O Exorcismo da Minha Melhor Amiga: a irresponsabilidade do filme ao lidar com assuntos delicados de ordem emocional

O Exorcismo da Minha Melhor Amiga: a irresponsabilidade do filme ao lidar com assuntos delicados de ordem emocional

Até aonde você iria para ajudar sua melhor amiga que foi possuída por algo maligno? Essa é a dúvida que nos permeia enquanto assistimos ao longa O Exorcismo da Minha Melhor Amiga (2022), de Damon Thomas, disponível no Prime Video. Uma comédia de horror ambientada nos anos 1980, que busca prestar homenagem a tal década, em especial aos filmes de horror e à cultura pop da época. O filme é uma adaptação do livro homônimo de Grady Hendrix, e a história é focada em duas melhores amigas que estão sempre juntas: Gretchen (Amiah Miller) e Abby (Elsie Fisher), que vão ter que lidar com o infortúnio de uma delas ter seu corpo dominado por um demônio.

Gretchen e Abby, apesar de muito grudadas, abrem espaço para outras amizades: Glee (Cathy Ang), Margaret (Rachel Ogechi Kanu) e seu namorado insuportável Wally (Clayton Royal  Johnson). E ao passarem uma noite na cabana isolada dos pais de Margaret, as protagonistas, após tomarem ácido, se afastam da casa e vão até uma residência abandonada do outro lado do lago. A ação perfeita para tudo dar errado, não é mesmo? E é o que acontece. Gretchen é atacada por uma entidade demoníaca, e quando é encontrada pelas amigas é explícito que há algo errado com ela.

Glee (Cathy Ang), Abby (Elsie Fisher), Cretchen (Amiah Miller) e Margaret (Rachel Ogechi Kanu) em O Exorcismo da Minha Melhor Amiga (2022), de Damon Thomas.
Glee (Cathy Ang), Abby (Elsie Fisher), Cretchen (Amiah Miller) e Margaret (Rachel Ogechi Kanu). Imagem | Reprodução
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No quesito estética é válido dizer que O Exorcismo da Minha Melhor Amiga é bastante assertivo. As referências aos anos 1980 funcionam bem, sem cair no exagero, pois a narrativa consegue manter uma identidade mais moderna e aborda assuntos que praticamente não eram colocados em pauta em filmes teens dos anos 1980 (em especial nos de Hollywood). Mas, ainda é possível observar que a fotografia e alguns planos são suavemente inspirados em filmes de horror dessa década. Um outro ponto positivo é a trilha sonora, que traz nomes como A-ha, Tiffany e Culture Club. E as letras funcionam muito bem para representar os medos e inquietações das personagens.

O Exorcismo da Minha Melhor Amiga e suas situações problemáticas

Para além disso, o roteiro de Jenna Lamia busca ajustar a possessão de Gretchen como uma metáfora para as mudanças que ocorrem durante a adolescência. Uma ideia que soa interessante, mas no filme acaba não sendo tão bem executada. A obra até captura bem as frustrações e adversidades dessa fase da vida, mas se perde no momento em que precisa trazer soluções.

Alerta: O texto abaixo contém alguns spoilers da obra e gatilhos relacionados à depressão, suicídio, automutilação e transtornos alimentares.
O Exorcismo da Minha Melhor Amiga: a irresponsabilidade do filme ao lidar com assuntos delicados de ordem emocional
Abby começa a perceber o comportamento estranho de Gretchen. Imagem | Reprodução

Assim que as garotas voltam da floresta, o comportamento de Gretchen muda totalmente. E fazem uso disso para abordar situações delicadas. A automutilação é uma delas. No longa, observamos uma Gretchen perturbada fazer isso no banheiro após uma briga com Abby. De acordo com alguns relatos reais de adolescentes, feitos a profissionais como psicólogos ou psiquiatras, jovens que já passaram/passam por esse tipo de situação, criam o hábito de se automutilar para disfarçar ou ao menos amenizar a dor que sentem na alma (metáfora muito utilizada para expressar problemas de ordem emocional). Eles machucam uma parte de si, para não fazer com o todo. É comum essas pessoas se sentirem sozinhas e acharem que ninguém se importa com elas.

Na situação de Gretchen, ela está possuída por um demônio e tentando lutar contra ele. Na cena em questão, no momento em que as duas discutem, Gretchen se tranca em uma das cabines do banheiro enquanto ouve sua própria voz na mente dizendo que a amiga e todos a odeiam. Em seguida, começa a furar a própria mão. A cena trabalha muito com a questão de que todas nós possuímos nossos próprios demônios e lutamos contra eles, mas às vezes fica difícil e eles tomam conta da gente. E a automutilação, infelizmente, acaba sendo uma saída encontrada por muitas pessoas para lidar com a situação.

Muitas(os) adolescentes acabam por praticar o ato de se automutilar por não terem alguém com quem poderiam se abrir e compartilhar sua dor. Esses desajustes emocionais formam os mais diversos conflitos e causam os mais dolorosos impactos. Até porque a linha que leva da automutilação para a tentativa de suicídio é muito tênue.

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E no caso de Gretchen, ela não pode contar com os pais para se abrir, pois são o tipo de pessoas que gostam de fingir que está tudo bem, que na família deles não há problemas. E ainda que ela esteja com uma aparência abatida e nada saudável, além de um comportamento estranho (algo bem no estilo Garota Infernal (2009), de Karyn Kusama), NINGUÉM, se preocupa em saber o que está acontecendo. Nenhum professor, colega (com exceção de Abby), ou algum adulto responsável demonstra preocupação com a garota.

O Exorcismo da Minha Melhor Amiga e suas situações problemáticas
Gretchen com a aparência mais abatida. Imagem | Reprodução

Dessa forma, é válido trazer a informação, que em 2019 foi sancionada uma lei, aqui no Brasil, que tem como intenção conter situações do tipo. A legislação prevê que instituições como escolas e hospitais detenham o direito de notificar ao conselho tutelar ou às autoridades sanitárias situações que envolvam tentativa de suicídio ou casos ligados à automutilação, com ou sem ideação suicida.

Em uma outra situação de O Exorcismo da Minha Melhor Amiga, quando Gretchen começa a cometer maldades pelo fato de estar possuída, ela apresenta a Margaret um diet shake que ajuda a emagrecer. A garota passa a praticamente só se alimentar disso e começa a perder muito peso. Assim, fazem uso dessa situação para colocar em pauta uma outra doença também muito comum entre adolescentes: o transtorno alimentar.

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A busca pelo “corpo perfeito” é algo que persegue Margaret. A insatisfação com o físico pode levar algumas pessoas a colocarem em risco a própria vida, como acontece com a personagem. Tudo passa a girar ao redor do objetivo de atingir um padrão estético que nem deveria existir, mas que infelizmente existe e se mantém firme, permeando o ideal de beleza de muita gente.

Gretchen (Amiah Miller) manipulando e magoando as pessoas a sua volta.
Gretchen manipulando e magoando as pessoas a sua volta. Imagem | Reprodução

Com Glee também acontece uma situação complicada. A garota nutre uma paixão secreta por Margaret e tem seu segredo exposto de uma forma dolorosa. Vivemos em uma sociedade preconceituosa, não é fácil para algumas pessoas se assumirem lésbicas, como é o caso de Glee, que possui uma família religiosa que vê isso como um pecado grave. Aí ao ser enganada por Gretchen, a garota se declara para Margaret, acreditando que seria correspondida, mas não é o que acontece. Depois esse tópico é abandonado e mal tocam no assunto. E a grande questão é que esses temas tão graves, delicados e traumáticos são usados na obra de forma pouco significativa, serve apenas como um recurso para o enredo.

Assim, observamos que há uma irresponsabilidade na forma como o longa aborda todos esses assuntos. E é muito grave trabalhar com temas tão sérios de maneira tão superficial, afinal, acaba se abrindo espaço para várias interpretações perigosas. É importante demonstrar que as/os adolescentes podem ser orientadas por um caminho de respostas mais positivas em relação aos seus conflitos. Contudo, O Exorcismo da Minha Melhor Amiga acaba deixando isso muito à margem.

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Cena do longa "O Exorcismo da Minha Melhor Amiga" (2022)
Glee após descobrir que foi enganada por Gretchen. Imagem | Reprodução.

Uma boa referência nostálgica, mas que deixa a desejar

Mas podemos ainda dizer que um dos pontos interessantes é que a obra trabalha com a questão de as adolescentes não poderem contar com a ajuda dos adultos. Abby antes de descobrir que a amiga foi possuída por um demônio, acha que Gretchen sofreu algum tipo de abuso sexual e tenta ajudá-la. Ela conversa com os pais da garota, que não lhe dão ouvidos, além dos responsáveis que atuam na escola (é válido lembrar que a instituição é cristã) e também a ignoram. Isso traz uma crítica a falta de suporte emocional que adolescentes costumam não receber dos adultos que eles têm ao redor.

Apesar de tudo, O Exorcismo de Minha Melhor Amiga conta com atuações muito boas, em especial das protagonistas, que manifestam uma excelente química, amável e afetuosa. Amiah Miller é convincente nos momentos em que sua possessão demoníaca é exposta, ela contorce o corpo de uma forma desconcertante. E Elsie Fisher é cativante como a pessoa empenhada em salvar a vida da amiga. Contudo, a construção das personagens é muito limitada, devido a superficialidade de como as aflições de cada uma delas é tratada.

Gretchen possuída no filme "O Exorcismo da Minha Melhor Amiga"
Gretchen possuída. Imagem | Reprodução

O filme traz alguns alívios cômicos que são engraçados. Por exemplo, o cara que Abby contrata para fazer o exorcismo em Gretchen. Ele é nada menos que um fisiculturista cristão, viciado em iogurte, com uma espécie de mullet como corte de cabelo, e após ser contratado se mostra desqualificado para a tarefa que assume. Porém, esses momentos não são suficientes para segurar o filme como um todo.

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Enfim, ainda que a narrativa de O Exorcismo da Minha Melhor Amiga comece procurando fazer críticas negativas ao machismo e outros tipos de preconceito, como no momento em que as garotas desaprovam a misoginia intrínseca aos questionários de revistas dedicadas ao público feminino, a obra acaba se perdendo. O longa tem, sim, situações divertidas e nostálgicas, mas precisa ser bastante problematizado nas circunstâncias que estão ligadas aos transtornos psicológicos. E isso acaba por deixar a experiência de assistir ao filme um tanto frustrante.

Abby e Gretchen em My Best Friend's Exorcism (2022)
Abby e Gretchen. Imagem | Reprodução

Como a pauta dessa crítica trata de um assunto muito delicado, contamos com a revisão da psicóloga Caroline Wachter e consultoria da também psicóloga Denise Abreu, para que não houvesse nenhuma má colocação sobre os assuntos em questão. Obrigada pelo apoio, mulheres! E lembrem-se, se você ou alguém próximo está passando por alguma situação semelhante a citada aqui, busque ou auxilie a encontrar ajuda profissional. Você é importante!

Contato CVV: 188 – O Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo de forma voluntária todas as pessoas que querem conversar, seja por telefone, e-mail, chat ou voip.

Em caso de emergência: SAMU 192 e Bombeiros 193.

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Denise é bacharela em cinema e tem amor incondicional por tal arte. Pesquisa e escreve sobre feminismo e a representação das mulheres na área do audiovisual. É colecionadora de DVDs, fã da Audrey Hepburn, apaixonada por Rock n' Roll e cultura pop. Adora os agitos dos shows de rock, mas tem nas salas de cinema seu local de refúgio e aconchego.
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