede. O que é vivido na esfera particular e não é de conhecimento alheio, parece inexistente. No entanto, a vida é exteriorizada de tal modo que poucos possuem plena ciência de quem realmente são, senão em função dos outros. Briddey gasta tanto tempo em comunicações artificiais que não consegue nem mesmo identificar quem ela ama. Ou identificar as intenções por trás daqueles que dizem ama-la.

A superficialidade impera numa lógica instantânea e massificada. E ao mesmo tempo em que se presa a rapidez e abrangência dos sentimentos, o desenvolvimento de tecnologias mais capacitadas exige uma compreensão do funcionamento humano que o modo instantâneo de experiência não concede. Trent, por exemplo, busca uma forma de inovar na telefonia pelo que aprende da relação com Briddey. Só que sempre há efeitos colaterais – na ciência e nas relações pessoais.

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A cacofonia de Willis

O excesso de comunicação é algo próprio da escrita de Willis. Já em O Dia do Juízo Final, a autora utilizava das confusões comunicativas para gerar uma espécie de ponto cômico. Pessoas falando ao mesmo tempo, falhas comunicativas, uma cacofonia em forma de texto. É algo que não funciona exatamente como comédia, apesar da pretensão. Porém, ao menos, é mais coerente em Interferências.

Talvez seja uma técnica que incomode ao longo de vários livros, mas faz sentido diante da temática. Briddey começa a história acreditando que mais informação é a chave para o sucesso do seu relacionamento, e termina com o sentimento de que precisa de mais espaço. A sociedade nos leva a crer que mais é melhor, mas a quantidade não define a qualidade. E Briddey descobre isso passando pela dolorosa experiência de ter várias vozes em sua cabeça.

A autocompreensão precisa vir de um homem?

Para fugir da cacofonia, Briddey precisa recorrer ao auxílio de seu colega C. B. Por um motivo bastante interessante – uma virada na história, inclusive – ele é o único capaz de ajuda-la naquele momento. E apesar da relação entre eles ser bastante dinâmica, prende-se a alguns padrões.

Briddey é o estereótipo de mulher bonita. Branca, ruiva, magra, é considerada esteticamente perfeita para um padrão ocidental promovido pela mídia. C. B., por outro lado, é o homem mediano, levemente bonito, mas muito esquisito. Enquanto ela entra no enredo com a beleza, ele entra com a inteligência. Nada de novo em nível de entretenimento.

Em um primeiro momento, parece fazer sentido que ele surja como o único salvador. Mas quando as verdades acerca das consequências da cirurgia são reveladas – o que envolve telepatia – parece forçado que, entre tantas pessoas, somente ele tenha aparecido para ajudar Briddey.

E apesar da autora inserir várias mulheres na história e alguns questionamentos acerca de padrões de feminilidade, ainda coloca um homem sendo mentor e salvador de uma mulher.

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Personagens femininas de impacto

Por outro lado, a autora insere mais mulheres importantes para a conclusão de Interferências do que em O Dia do Juízo Final. Briddey vem de uma família irlandesa, e apenas parentes mulheres são citadas. Algumas se atêm a estereótipos, mas não é algo exclusivo das personagens femininas. Novamente, parece ser um recurso de escrita de Willis de modo geral.

Contudo, é interessante que alguns desses estereótipos sejam parcialmente rompidos mais para o final da narrativa, como no caso de sua tia Oona. Tia Oona parece ser apenas uma mulher intrometida e casamenteira. Entretanto, revela-se mais poderosa. Do mesmo modo, a sobrinha de Briddey, Maeve, ganha bastante relevância na metade final e exerce papel essencial na conclusão da história.

Comédia, romance e ficção científica: mulheres podem escrever!

As críticas ao casal principal são necessárias em uma análise da história, mas não incomodam tanto durante a leitura. Pelo contrário, é um casal simpático e que conquista no desenvolvimento, mesmo com os apontamentos. Tornam a história divertida e agradável.

Connie Willis consegue novamente desenvolver um bom enredo de ficção científica. Sempre mistura história e ciência de maneira única. Sua abordagem acerca das tecnologias de comunicação, em um diálogo com a telepatia e psiquiatria, é muito instigante. Talvez ela peque em algumas justificativas, como em uma explicação hereditária ou em uma conclusão tecnológica que não são muito convincentes. E isso, unido a outras críticas já realizadas, acabam influenciando na recepção menos positiva do que a de livros anteriores.

Os pontos positivos, no entanto, superam os negativos. Interferências é um daqueles romances longos, de leitura rápida. A história prende, entretém e ainda apresenta algumas reflexões sobre o modo como nos comunicamos. Faz uma incrível conexão entre tecnologia e relacionamentos, unindo romance, comédia e ficção científica. Não obstante, consegue apresentar pontos surpreendentes ao longo da história, informações cujos indícios estavam nas páginas, mas que não se podem inferir apenas da leitura da sinopse e se conectam gradativamente durante a leitura.

Connie Willis mostra mais uma vez que mulheres não só podem escrever qualquer gênero, como já estão escrevendo. Só merecem mais reconhecimento do que o que recebem.


InterferênciasInterferências

Connie Willis

464 páginas

Editora Suma das Letras

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Escrito por:

136 Textos

Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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